A épica da cidade de Lisboa nos Painéis de S. Vicente de Fora

                             

ANTÓNIO MANUEL DE ANDRADE MONIZ & MARIA CELESTE MONIZ


António Manuel de Andrade Moniz[1]  (Portugal). CHAM-FCSH-Universidade NOVA de Lisboa; CLEPUL, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa.
Maria Celeste Moniz[2] (Portugal) . CHAM-FCSH-Universidade NOVA de Lisboa; CLEPUL, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa.


Resumo: A partir da contextualização da época (século xv), propomo-nos interpretar a gesta épica da cidade de Lisboa nos Painéis de S. Vicente de Fora. Encomendado pelo infante D. Pedro, no final do seu período de regência do reino, o políptico correspondia a uma nova fase da vida nacional, de pacificação e de libertação dos seus inimigos externos e internos. De novo, a cidade de Lisboa fora protagonista do grito de independência face às eternas ambições da nobreza castelhana, dominada pelos Infantes de Aragão, também eles castelhanos. Por isso, estão representadas nos painéis não apenas as figuras régias e senhoriais e militares, mas também as classes burguesas e populares.

Palavras-chave: Painéis de S. Vicente; épica; século xv; cidade de Lisboa.


Abstract: Starting from the historical and social context (the 15th century), we will try to interpret the epic protagonist action of Lisbon city in the St.Vicent Panels. The six panels were ordered by the infante D. Pedro at the end of his regency and they reflected a new period in the national life, of pacification and liberation from its external and internal enemies. Once again, Lisbon led the scream for independence against the eternal ambition of the Castilian nobility, then dominated by the Infantes of Aragon, who were also Castilians. It is why not only royal, noble and military characters were painted but also bourgeois and popular classes. 

Keywords: St. Vincent Panels; epic; 15th century; Lisbon.


Introdução

A reavaliação da personalidade e da complexa e multifacetada ação do infante-regente D. Pedro de Avis (1392-1449) é tarefa que se impõe à nação como inadiável, agora que o império se desfez e a república definitivamente se consolidou. É tempo de nos reanalisarmos com um olhar crítico, à distância de seiscentos anos, buscando a complexidade histórica para além do mito, da lenda, da historiografia oficial, sempre refletindo o poder e a voz de quem sobreviveu às crises, moldando a verdade dos acontecimentos.

É o que tentaremos fazer neste trabalho, dando uma ênfase especial à contextualização política dos reinos ibéricos no século xv, dominados pela ação nefasta dos Infantes de Aragão, com impacto absolutamente determinante em Portugal. Na sua sequência, analisaremos o apoio decisivo e heroico prestado pelo povo de Lisboa à política do infante D. Pedro, tal como fizera em relação a D. João I.

Por fim, apresentaremos a nossa interpretação das mensagens contidas na emblemática pintura do políptico de S. Vicente de Fora, obra encomendada por D. Pedro, como provou o estudo dendrocronológico e a respetiva datação do Professor Peter Klein, da Universidade de Hamburgo, em 2001.


  1. Algumas notas prévias na problemática dos Painéis

O quase infindável emaranhado de teses e interpretações que têm envolvido a já chamada «Questão dos Painéis», desde que foram descobertos nas arrecadações do Mosteiro de S. Vicente de Fora, no final do século xix, por mero acaso, fornece-nos um quadro muito significativo das limitações de uma abordagem sectorial de um determinado campo científico, neste caso, especificamente, o da pintura portuguesa do século xv, sem que se tenham buscado horizontes mais vastos de interdisciplinaridade e interpenetração de saberes, concretamente no que toca à história nacional desse século.

Por outro lado, o secular esquecimento da personalidade e da ação do infante D. Pedro de Avis, marcadas por um olhar quase sempre pejorativo e acusatório, bloqueador de uma visão mais consentânea com a realidade histórica nacional e ibérica, extraordinariamente complexa na primeira metade do século xv, tem conduzido a conclusões que se revelaram incorretas depois do estudo dendrocronológico feito ao políptico pelo Professor Peter Klein, em 2001, por iniciativa do Instituto Português de Conservação e Restauro.

O nosso tradicional apego a «verdades» adquiridas, repetidas à exaustão, sobretudo se imbuídas e mergulhadas em mitos seculares, torna muito difícil um estudo mais crítico e profundo, mais complexo e abrangente, mais liberto de dogmas criados, de puros preconceitos, tornados teses incontestadas. É absolutamente surpreendente que, mesmo depois de conhecidas as conclusões do referido estudo, autores e entidades haja que continuam a negá-las, mantendo-se teimosamente ligados a um passado já irremediavelmente remoto, com explicações infantis, como as que declaram que as tábuas podiam ter sido adquiridas na época apontada pelo professor alemão, mas a pintura seria posterior. Tal tese não tem cabimento algum e mais parece pura teimosia, para se tentar sustentar o que a ciência negou. No reinado de D. Afonso V, de acordo com a crítica tradicional, que lhe atribui a encomenda e a feitura dos Painéis, dificilmente haveria verbas para um tão elevado gasto, estando o rei permanentemente obcecado pelo esforço de guerra, primeiro em Marrocos e depois em Castela, além de ter tido a maior dificuldade em controlar as finanças públicas, devido à sua larguíssima generosidade na atribuição de mercês, como é bem conhecido.

Para além disso, outros aspetos da composição da pintura são claramente contrários a tal tese. Referimos apenas alguns, para não nos ocuparmos demasiado com estas primeiras considerações. Assim:

i) Não se identificam membros da alta nobreza, tão acarinhada por D. Afonso V, entre as personagens retratadas, à exceção da família real e do arcebispo de Lisboa, D. Pedro de Noronha, sobre quem falaremos mais à frente. Reconhecer-se-iam pelos tecidos luxuosos, damascos, brocados, sedas ou veludos, para além das peles e joias, ou pelas armaduras completas e caras, como eram as do século xv.

ii) Pelo contrário, a maioria dos figurantes ao fundo traja roupas que os identificam como burgueses, tal como as suas feições e expressões rudes, de gente ligada quer ao comércio (mercadores), quer à indústria (mesteirais), quer funcionários administrativos.

iii) Há também um painel dedicado à gente do mar, pescadores, por quem o infante D. Pedro tinha especial carinho: lembremos a sua forte ligação a Buarcos, no seu ducado de Coimbra. Não nos parece provável que uma pintura encomendada por D. Afonso V os apresentasse assim, em primeiro plano num dos painéis.

iv) A postura altiva e extraordinariamente arrogante com que D. Pedro de Noronha foi representado, para mais envolvido numa crítica implacável, pois é adulado por um outro membro do clero, de expressão imbecil, que só a ele vê, mesmo na presença esmagadora do Santo. Tal denúncia só poderia ter sido assumida por uma mente extraordinariamente aberta e lúcida, a do infante D. Pedro, nunca a de D. Afonso V. Como é sabido, o arcebispo de Lisboa foi, juntamente com o bastardo real (filho de D. João I, D. Afonso, Conde de Barcelos, posteriormente feito 1.º Duque de Bragança por mercê de D. Pedro, durante a sua regência), o maior inimigo do infante, a nível nacional. Eram cunhados, pelo segundo casamento de D. Afonso com D. Constança de Noronha, uma triste e infeliz opção de D. João I, quando, alguns anos depois de enviuvar de D. Beatriz, filha única de Nuno Álvares, o pai o quis casar de novo, para lhe suavizar a solidão.

v) À arrogância antievangélica do arcebispo, seu inimigo mortal, D. Pedro quis contrapor alguém que representasse a sua própria vivência religiosa, recebida diretamente da mãe, D. Filipa de Lencastre, que professava o rito inglês de Salisbúria, de forte tendência mística, com cerimónias e ritos litúrgicos longos, em que predominava o incenso, procurando desenvolver nos crentes uma espiritualidade mais próxima do Evangelho, com apelo à caridade e à proteção dos mais fracos, bem como uma desejada coerência entre fé e vida, com a consciência da fragilidade humana face à omnipotência de Deus. Era já uma resposta aos muitos desvios e abusos do clero do final da Idade Média, tão forte e causticamente denunciados por Geoffrey Chaucer nos seus Canterbury Tales. Tal figura surge precisamente no Painel dos Pescadores, gente simples e desamparada na luta diária e brutal contra o leão devorador que para eles é o mar. É o velho pescador, prostrado de joelhos em terra, com um rosário de contas pendentes das mãos em oração, dirigindo a Deus um olhar de total despojamento e abandono, sábio sobrevivente de muitas tempestades no mar, com plena consciência de que não passa de pó e cinza. Como é chocante esta tão grande denúncia da atitude religiosa do arcebispo, de puro poder mundano!

vi) Entre os membros do clero regular, os frades, surgem-nos os cistercienses, um ramo dos beneditinos, dos quais se destaca, ajoelhado, o grande amigo do infante, de toda a vida, Fr. D. Estêvão de Aguiar, abade de Alcobaça, homem culto e lúcido, que fora discípulo do famoso D. Fr. Gomes Ferreira da Silva, abade do mosteiro de Santa Maria/Badia, de Florença. Assim que se tornou regente, logo D. Pedro convidou Fr. D. Estêvão de Aguiar para o Conselho do Rei, sabendo ter nele um colaborador e um conselheiro inteligente e culto, que o acompanharia e o inspiraria nas reformas urgentes e necessárias que D. Pedro planeava introduzir no reino, visando o seu efetivo desenvolvimento a vários níveis. Se os Painéis tivessem sido encomendados por D. Afonso V, teriam sido os franciscanos e não os cistercienses os monges retratados.

vii) No Painel da Relíquia, é exibida uma parte do couro do crânio (não um osso) de Santo António, relíquia que fora oferecida a D. Pedro, quando passou por Pádua, na sua viagem europeia de três anos, tal como um documento notarial passado ao infante pelas autoridades municipais de Pádua o declara.[3] O infante fez, assim, questão de registar pela pintura deste tão importante políptico a sua especial devoção pelas relíquias dos santos, neste caso a de um grande santo de Lisboa. Isto não foi acidental, como iremos ver.

viii) A integração, nesse mesmo Painel, de um judeu, rabi-mor do reino e de Lisboa, com o distintivo que a lei obrigava os membros das comunidades judaicas a trazerem bem visível nas suas roupas: uma estrela vermelha de seis pontas. Exibe, naturalmente, a sua Torah, de escrita simulada, indecifrável, ao contrário do texto que o Santo exibe, em latim legível. Era o reconhecimento público do muito que a cidade de Lisboa devia aos judeus, na medicina, na astrologia e na matemática, mas também no forte incremento da atividade económica e no arranque dos Descobrimentos, que D. Pedro tanto acarinhou. Atitude bem diferente tinha D. Afonso V, que em documento de 28 de dezembro de 1451 os proibia de exercer medicina, em que se haviam notabilizado (cf. «Documento 103», in Dinis, 1970: 125-126).

Mas não nos vamos demorar mais nesta questão. Pensamos ter apresentado algumas razões válidas que provem a atribuição da encomenda e a feitura dos Painéis de S. Vicente de Fora ao infante D. Pedro. Além disso, fora ele o grande viajante, percorrendo longamente todos os grandes países conhecidos da época, com a única exceção da França, na altura demasiado fragilizada pela primeira fase da Guerra dos Cem anos, face à então poderosa Inglaterra, por onde começara o seu périplo. Viu outras gentes, outras culturas e outras formas e estilos de viver; conheceu diretamente outras orientações políticas e económicas de governação; adquiriu uma dura experiência militar ao serviço do imperador do Sacro Império Romano-Germânico e rei da Hungria, Sigismundo, o então herói nas frentes de guerra contra as temíveis forças otomanas; conheceu sociedades de riqueza estonteante e florescente, sobretudo o ducado de Borgonha e Veneza; conviveu com o grande centro do humanismo renascentista que já então Florença era; admirou, extasiado, outras criações de arte, sobretudo a pintura flamenga e as suas cores vivas, de contornos bem definidos e realistas. Saiu de Portugal um príncipe muito culto e letrado, com um invulgar domínio do latim e muitas leituras já feitas, mas ainda globalmente medieval; regressou um homem diferente, já fortemente tocado pelo Renascimento que desabrochava nas repúblicas italianas, cheio de sonhos e com uma vontade irresistível de transformar a pesada medievalidade da sociedade portuguesa, que tão bem conhecia, no que tinha de bom, de excecional mesmo (o sentimento de lealdade, por exemplo). Era, contudo, uma sociedade minada por terríveis e ancestrais vícios, como o senhorialismo, arcaicamente feudalizante e asfixiante na adaptação aos novos rumos da História, e o baixíssimo nível cultural, teológico e moral do clero. Juntos, estes dois aspetos faziam de Portugal um caos de injustiças, o que o infante considerava ser a maior mancha e perversidade da sociedade portuguesa. Os Painéis de S. Vicente de Fora foram o resultado inevitável de tudo isto. Nunca poderiam ter sido encomendados por D. Afonso V, nem por mais ninguém em Portugal.

 

  1. Contextualização no espaço ibérico do século xv

É absolutamente impossível entender-se o final do reinado de D. Duarte e a regência de D. Pedro sem se ter presente o período de grande agitação política em todos os reinos ibéricos, provocada pela incomensurável ambição de hegemonia política dos Infantes de Aragão, novo ramo dos Trastâmaras no nordeste da Península. Todavia, esta problemática interrelaciona-se com outra, mais vasta e mais profunda, que envolveu em secular debate os dois modelos fundamentais de governante, ambos herdados da Antiguidade Clássica, e em cuja definição se envolveram também grandes figuras da Igreja Latina (cf. Minois, 1997).

O primeiro modelo é o do governante «pai», temente a Deus, perante quem terá um dia de prestar contas pela forma como exerceu o poder que lhe foi confiado; defensor da justiça e do bem comum dos seus vassalos, de integridade de carácter, culto e amante dos livros, frequentemente também escritor, prudente, acolhedor, amante da paz, mas não negando a guerra quando a defesa da independência do território está ameaçada, pelo que deverá ser também um bom e experimentado militar. O segundo modelo é o do governante «tirano», obcecado pelo poder, que nunca o sacia, dominado por uma ambição ilimitada; identifica o seu território como exclusiva propriedade sua, o qual gere segundo os seus interesses pessoais, numa total falta de escrúpulos, pois todos os meios lhe são válidos para obter o que pretende (mais poder político e mais riqueza); é um ser violento e cínico, fomentador permanente de intrigas e de teias de influências, utilizando com magistral eficácia a poderosa arma da propaganda; para ele, a justiça e o bem comum nada significam, obcecado pela guerra, única forma de dominar os vizinhos, cujos territórios deseja anexar aos seus; é odiado pelas populações, que explora sem piedade, na busca de recursos financeiros que lhe permitam obter o que pretende; deixa atrás de si um rasto de miséria e de destruição, sendo frequentemente assassinado.[4]

Estes dois modelos seculares de governante entraram em frontal conflito no difícil século xv (cf. Huizinga, 1996), já herdeiro das experiências violentas do século xiv. Como representantes do primeiro, em Portugal, teremos D. João I e os Infantes de Avis (com sérias reservas para D. Henrique), sobretudo D. Pedro; no reino de Navarra, o infeliz príncipe D. Carlos de Viana, homem culto, prudente e amante da paz, herdeiro legítimo da Coroa navarra, por ser filho da rainha Blanca, mas a quem o pai, Juan de Trastâmara (o segundo dos Infantes de Aragão e apenas rei-consorte de Navarra, por ter casado com a rainha Blanca), nunca permitiu que reinasse; pelo contrário, usurpou-lhe o trono de Navarra, mesmo depois de ter contraído novo casamento com uma dama castelhana, em total afronta às leis navarras. Moveu-lhe uma perseguição implacável, desencadeando uma terrível e cruenta guerra civil e urdiu contínuas intrigas contra ele, quer nos territórios ibéricos, quer junto de outros governantes europeus, prendendo-o por duas vezes. Só a determinação dos catalães, que o escolheram como seu governante, o conseguiu libertar. Crê-se que morreu envenenado, por ordem do pai e da madrasta, a fim de assegurarem o trono de Aragão a Fernando, filho de ambos.[5]

Como representantes do segundo modelo de governante, na Península, teremos os Trastâmaras, de origem bastarda, que haviam chegado ao trono castelhano por um duplo crime, simultaneamente um regicídio e um fratricídio, quando Henrique II matou com as próprias mãos e à traição o meio-irmão, Pedro I, rei legítimo de Castela. Já no século xv, destaca-se Fernando de Trastâmara, irmão do prudente Henrique III (que viria a ser assassinado, deixando o futuro e infeliz Juan II com apenas um ano), passando a partilhar a regência com a rainha viúva, D. Catarina de Lencastre, meia-irmã de D. Filipa; homem extremamente ambicioso, a quem se deve o delírio de vir a dominar a totalidade dos reinos cristãos da Ibéria. Foi o pai dos Infantes de Aragão, que dele herdaram a ambição e a falta de escrúpulos. Fernando, sendo um príncipe castelhano, viria a apoderar-se da Coroa de Aragão através de um jogo ilícito de influências e promessas de apoios políticos, nomeadamente junto do antipapa Bento XIII (o Papa Luna), aragonês, o último de Avinhão, acolhido por ele (já então aspirando ao trono do reino de Aragão), e cuja influência junto dos delegados das três regiões do reino (Aragão propriamente dito, Catalunha e Valência), reunidos no Compromisso de Caspe, foi determinante na sua escolha como futuro rei. Depois da sua coroação, aceitou negociar com o imperador do Sacro Império Romano-Germânico e rei da Hungria, Sigismundo, que liderava o processo que viria a pôr fim ao Grande Cisma do Ocidente, unificando a Igreja latina sob o papado de Martinho V, em Roma. Em consequência de tais negociações, Fernando Trastâmara retirou o prometido apoio a Bento XIII, razão pela qual este logo o excomungou (cf. Arboledas, 2009: 52-72), arrependido de todo o seu empenhamento em o fazer rei de Aragão. Fernando I pensava fazer de Aragão uma espécie de trampolim para abocanhar a poderosa Castela, já que Navarra estava assegurada pelo contrato de casamento de Blanca, futura rainha, com Juan, o seu segundo filho. Alfons V, seu sucessor, continuou a exata direção política do pai, logo firmando o contrato de casamento da irmã mais nova dos Infantes de Aragão, Leonor, com D. Duarte, o herdeiro do trono português. Deste modo, também Portugal lhes ficaria sob controlo dentro de um curto espaço de tempo, contando, para isso, com a cumplicidade da irmã, a quem permanentemente industriava, quer através de correspondência por emissários, quer por servidores seus enviados a Portugal, quer por embaixadores.[6] Leonor parece ter sido uma cúmplice fiel dos interesses dos irmãos e de Alfons V, em especial. Cremos que o projeto para Portugal teria sido, numa primeira fase, acompanhar de muito perto e, naturalmente, influenciar a política portuguesa, precisamente através de D. Leonor. Mais tarde, quando D. Duarte se revelou não um rei fraco e maleável, mas, pelo contrário, um monarca firme e aguerrido na luta pelos direitos de Portugal junto do instável papa Eugénio IV[7], a atuação de Alfons V passou a ser mais atenta, pressentindo já o perigo de rebeldia de Portugal. Contudo, tudo se complicou com a empresa de Tânger, em que a rainha se aliou a D. Henrique na contínua e insuportável pressão junto do rei.

A armada para Tânger partiu em 1437, embora perigosamente enfraquecida pela falta de navios, de homens e de abastecimentos, contra a oposição clara, firme e lúcida do militar experiente que era D. Pedro. O resultado é conhecido. D. Duarte era um homem racional e firme nas suas convicções. Não deixaria de se distanciar emocionalmente dos maiores responsáveis que o haviam pressionado, Henrique e Leonor, tanto mais que, em jogo, estava a vida de D. Fernando, cativo em Fez, em condições cada vez mais degradantes. A sua condescendência afastara-o do legado do pai, para ele sagrado, ao nível político-militar, mas também financeiro e, muito importante para os filhos de D. João I e de D. Filipa de Lencastre (com exceção de D. Henrique), a união e o amor entre os irmãos. Esse afastamento terá ditado a sua sentença de morte, por envenenamento de arsénico, a arma mais segura e cobarde (porque não detetável nem na comida, nem na bebida, e, na altura, facilmente confundida com peste[8]), então largamente utilizada em toda a Europa. Tal facto é testemunhado na carta do infante D. Pedro, de 30 de dezembro de 1448, já em Coimbra, menos de cinco meses antes de Alfarrobeira, a última carta sua conhecida.

Não esqueçamos que D. Afonso V tinha na altura da morte do pai seis anos e oito meses; aos sete anos (fim do então considerado período da puerícia), de acordo com a tradição, teria passado a ser educado pelo progenitor, esbatendo-se a influência política da mãe, pró aragonesa-castelhana. Alfons V e os seus irmãos, os ambiciosíssimos Infantes de Aragão, não podiam correr esse risco e ver Portugal escapar-lhes. A morte do rei português foi preparada ao pormenor, acompanhada no seu declínio e agonia pela presença constante de Leonor, tudo controlando e logo comunicando ao amado irmão, seu guia e protetor, como certamente pensava, ludibriada pela incessante propaganda de vanglória e culto de imagem do monarca aragonês, também ele perdido nos delírios de domínio da parte ocidental da Península Itálica e do rico comércio genovês. Cúmplice fundamental em todo o processo era Juan de Navarra, seu irmão, que, não passando de rei-consorte, como já anteriormente referimos, sempre negou ao filho primogénito e legítimo que tivera da rainha Blanca, Carlos, Príncipe de Viana, o direito de ser rei. O infeliz e culto príncipe foi encerrado, traiçoeiramente, pelo pai em fortalezas seguras, por duas vezes. Apesar de libertado do segundo cativeiro pela energia e pela determinação catalãs, a 25 de fevereiro de 1461, D. Carlos estava já em grande debilidade física, vindo a morrer menos de sete meses depois, a 23 de setembro de 1461, muito possivelmente envenenado por arsénico (Dezert, 1999: 408-415)[9], processo que se deve ter iniciado durante a sua primeira prisão, em 1451.

Neste contexto, é absolutamente impossível ser verdadeiro o testamento atribuído a D. Duarte, no qual se designava como única regente e com a totalidade dos poderes, incluindo a educação de D. Afonso V, futuro rei, a rainha viúva, D. Leonor de Trastâmara, infanta de Aragão. Era a concretização plena das ambições de Alfons V e dos irmãos em relação a Portugal. Nunca poderia ser aceite pelos portugueses, sobretudo por aqueles que continuavam a venerar com saudade o grande rei D. João I e o seu santo e heroico condestável, Nun’Álvares Pereira, os quais, havia apenas meia centena de anos, haviam «corrido à espadeirada» os odiados castelhanos (os mesmos do presente, só que disfarçados em aragoneses). Logicamente, o tal testamento logo desapareceu e nunca mais ninguém o viu…. Os falsificadores de textos oficiais eram bem conhecidos em Castela… Também lá, sobretudo lá, o inferno da anarquia, sempre fomentada, cada dia, pelos ambiciosos Infantes de Aragão, se abateu sobre o infeliz rei Juan II, não lhe dando um único momento de paz, nem o deixando governar, tendo, inclusivamente, dois dos infantes, Henrique e mais tarde Juan de Navarra, aprisionado o rei por duas vezes e por largos períodos de tempo: no primeiro cativeiro, após o assalto ao palácio real e aos aposentos do rei, que dormia, durante quatro meses e meio (de 14 de julho a 29 de novembro de1420), e no segundo, durante onze meses (de julho de 1443 a junho de 1444). Este último cativeiro do rei castelhano por Juan de Navarra, sob pesadíssima vigilância, corresponde ao período do envio das embaixadas mais agressivas e de maiores exigências a Portugal, durante a regência de D. Pedro.[10]

 

  1. A regência do infante D. Pedro nos Painéis

É, de facto, impressionante a correspondência de Alfons V e da mulher, a rainha Maria (irmã de Juan II de Castela, mas que sempre se colou fielmente à política do marido), relativa a Portugal, no período que se seguiu à morte de D. Duarte e durante toda a regência de D. Pedro, não só pelo número de documentos (sobretudo cartas particulares, mas também oficiais), como pela linguagem (cinicamente pseudo-afetiva, mesmo lamuriosa e sentimental quanto convinha) e pelo conteúdo (de claríssima ingerência nos assuntos do país, que tratavam com o desplante de um protetorado seu)[11]. Tudo fizeram para colocar a fiel Leonor na regência, desde ameaças a calúnias e intrigas junto do papa e de outros soberanos europeus. Evidentemente, D. Pedro era já para eles o maior inimigo a abater, por ser inteligente, lúcido e corajoso, além de grande e experiente militar (lembremos os dois anos completos em que servira nos exércitos do imperador Sigismundo, contra os temíveis otomanos), muito superior às reais capacidades militares do próprio Alfons V.[12] Temiam-no e sabiam-no determinado a defender até às últimas consequências a independência portuguesa, como bem provou, tendo-se tornado um outro D. João I.[13] Além disso, tal como o pai, era amado pela população das grandes cidades e vilas, com destaque especial para Lisboa, onde nascera.

Por isso, a estratégia escolhida foi a da intriga[14] (em que todos os Infantes de Aragão eram verdadeiramente imbatíveis) e a aliança com os principais inimigos do infante (com o invejoso bastardo D. Afonso de Barcelos/Bragança, o filho primogénito deste, D. Afonso, Conde de Ourém, e o cunhado, D. Pedro de Noronha ― nascido em Castela, de família castelhana e também bastarda ―, como protagonistas nesse processo vergonhoso, a que o crime por envenenamento andou sempre ligado). Era necessário, porém, primeiro, isolar D. Pedro; por isso, a segunda vítima do veneno foi o infante D. João, seu incondicional apoiante na regência, enquanto o deixaram viver. Nesta perspetiva se deve ver também o bloqueio feito à libertação de D. Fernando, usando cinicamente o alibi da defesa da Cristandade face ao ameaçador Islão. Consciente de toda esta teia infernal, D. Pedro caiu gravemente doente, ao saber da morte do irmão D. João, a 18 de outubro de 1442: bem sabia que as garras dos seus implacáveis inimigos o prendiam mais e mais.

Há, contudo, ainda um período de esperança, de 1445 a 1447. Desiludida com os irmãos, que tudo lhe haviam prometido ― honras e poder político que lhe aumentassem a vaidade feminina, a riqueza e a glória de os ter ajudado a conseguirem o total domínio da Ibéria (para além de serem senhores da Sicília e de Nápoles, atrevendo-se até a entrar em guerra aberta com a poderosa república de Génova, senhora dos mares) ―, Leonor via-se na mais dura realidade de ter de viver de esmolas, em Toledo, onde se autoexilara, perdidos a família (o excelente marido que tivera, e que envenenara, e os filhos ― só lhe restando a pequena D. Joana), os bens e as joias, tudo sacrificando aos delírios de poder dos insaciáveis irmãos, que, em troca, só lhe davam palavras de consolação.[15] Não é de estranhar que tivesse tomado a iniciativa de pedir a D. Pedro (o outrora odiado cunhado) o regresso ao reino que atraiçoara tão vilmente. As negociações decorriam por intermédio do conde de Arraiolos, filho mais novo do bastardo D. Afonso, quando se soube que tinha morrido, em fevereiro de 1445, também ela envenenada.

No verão desse ano morria, de feridas recebidas na batalha de Olmedo, também o infante D. Henrique de Trastâmara. Só restavam os dois Infantes de Aragão mais velhos, se bem que fossem os mais insidiosos: Alfons V de Aragão e Juan, rei de Navarra. O infante D. Pedro tinha razão para se sentir aliviado. Mesmo assim, conhecendo bem os inimigos, continuou a procurar apoiar o condestável castelhano, D. Álvaro de Luna, apoio fundamental do rei D. Juan II de Castela e inimigo capital dos Infantes de Aragão, tal como ele próprio. Por isso, já no ano anterior, 1444, se dispusera a enviar a ajuda militar que Juan II e o seu condestável lhe pediam, de apoio aos sitiados em Sevilha, sem que, contudo, os portugueses tivessem combatido. Acreditamos que só a notícia da sua ida teria tido um forte impacto dissuasor junto das forças de Henrique de Trastâmara. Depois, nos anos seguintes, aliviada a pressão aragonesa, D. Pedro dedicou-se às coisas do reino e à preparação do casamento de D. Isabel, sua filha, com D. Afonso V, segundo o projeto que havia sido seu e do querido irmão D. Duarte. As nuvens pareciam ter-se dissipado. Em 1446, entregou o governo ao jovem rei, como estava estipulado, mas este, com apenas 14 anos, pediu-lhe que continuasse a seu lado.

Por tudo isto, os vários Painéis foram encomendados e pintados por volta de 1445. O reino respirava, aliviado, e preparava, finalmente, um futuro mais risonho.

Esboçado o contexto da sua feitura, passemos agora à nossa interpretação. É evidente que a personagem em primeiro plano no painel central da esquerda, de joelho em terra, só poderá ser o próprio infante D. Pedro, a quem o Santo mostra uma passagem muito significativa do Evangelho de S. João. O retrato feito corresponde perfeitamente ao que Rui de Pina dele traça: alto e seco de carnes, com olhos moles, característicos de muitos intelectuais, como Oliveira Martins bem salientou ao referir-se a D. Pedro no seu livro Os filhos de D. João I. Veste uma túnica de damasco verde e, significativamente, apoia a mão esquerda na espada à cintura. Junto dele, outros membros da família real legítima, os sobreviventes de muitas tragédias: à esquerda, as infantas D. Isabel de Coimbra, sua filha e futura rainha, e D. Isabel de Barcelos, viúva do querido irmão D. João; à direita, o adolescente D. Afonso V, de olhar vago e inexpressivo, e D. Henrique, no seu estranho hábito e chapelão negros, ligeiramente envelhecido e de rosto igualmente inexpressivo. No painel central da direita, destacam-se os dois comandantes máximos das forças militares do reino: o condestável D. Pedro, filho primogénito do infante, na melancolia que o acompanhou toda a vida, à direita do Santo e, à esquerda, o companheiro fiel na vida e na morte, Álvaro Vaz de Almada, capitão-mor do mar e alcaide de Lisboa. D. Pedro dá-lhe a honra máxima de o fazer retratar em espelho de si próprio, só com um joelho em terra, apenas concedida aos príncipes. Atrás dele, o segundo filho de D. Pedro, D. Jaime[16], que o acompanharia até Alfarrobeira, onde foi feito prisioneiro, tendo depois sido recolhido, com mais dois dos irmãos, pela tia, a duquesa D. Isabel de Borgonha. Viria a ser o célebre e exemplar cardeal de Santo Eustáquio, além de arcebispo de Lisboa (embora nunca mais tenha regressado ao reino), sério candidato ao papado, segundo o evidente desejo de Calisto III.[17] Certamente por isso, infelizmente, foi também envenenado. No Painel dos Frades, ajoelhado, outro grande amigo, o cisterciense D. Fr. Estêvão de Aguiar, abade de Alcobaça. Ao fundo, repartidos de forma equilibrada, os representantes da burguesia empreendedora (nos três painéis à esquerda) e os membros do alto e baixo clero (nos três painéis à direita), segundo o sonho utópico de harmonia social do grande infante.

Foi Vitorino Magalhães Godinho quem levantou a hipótese, que também defendemos, de ter sido o políptico encomendado por D. Pedro, para fechar a sua regência, numa espécie de testamento político (Godinho, 1959: 149-150).

Para além do que atrás dissemos, abordemos agora a chave da nossa proposta de interpretação. O ciclo da sua regência iniciara-se com o incondicional apoio do povo de Lisboa, lembrando, em quase tudo, a epopeia de seu pai como regedor e defensor do reino, face não só a Castela, mas também aos membros da alta nobreza que a ela se uniram. Fora o então já velho Fernão Lopes quem legara à nação a crónica dos acontecimentos, narrados em quadros vivíssimos, em que o autor se envolveu com evidente paixão. Por isso, D. Pedro o fez representar, ao fundo, junto dos membros do clero, no painel central direito, tendo uma das suas crónicas debaixo do braço, certamente a de D. João I. Mas, subtilmente e com a inteligência e grande capacidade de síntese características do infante, fez também retratar, junto do cronista da palavra escrita, o outro cronista, da pintura, o autor do políptico, que por ela deixava à posteridade os rostos dos homens dessa segunda guerra pela independência do reino, novamente contra Castela, camuflada em Aragão (os Infantes de Aragão eram castelhanos e era Castela o principal alvo das suas ambições) e contra a alta nobreza que a eles se aliava, de novo. Fernão Lopes imortalizara a épica da cidade de Lisboa na sua Crónica de D. João I; o pintor da célebre família dos Gonçalves imortalizava tais heróis épicos pela grandeza, realismo e beleza da sua pintura. Dois registos cronísticos diferentes, na glorificação dos mesmos heróis (os habitantes de Lisboa), em ambiente épico, legado ao futuro e à nação, para que lhes seguisse, sempre, o exemplo.

Falemos, por fim, do contexto religioso, da sua mensagem fundamental. O texto exibido pelo Santo é uma muito significativa passagem do Evangelho de S. João (Jo 14, 28-30)[18]. Jesus Cristo invoca o Pai, glorificando-o e afirmando que o Príncipe deste Mundo (as forças do Mal) nada pode contra si ― momento em que D. Pedro declara a sua confiança na vitória sobre os inimigos que se opunham a si e aos seus projetos de independência e de modernização do país; contudo, logo uma segunda afirmação altera a primeira: que o mundo saiba que Ele veio para fazer a vontade do Pai e não a sua. Tal era a disposição espiritual do infante-regente, plenamente consciente dos objetivos e do ódio dos seus inimigos, numa paráfrase muito clara do Pater Noster, a única oração legada à Igreja pelo seu Mestre, à qual quer ele, quer D. Duarte, quer o mártir de Fez, quer possivelmente D. João (veja-se o baixo-relevo do Calvário, que escolheu para o seu túmulo no Mosteiro da Batalha) tinham uma devoção especial, interiorizando plenamente a profundidade vivencial do texto.

Considerados todos estes aspetos, políticos, culturais e religiosos, quer contextuais, quer decorrentes da personalidade e da vivência religiosa do infante D. Pedro, defendemos que a personagem em destaque nos dois painéis centrais não é secundária, mas domina totalmente todo o políptico, pela mensagem que nele se quer transmitir. Tal personagem é o próprio Jesus Cristo, nas suas vestes gloriosas de damasco ou mesmo brocado de seda, retratado como um eterno jovem (porque eterno renovador da humanidade, conduzindo-a no Bem, contra as forças do Mal), claramente identificado pelos três atributos bíblicos com que foi cuidadosamente retratado, de acordo com o Salmo 110 (109)[19]: Profeta (a mensagem bíblica exibida); Sacerdote (a casula gótica, veste sacerdotal, e não a dalmática diaconal); Rei (o cetro). Nos ladrilhos de mármore, a seus pés, encontra-se o molhe das cordas da Paixão e Morte, vencidas pela Ressurreição do Cristo glorioso, como é representado. Complemento da mensagem dada a Lisboa, e através dela a todo o reino, afirma-se a esperança num futuro de paz social e política, através da proteção das suas forças militares (o condestável e o capitão-mor do mar); mas também da defesa da cidade de Lisboa, duas vezes épica pelo protagonismo evidenciado nas duas grandes crises de 1383-85 e de 1438-1445 (altura da feitura do políptico), na pessoa do seu alcaide-mor, Álvaro Vaz de Almada, que assim acumulava este cargo com o de capitão-mor do mar, pela sua honrosa carreira de militar, amigo fiel na vida e na morte, que D. Pedro fez retratar em espelho no painel central direito, a quem conseguiu que fosse dada a honra de cavaleiro da Ordem da Jarreteira, em 1445, como ele próprio era desde 1427. Todas as classes convivem e se distribuem harmoniosamente no espaço, nas suas roupas identificativas, nos seus rostos, serenos ou rudes e toscos, em retratos realistas dos homens que eram, os vivos, segundo o grande projeto que D. Pedro sonhara para o seu país, o seu Desir/sua divisa, já explicitada claramente no seu Livro da Vertuosa Benfeytoria.

 

Conclusão

O infante D. Pedro foi, efetivamente, um segundo D. João I. Sem a sua coragem e a sua fidelidade total ao projeto herdado do pai, Portugal teria perdido a sua independência, face à pressão brutal e sistemática dos Infantes de Aragão, que teriam destruído o reino, da mesma forma com que o tentaram fazer em Castela, no reinado de Juan II, ou em Navarra, destruída pela ação violenta e ilegítima de Juan, principal responsável pela efetiva perda da independência do pequeno reino ibérico.

Os Painéis de S. Vicente de Fora, encomendados pelo Regente e terminados cerca de 1445, testemunham a épica do protagonismo da cidade de Lisboa, através do seu apoio incondicional ao infante e à sua política inovadora, na qual viam a plena fidelidade ao projeto de governação do amado D. João I.

É tempo de a nação portuguesa o reconhecer.


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[1] CHAM-FCSH-Universidade NOVA de Lisboa; CLEPUL, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa.

[2] CHAM-FCSH-Universidade NOVA de Lisboa; CLEPUL, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa.

[3] Veja-se o documento notarial passado pelas autoridades municipais de Pádua ao Infante D. Pedro, em 13 de abril de 1428, referido pela primeira vez em Portugal por Leite de Faria, na sua tradução do latim, em 1964, e publicado também, pela primeira vez, em 1961, pelo Professor Paolo Sambin, da Universidade de Pádua, Almeida e Albuquerque, 2000: 71-72.

[4] O exemplo clássico é O Príncipe, de Nicolau Maquiavel.

[5] A biografia de D. Carlos (cf. Dezert, 1999) é um excelente documento sobre o século xv ibérico, nas suas fúrias avassaladoras pelo poder, num total e trágico pisar das mais elementares leis, suportes de um estado de direito, em que a ambição ilimitada e ilegal dos mais fortes, porque os mais violentos e cruéis, esmagaram impiedosamente os mais cultos e mais bem preparados para, em paz, governarem os estados, segundo os princípios já proclamados pelos grandes autores da Antiguidade Clássica e pelos Padres e teólogos do Cristianismo. Exemplos gritantes desse esmagamento foram o infante D. Pedro de Avis e D. Carlos de Navarra/Aragão.

[6] As cartas enviadas de Aragão para Portugal, quer por Alfons V, quer, sobretudo, por D. Maria, sua mulher e sua lugar-tenente durante os longos e demasiado frequentes períodos de ausência do rei em Itália, são impressionantemente numerosas ao longo dos 15 volumes de documentos publicados por António Joaquim Dias Dinis, em Monumenta Henricina. Mais espantoso ainda é o tom de superioridade e de sobranceria com que procuravam interferir na política portuguesa, o qual se acentuou após a morte de D. Duarte e durante toda a regência de D. Pedro, que manifestamente odiavam.

[7] São muito esclarecedoras as posições de firmeza que D. Duarte tomou na defesa da autonomia das catedrais e igrejas portuguesas e das ordens militares em relação a Castela, bem como do direito de conquista de novos territórios em África, que Castela disputava com Portugal junto do volúvel papa Eugénio IV. Sobre o assunto ver, por exemplo, SANTOS, D.M.G. (SJ) (1960). D. Duarte e as Responsabilidades de Tânger (1433-1438). Comissão Executiva do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique. Lisboa. Também na Monumenta Henricina existem vários documentos das cartas trocadas entre o corajoso e indignado D. Duarte e o delegado papal para Portugal, D. Fr. Gomes, e do próprio papa Eugénio IV ― além de outras dirigidas aos bispos do Porto e de Viseu, presentes no Concílio de Basileia ―, com duras críticas e mesmo ameaças feitas ao papa; sobretudo de março, maio, junho e julho de 1437. Cf. Dinis, 1964, VI (1437-1439): 32-35, 44-53, 68-76 e 79-81).

[8] O arsénico, «o rei dos venenos», como ficou conhecido, apenas foi isolado e identificado quimicamente pelos testes do cientista inglês James Marsh, na década de 1830. Até aí fora largamente usado nos assassinatos, sobretudo políticos, ao longo da História, desde a Antiguidade Clássica pelo menos, pois não se detetava nem na comida, nem na bebida, sendo confundido com a peste ao longo da Idade Média (cf. Emsley, 2006: 140). O livro de John Emsley, The Elements of Murder (2006), é esclarecedor quanto aos vários venenos usados e sobre algumas das suas vítimas, sobretudo inglesas.

[9] A biografia de D. Carlos foi publicada por du Dezert em 1889. É muito provável que o autor não tivesse tido conhecimento da descoberta de James Marsh e, muito menos ainda, das variadíssimas e muito diversificadas manifestações da presença do arsénico nos corpos das suas vítimas mortais. Contudo, a debilidade progressiva do príncipe D. Carlos de Viana, referida pelo seu biógrafo, e correspondendo aos seus períodos de cativeiro na corte do pai e da madrasta, é um facto muito significativo deste tipo de envenenamento. Após a sua libertação, em Barcelona, sob a proteção dos catalães, a sua saúde parece ter momentaneamente melhorado, parecendo corresponder a um período de interrupção no administrar do veneno. Mas o processo anterior fora suficientemente longo e intenso para lhe afetar órgãos vitais, como os pulmões, que lhe foram encontrados totalmente destruídos. Não estando isolado quimicamente, facilmente se confundia com outras causas de morte. Outra das características da sua presença nos corpos das vítimas era a conservação dos cadáveres, exatamente o caso de D. Carlos, tal como, em Portugal, viria a acontecer com o corpo do rei D. João II. Não esqueçamos que o arsénico é um dos elementos usados no embalsamamento das aves, tornando mais eficaz a sua conservação, depois de retirados os órgãos. Tal informação foi-nos dada diretamente por um desses embalsamadores.

[10] Sobre a contínua pressão exercida pelos Infantes de Aragão sobre o primo, Juan II de Castela, fomentando revoltas dos vários «bandos» da nobreza castelhana e cavalgadas de destruição dos campos e suas culturas, deixando atrás de si um contínuo rasto de miséria e de profunda insegurança política, veja-se sobretudo Carrillo de Huete (2006), Mata Carriazo (1940) e Porras Arboledas (2009). Em relação a Portugal, além da importante informação colhida nos documentos publicados por Dias Dinis em Monumenta Henricina, a que já fizemos referência anteriormente, veja-se também Pina, 1977: 577-881, especialmente 587-759.

[11] Ver supra nota 6.

[12] Veja-se a vergonhosa derrota sofrida pelos Infantes de Aragão na batalha naval de Ponza/Itália, em que foram completamente esmagados pela armada genovesa, em 5 de agosto de 1435, tendo sido presos três dos irmãos — Alfons V de Aragão, Juan, rei consorte de Navarra, e Henrique, mestre de Santiago, além de muitos fidalgos aragoneses: «[…] a manos de la flota genovesa, que demonstró su pericia frente a la arrogancia aragonesa. Cayeron prisioneros los tres hermanos […] fueron llevados a Milán, donde fueron muy bien tratados e dejados en libertad por el duque Visconti, quien ganó la amistad aragonesa a costa de perder la alianza genovesa» (Porras Arboledas, 2009: 176-177).

[13] Salienta-se, neste sentido, o Memorando de Alfons V de Aragão ao seu embaixador enviado a Portugal, no qual, entre outros assuntos, propõe o casamento de uma das infantas com o duque de Clèves, sobrinho do duque de Borgonha, Filipe o Bom, pois a duquesa D. Isabel (irmã muito querida do Infante D. Pedro, que acolhera maternalmente três dos seus filhos depois de Alfarrobeira) queria casá-lo (como casou) com D. Beatriz de Coimbra, filha de D. Pedro, que então vivia na corte borgonhesa: «E en esto quiera priestamente deliberar e secretamente, porque el dicho ssenyor rreey dAragon es auisado que la duquessa de Borgonya, por su poder, trabaia de fazer este matrimonio com vna de las fijas del jnfante don Pedro de Portugal e que, considerado quanto la descendência del dicho jnfante don Pedro es enemiga e odiosa a ellos, dichos rreyes [de Aragão] se deuen fforçar de deuiar toda manera de exalçar aquella» (cf. «Documento 7, de 3 de janeiro de 1451», in Dinis, 1970: 12).

[14] Cf., por exemplo, o Documento 210, de 5 de dezembro de 1448, in Dinis, 1968: 343-344: «Extracto de carta da rainha D. Maria de Aragão, escrita de Perpinhão ao conselheiro e seu tesoureiro D. Galcerán Oliver, a dizer-lhe constar que o infante D. Pedro de Portugal teria entrado em Castela e que havia grande divisão entre os reis de Castela e de Portugal, o que não é verdade (Tot aço coses dites contra veritat.); entretanto, que ele espalhe o boato, menos a el-rei seu marido, a não ser que este lho ordene, mas sempre com cautela, para que não se diga que se procede astuciosamente (sseruant, en aço, aquella cautela ques pertany, affi que nos pogues dir que stuciosament se diu)».

[15] A situação de miséria de D. Leonor em Toledo é referida pelo cronista Rui de Pina e comprovada pelas cartas de Alfons V e de D. Maria, reis de Aragão. Cf. Dinis, 1974, sobretudo o «Suplemento» (1414-1461).

[16] É notória a semelhança física do jovem D. Jaime com o retrato do irmão mais novo, D. João de Coimbra, Príncipe de Antioquia pelo seu casamento com a herdeira do trono cipriota, Carlota de Lusignan, mas que não chegou a ser rei de Chipre, por ter sido envenenado. Cf. o retrato de D. João, em Freitas, 2011 (imagens, quarta página central).

[17] Cf. Documento 119, de 20 de fevereiro de 1456, in Dinis, 1971: 241-244.

[18] Pater maior me est. / Et nunc dixi uobis / priusquam fiat, ut / cum factum fuerit, credatis. / Jam non multa loquar uobiscum, / uenit enim princeps mundi; / hujus et in me non /habet quicquam, / sed ut cognoscat / mundus quia diligo / patrem et sicut mandare [«O Pai é maior do que eu. / Eu vo-lo disse agora, /antes que aconteça, para que / quando acontecer, creiais. / Já não conversarei muito, / pois o príncipe do mundo vem; / contra mim ele nada pode, / mas o mundo saberá que amo o Pai / e faço como o Pai me ordenou»].

[19] «Disse o Senhor ao meu Senhor: / Senta-te à minha direita / até que ponha os teus inimigos debaixo do escabelo dos teus pés. / Desde Sião o Senhor estende o teu cetro poderoso / e dominas os teus inimigos. / A ti o principado no dia do teu nascimento, / as honras sagradas desde o seio, / desde a aurora da tua juventude. / O Senhor jurou e jamais se arrependerá: / “Tu és sacerdote para sempre, / segundo a ordem de Melquisedech”. / O Senhor está à tua direita, / ele esmaga os reis no dia da sua ira» (Salmo 110/109, 1-5). O Salmo abre com as palavras proféticas do Senhor, declarando ao rei e sacerdote a vitória sobre os seus inimigos. A partir deste Salmo, a tríplice dimensão (profética, régia e sacerdotal) foi aplicada a Jesus Cristo.