ALFREDO SOARES-FERREIRA
Em tempos não muito longínquos, quando se ouvia uma estação de rádio e um qualquer ruído perturbava a audição, dizíamos que a onda estava dessintonizada, ou seja, que havia ocorrido um desajuste de frequência, no emissor ou no próprio receptor. A dessintonia está relacionada com o abandono de uma situação de harmonia e pode ser entendida, em termos sociais, como uma demissão, desistência ou mesmo renúncia a algo previamente entendido como adquirido. Os dessintonizados assumem a qualidade de desarmonizados, por saírem da situação de harmonia, ou até incompatíveis por, de forma voluntária ou induzida, se manifestarem simplesmente contra. Do outro lado estará provavelmente o designado consenso, dado que a sua proposta manifesta quase sempre vontade de encontrar uma solução, ainda que sacrificando ideias, princípios ou métodos. A viabilidade em obter um consenso é, muitas vezes, obliterada pela resistência das partes em litígio ou porque se desenha no horizonte uma hipótese mais favorável, ou simplesmente porque uma delas acaba por desistir.
Um dos consensos mais “famosos” da História recente é o chamado Consenso de Washington. Data de 1989 e foi gizado pela “bondade” das instituições financeiras para uma suposta “ajuda” aos países em desenvolvimento, através da “receita” conhecida como “ajustamento macro-económico”, com a chancela do Banco Mundial e do Departamento do Tesouro dos EUA e, claro está, do FMI. O consenso aqui não envolve propriamente partes em disputa, mas apenas a parte que se julga capaz de ditar leis, por uma qualquer suposta superioridade que, começando por se manifestar no plano económico-financeiro, passa rapidamente para o plano moral, impositivo e correctivo. Vale a pena relembrar as recomendações do dito “consenso”, que incluía privatizações e reformas fiscais, cortando gastos do Estado, diminuindo salários, reduzindo impostos às grandes empresas, terceirizando a maior parte dos serviços e mais uma série de medidas restritivas para supostamente promoverem a diminuição da dívida pública dos países. O melhor exemplo da imposição do dito “consenso” assentava na premissa da recusa ao acesso a financiamento e ajuda internacional quer do próprio FMI, quer ainda dos EUA. Aliás, todas as “receitas” de liberalização, desregulação e privatização, enformavam ideias, conceitos e práticas típicas do “capitalismo tardio”, classificação que a Escola de Frankfurt e, muito particularmente o filósofo e sociólogo alemão Theodor Adorno, estudou e catalogou e que o economista belga Ernest Mandel desenvolveu na sua obra de 1972, “Capitalismo tardio – uma tentativa de explicação marxista“. O jornalista norte-americano Joshua Ramo, contrapôs àquele “consenso”, um outro, na sua obra “The Beijing Consensus” de 2004, contestando a influência ocidental em África e contribuindo para a bipolarização entre as principais potências norte-americana e chinesa. Para Ramo, a justificação desta posição tem a ver com a falência do que considera ser o fatigado modelo de desenvolvimento tradicional, ou seja, o neo-liberalismo. Um último exemplo de “consenso”, data do ano 2006, quando é assinada um declaração conjunta entre o Conselho Europeu, a Comissão Europeia e o Parlamento Europeu, estabelecendo o chamado Consenso Europeu sobre o Desenvolvimento. Tal assinatura vem na sequência do acordo obtido seis anos antes (2000) para os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio que, até 2015, iriam supostamente, contribuir para “a eliminação da pobreza no contexto do desenvolvimento sustentável”, uma pretensa “obrigação comum para com todas as pessoas do mundo, especialmente as mais vulneráveis e, em particular, as crianças do mundo a quem pertence o futuro”. São conhecidos os resultados.
“Com tanto consenso que não o é, podemos ficar à mercê de uma ditadura que, não o sendo, acaba por parecê-lo.“
Parece evidente a existência de uma dessintonia na acepção consensual. Ou porque o consenso não reúne as características necessárias para o ser, ou porque as partes o interpretam cada uma a seu gosto, iludindo o cidadão, que naturalmente é confundido e enganado. Como por exemplo na questão da discussão do Orçamento 2025. Depois de toda a sua abjuração, o Partido Socialista decide, sob proposta do seu Secretário-Geral datada de 17 de Outubro, abster-se, deixando assim passar a proposta da Direita, quando for apreciada na Assembleia. Ao tomar esta “estranha” posição, precisamente porque renega o seu conteúdo, o PS não só cauciona o Orçamento, como também o governo que o propõe. Por muita deambulação mental que possa construir, a realidade é essa. Este será, pois, um caso transviado de uma dessintonia consensual, que ajuda a desconstruir a propalada tese do centrão político, ávido de exercer o poder e que é sôfrego na sua ânsia nada disfarçada. Um consenso que pretende sê-lo, que está (ou parece estar) permanentemente dessintonizado.
Um blogue que normalmente se dedica à análise da situação social e política da Guiné-Bissau, ostenta o curioso título de “Ditadura do Consenso”. Com tanto consenso que não o é, podemos ficar à mercê de uma ditadura que, não o sendo, acaba por parecê-lo.
Parece que encontramos sempre na Poesia uma resposta para muitas questões, nomeadamente para a dessintonia. A esse propósito, registamos o esforço do escritor António Miguel Ferreira, que ganhou em 2020 o Prémio Ulysses, com o livro “O Consenso das Palavras Impossíveis”.
Em Electricidade a questão da dessintonia resolve-se com a instalação de módulos próprios para reduzir os níveis de distorções harmónicas, evitando interacções desnecessárias com o sistema de distribuição eléctrica, que causam perdas de tensão na rede. No campo social não são conhecidos módulos para a dessintonia, muito menos para a consensual. Talvez porque não exista (ainda) consenso quanto à teoria do consenso.
In Diário 560