GLEDSON SOUSA
Maior que o prazer da descoberta de um autor, quando somos tomados pelo furor do encontro com uma criação com a qual nos identificamos por inteiro (ao ponto de certos autores virarem nossos ‘santos de devoção’), é o prazer da redescoberta, quando muito tempo depois, por acaso ou por circunstâncias fortuitas, reencontramos o mesmo autor com a singular sensação de que o estamos fazendo pela primeira vez, ou como se fosse a primeira vez. Foi essa a sensação, muito erótica no seu conjunto, que senti ao ler o delicioso CONVERSAS COM FEDERICO GARCIA LORCA (Ed. Urutau, Brasil/Portugal, 2022) de Maria Estela Guedes: o prazer de reencontrar Lorca, de reencontrar a própria Estela Guedes e de, através desse diálogo entre os dois, nos deparar com um olhar sensível e crítico sobre o presente, numa prosa poética maravilhosa.
Diga-se de passagem, e me perdoem o trocadilho, que o livro de Estela Guedes é uma estela para Lorca, só que no lugar de um monumento de pedra, à maneira de povos antigos como os maias (que eram mestres da estelaria), o que se tem é um monumento vivo da palavra, ou uma palavra viva que, através de conversas com Lorca, traz o gênio espanhol para o presente, como se ele estivesse aqui ao nosso lado, com seus olhos negros a nos observarem.
Gênio é a palavra adequada para descrever Lorca, gênio no sentido de prodígio da natureza, ou um monstro do engenho, se formos usar uma expressão mais antiga. Estela Guedes, com humildade, se rende ao fascínio lorquiano, revisita seus lugares de origem, sua poesia, seu ser. E não se trata de figuração, Estela Guedes realmente fez um périplo lorquiano viajando para a Espanha e visitando Granada, Madri e tantos lugares caros a Lorca.
Desde o poema de abertura – Ontem à Noite – onde a poeta chega à Madri, inicia-se um vivo diálogo:
Cheguei tão cansada, Federico
A primeira coisa em que o olhar se deteve
Nesta parte antiga de Madrid
Foi o teatro Lara
Passei os olhos pelos cartazes
Nada vi teu
Nem de nenhum dos teus amigos
E tu sussurras:
Não precisas de procurar tudo o que é meu
Porque eu conheço tudo o que é teu
(…)
Pode-se dizer que aqui há uma chave, pois vai ser a partir desse diálogo que se inicia e tendo Lorca como o guia oculto, que Estela Guedes nos guiará pelo maravilhoso de cidades, estados interiores, os versos de Lorca e o confronto com o tempo presente em que a poeta escreve, que não é um registro menor e ocasional, mas sim um dos caminhos para aproximar-se do poeta, como no belo poema Da Saudade, que fala das mudanças trazidas pelos ventos da pandemia do Covid-19:
Tempo brumoso em Matosinhos.
O silêncio na Estrada da Circunvalação
Outrora rumorejante de tráfego
Mesmo de noite,
noite fora,
Quando só esse ruído do Planeta
A ronronar-nos
Parideira gata
(…)
Sinto saudades das lojas
Da Rua de Santa Catarina
Saltitante e ruidosa
Os músicos a darem-lhe alma
O fumo
Esse cheiro consolado e aldeão
Da castanha assada.
Só as gaivotas persistem
Nos seus voos iluminados
Aqui por cima dos telhados,
A copiarem
A intangibilidade das aves de rapina
Quando sobrevoam campinas
Soberanas
Pontas das asas franjadas,
Paradas,
Prontas para um voo picado
Súbito
Veloz
Mortal
Como esta doença invisível que pode estar em cima
Em baixo, ao lado da respiração que a absorve,
Lhe dá alento e vida,
A tira da condição de inerte,
Para nos beijar os pulmões numa asfixia.
(…)
Não citarei todo o poema por uma questão de espaço, mas a Estela vai desfiando, de maneira muito delicada, o impacto dos primeiros dias de confinamento que vieram como resultado da pandemia:
Sinto saudades, saudades, saudades
Como antes desta vida entre arames
Farpada, surrada, surrada
Surrada e sem abrigo
Sem futuro
Interrompida como um poema a que acabou o assunto
E termina em ti
No teu desejo infinito para tão curta vida.
Anda jaleo, jaleo
Ya se acabo el alboroto
Y ahora empieza el tiroteo
Y ahora empieza el tiroteo.
Sinto saudades da água límpida,
De Jano e Franco,
Sinto saudades da aurea mediocritas.
Como uma conversa franca e direta, cada poema é um diálogo com Lorca, chamado pelo primeiro nome, Federico, ou citado através de versos de livros como o Romancero Gitano, como no também belíssimo poema Blue Moon:
Com a língua saboreias
O fundo do cante.
Com o nariz aspiras
A jasmim o perfume
Dos jardins da Alhambra.
Trazem ao ouvido o fogacho azul
Da música andaluza.
Cante jondo, a lua na água do poço
Lua grande, gigante, vestida de nardos.
Blue moon, o luar é todo teu, bebe-o, de leite
Tinhas a música no sangue
O piano que tocavas
E a guitarra com que te deitaste
Depois da zambra gitana
Na cueva de Sacromonte.
Ay, a lua do tamanho do mundo,
Gigante, gigante
Dão-lhe os astrofísicos o nome de
Blue Moon. E os olhos, Federico, os teus olhos tão doces
Tão negros de carvão!
Abalroados pela lua branca
De nardos branca
Que os teus olhos miraram negros, ay!
La luna vino a la fragua
Con su polison de nardos
El niño la mira mira
El niño la está mirando
És tu quem a está mirando
Com os teus olhos profundos
De cipreste, carvão e água
(…)
Vê-se que Estela Guedes não hesita em emular, com um feliz resultado, o próprio estilo do Romancero Gitano, mas sem deixar de ser Estela Guedes, a poeta cientista:
Mas quando tocas, Federico
Quando tocas o rosto da Lua no seu perigeu (grifo nosso)
Encostada à janela do teu dormir
A tua boca cintila de amor
(…)
Destaquei a palavra perigeu, porque essa é uma palavra técnica, da astronomia, que designa na órbita de um astro, o ponto mais próximo da Terra, e que no caso da Lua é a origem desse fenômeno chamado Blue Moon, mas o uso dessa palavra é tão natural que o ritmo do poema não se altera, e aqui temos a face múltipla de Estela Guedes: poeta, cientista, apaixonada pelo mundo e pela descoberta do outro, seja um poeta, um animal, uma planta.
Me permitam uma nota mais pessoal: Estela esteve de passagem por São Paulo em julho desse ano e nos encontramos para tomar um café; na ansiedade do reencontro, contei-lhe de muitas coisas e dentre elas, uma experiência que tive tomando ayahuasca… enquanto lhe contava, Estela estava a pesquisar, no celular (ou telemóvel, como lhe chamam em Portugal), quais eram as plantas que compunham a beberagem da ayahuasca, para dali a pouco me dizer: – Mas é uma videira! – quando descobriu que a Banisteriopsis Caapi era um tipo de videira, o que me fez pensar na irmandade ancestral entre a ayahuasca e o vinho dionisíaco. Essa é Estela Guedes.
Que não temeu adentrar em águas lorquianas, em apaixonar-se pela viagem, pela descoberta, pela poesia:
OS NOSSOS LUGARES
Vim de tão longe para te conhecer
E agora, perto do fim da viagem,
Preocupa-me não ter ido a todos os teus lugares:
Fuente Vaqueros, onde nasceste
Barranco de Viznar, onde tantos mataram
E a ti com dois companheiros, mais adiante, junto
De silenciosa oliveira,
Que a partir dessa triste madrugada
Ficou com todos os cabelos brancos;
Camino de Alfacar
Onde arrulha ainda a fonte das lágrimas, a que
Os árabes deram o nome
De Fuente de Ainadamar…
Ay, Federico, ay! O Camino de Alfacar
Com o seu olivo branco e as lágrimas por ti choradas
Da Fuente de Ainadamar…
Nada disso vi, mas andei perto, muito perto
Quando fui à tua casa de Valderrubio…
Iria amanhã a outros lugares teus
12 de outubro,
Mas amanhã é o vosso
Feriado nacional…
Que dizes? Que não me preocupe?
Sussurras-me ao ouvido como um duende
Federico, assustas-me, as pernas tremem
Fala mais alto, que não te entendo…
Ah, sim, compreendi:
Não preciso de ir a todos os teus lugares
Porque estivestes tu em todos os meus…
Dessa convergência de lugares e seres, Lorca e Estela Guedes se unem na mesma estrela poética, aquela que diz que o mundo é maior e melhor com a poesia, e que o que nos torna humanos é a palavra poética, mesmo aquela dos livros de ciência, como bem nos ensinou Estela Guedes, nesse belo livro que é Conversas com Federico Garcia Lorca.
Quando terminei a leitura, já senti a necessidade de uma releitura, agora acompanhada da Obra Poética completa do Lorca e da alentada biografia escrita pelo irlandês mais espanhol que existe, Ian Gibson, para, à maneira de uma exegese, ir confrontando cada poema das Conversas com Federico Garcia Lorca com os poemas dele e as passagens da sua vida, como a redescobrir Lorca, Granada, Madri.. e ao mesmo tempo percorrer aquilo que foram os dias difíceis da pandemia e da pandemia aqui no Brasil, sob o governo estúpido-fascista de Jair Bolsonaro, a quem Estela Guedes não deixa de assinalar (em O Planeta Gelado):(…) ele é mau, pessoa cruel, mau caráter…
Visitando Lorca, Estela Guedes nos põe em sintonia com o presente distópico em que vivemos, mas sempre com a esperança de que a poesia continue a abrir nossos olhos para a surreal beleza das coisas, como nessas Conversas com Federico Garcia Lorca.
MARIA ESTELA GUEDES
Conversas com Federico García Lorca
Urutau Editora
Portugal/Brasil, 2023
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