A desditosa sorte de João Comum

 

ANTÍMIO DAMIÃO


Antímio Damião (Portugal). Autor / Desenhador Gráfico e Ilustrador / Licenciado em Filosofia pela NOVA/FCSH


A desditosa sorte de João Comum começou no dia em que o dualismo cartesiano o mandou às malvas e o seu braço esquerdo ganhou vida de repente e recusou-se a obedecer. Ao princípio, foram umas tremuras leves, um formigueiro no corpo todo, e, logo depois, o descontrolo do membro superior. João agarrou neste com a outra mão e esperou que o braço se acalmasse. A seguir, veio o alívio, a recuperação progressiva da autonomia braçal.

Na manhã seguinte, João foi consultar um clínico da especialidade, que lhe apontou a fadiga extrema e a tensão alta como causas do insólito fenómeno. Andava a trabalhar de mais, disse o médico a João Comum, tranquilizando-o. Passados uns dias, a reincidência dos sintomas levou-o a pedir uma segunda opinião médica. Desta vez, disseram-lhe que a doença, para além de rara, era incurável. João, desesperado, pensou em amputar o braço, mas, em vez disso, concentrou-se nos prazeres simples da vida e, com o tempo, descobriu que o membro lesava apenas os que mais amava. E quanto maior o apreço por alguém, maior a insubmissão do braço. Por tal motivo, isolou-se de grande parte dos seus entes queridos e, escusado será dizer, a sua qualidade de vida piorou consideravelmente. Amor e paixão eram-lhe inúteis, bem como os sentimentos, que de pouco ou nada serviam. Para além disso, o braço reagia contra as mulheres que João Comum mais cobiçava, impedindo-o de estabelecer qualquer tipo de contacto delicado e íntimo com elas, levando-o, assim, a ganhar fama de misógino e homossexual. De igual modo, João não previa os ataques pulsionais do braço, daí resultando a enorme frustração que o deprimiu sobremodo. Em último recurso, tentou fazer amor com indivíduos do mesmo sexo, mas a repulsa foi tanta que depressa desistiu da ideia, acabando por rejeitar a abordagem. Por mais que tentasse, não apurava forma de remar contra a maré nem de contrariar, um pouco que fosse, a autonomia crescente do braço.

Entretanto, viviam-se tempos difíceis; tempos de um autoritarismo atroz e de uma completa inversão dos valores humanos. A tragicomédia social crescia a olhos vistos e já nada oferecia de cómico. O mundo convertera-se num manicómio administrado por um bando de fanáticos e pelas forças da ordem que cegamente lhes obedeciam. Os mais discernidos optavam antes pelo suicídio ou pela clausura em vez de enfrentarem um mundo demente e incompreensível. E embora a diversidade e a tolerância se difundissem com acelerado vigor, a irracionalidade, a intransigência e a hipocrisia floresciam, bastando, para tal, o uso esclavagista da máscara da falsidade e da estupidez. Chamar as coisas pelos nomes tornara-se impossível e inaceitável. A tirania, o controlo e a propaganda disseminavam-se como o fedor irrefreável de um cadáver a céu aberto. A difamação, a mentira, a denúncia e o mau gosto reuniam a preferência de todos, sobretudo a de jornalistas, políticos e médicos. Na verdade, ninguém queria, ou admitia sequer, vir a ser objecto de exclusão social.

No meio deste cenário desprezível e inconveniente, o braço de João Comum continuou a amotinar-se. Tanto que, a dada altura, desafiou o outro braço, ao ponto de chegarem a vias de facto. Todavia, a contenda depressa terminou, visto ser mais proveitosa a união de ambos os braços que a sua discórdia. Assim, com uma firme mãozada, os braços concordaram em unir-se contra a vontade de João Comum. Dias mais tarde, para tormento deste, juntaram-se-lhes as mãos. Com isto, a fome e os ferimentos tornaram-se frequentes. Para contrariar tal tendência, João Comum, a cada refeição, amarrava-se à cadeira da mesa da cozinha e atirava-se de boca aos alimentos que Maria, sua irmã, lhe passou a dar com vagar e paciência, todos os dias, aceitando ela, ao mesmo tempo e a custo, a desordem provocada pelos membros superiores do irmão. Porém, quando este acordava sozinho e faminto a meio da noite, arrastava-se pelas divisões da casa, à procura de comida, acotovelando tudo o que se lhe deparasse defronte e sem saber ao certo como remediar a danosa situação, que, para mal dos seus pecados, se agravou semanas depois com a adesão das pernas à rebeldia dos membros de cima, fruto dos pontapés deferidos sem razão no marco do correio da esquina e no traseiro debilitado de uma velhinha que ia a passar.

Posto isto, a família Comum colocou a hipótese de o cometer a um hospício. Enquanto avaliavam seriamente a decisão, os ouvidos de João Comum escureceram e encolheram-se, logo surgindo em sua vez e acima deles uma saliência cartilaginosa e pontiaguda em cada lado da cabeça. Do mesmo modo, os olhos avermelharam-se e, através de uma expressão de raiva normalmente verificada no símio mais colérico, as narinas de João Comum alongaram-se como dois ânus em prolapso. Olhando para ele nesta fase, dir-se-ia que a fealdade mais asquerosa e a aberração mais intempestiva o haviam tomado sem remitência. Para mais, os seus pêlos cresciam ao desbarato e em certas áreas do corpo, sobretudo no tronco e nas axilas.

Os amigos, incrédulos, coçaram a cabeça e perguntaram-se como era possível que João Comum, sujeito ordeiro, de competente rectidão, conservador impoluto e de estimado respeito, se convertesse pouco a pouco numa monstruosa criatura. Estariam eles a ver coisas, iludidos e manipulados a contragosto pelo que os outros diziam do amigo ou, por outro lado, não havia forma de negar aquela situação absurda, macabra e dolorosa que, tal como a imagem do corpo que ao longo do tempo se degrada diante do espelho, servia de prova inequívoca e sincera à mais cruel realidade?

Fosse como fosse, João Comum, levado pela bizarria daquela doença, reforçou a reclusão e arranjou forma de assentar arraiais na cave, saindo apenas de madrugada e pelo alçapão que dava para o horto do quintal. Triste sina a sua, comentaram os vizinhos, que, durante a noite, o flagravam, de quando em quando, de orelhas arrebitadas e cabeça alçada assomando pela porta velha do alçapão.

Pelo que se soube, Capelo Hábil, ilustre cientista e professor universitário, foi o primeiro a investigar a fundo e em pessoa o estranho caso de João Comum. Ao dar-se conta dos boatos que circulavam por toda a cidade acerca de um homem que, lentamente, se vinha transformando numa besta aberrante, aproveitou o ano sabático concedido pela faculdade onde leccionava, tomou os transportes públicos até à rua de João Comum e, apeado a centenas de metros da casa deste, subiu, a medo, a ladeira até lá. Uma vez à entrada da casa, de nada lhe serviu tocar à campainha ou bater à porta, pois João não pretendia atender sob qualquer pretexto. Por sua vez, Capelo consultou o vizinho do lado, que logo o recebeu com presteza e simpatia depois de o estar espreitando havia muito atrás das cortinas da janela. O vizinho prometeu ajudá-lo e comprometeu-se a servir-lhe de guia, informando-o das loucas dietas que João Comum levava a cabo na calada da noite, compostas de restos de comida deixados nos caixotes do lixo nas traseiras dos restaurantes.

Acabado o paleio, Capelo Hábil, logo seguido do vizinho, contornou a casa de João Comum e, transposta a cerca do quintal, entreviu a porta do alçapão entre dois arbustos mirrados, uma torneira a pingar e um tanque de pedra rachado. E para lá se dirigiu, assaltado pela verborreia incansável do vizinho, que, como uma lapa nas suas costas, não se calou uma vez que fosse. De facto, enquanto a maioria dos homens sensatos prefere a calma e o rigor no falar, o vizinho, pelo contrário, tendia a dar à língua como se de uma assentada pretendesse recitar o dicionário todo.

Valeu a Capelo a chegada de Maria Comum ao local, pronta a dar de comer ao irmão e indignada com aquela invasão àquela hora do dia. Por tal razão, interpôs-se, chorosa, entre o professor e o alçapão, pedindo carecidamente ao distinto intelectual que reconsiderasse o que ali viera fazer e que terminasse de imediato com aquela farsa intrusiva. O pobre do irmão merecia ser deixado em paz, bradou ela, pois já muito sofria ele. Capelo Hábil, indeciso entre expugnar à força o covil de João Comum ou o corpo voluptuoso da irmã deste, acabou por acatar as ordens de Maria, sobretudo por causa das fantasias que o corpo dela lhe suscitou. Como um rapazinho educado, ouviu-a com atenção, importunado de quando em vez pelas especulações do vizinho que, ciente de ter sido relegado para segundo plano, fez gato-sapato da cena. Este, avezado que estava à sua própria versão dos factos, disse conhecer João Comum melhor do que ninguém, na medida em que estava a par dos pormenores mais sórdidos e polémicos da vida do vizinho. Na verdade, acrescentou ele, Maria mentia com todos os dentes que tinha na boca, uma vez que queria a todo custo salvar a pele do irmão de um possível linchamento público. Ao que parece, João Comum andava a sair dos eixos no que dizia respeito à abstinência forçada a que se propusera em relação aos prazeres carnais. Segundo o vizinho, João saíra imenso nos últimos dias porque andava à cata de fêmeas. Nada de grave, replicou o professor, pois, ciente do seu enorme saber, mercê de anos de estudos aplicados, via apenas normalidade nessa conduta propensa a todas as bestas. Inclusive, dada a desumanização de João Comum, sabe-se lá que tipo de mulher lhe passara a agradar. De resto, se algo de mau tivesse acontecido ou estivesse para acontecer — um estupro ou um assédio mais violento, por exemplo — seria fruto da animalidade que crescia dentro dele e que o intimaria, decerto, a agir de forma imprópria num futuro próximo.

Ora, quer o vizinho, quer Maria Comum aceitaram a tese do professor e decidiram não confrontar João Comum com esse assunto tão melindroso. Ainda assim, era absolutamente necessário saber se João era ou não responsável pelo alarmante número de estupros que, de dia para dia, cresciam por toda a cidade e que, curiosamente, tinham lugar por volta da mesma hora nocturna em que ele saía de casa para ir espairecer. Apesar da dúvida, este conflito científico e ético foi, por momentos, posto de parte. Todavia, mal sabiam os três conflituosos que João Comum os espiava pela frincha da porta do alçapão e receava que a irmã, sangue do seu sangue, conspirasse contra ele na companhia do vizinho e daquele intruso grisalho e de óculos que ele nunca vira na vida e que, nesse instante, pisava a terra semeada do horto. Com efeito, a possibilidade de vir a ser rejeitado por todos, sobretudo pelas pessoas que amava, entristecia-o tanto quanto o enlouquecia. Se assim fosse, deixaria de ter com quem falar, de poder dar-se com os outros, de ter uma vida boa, de viver como uma pessoa normal. Mas, o que se entende realmente por “normal” ou por “vida boa”? Que tipo de normalidade ou normalização se impõe ou se pode impor em sociedade? Pensando bem, os feitos mais impressionantes dos homens devem-se, na sua maioria, a personalidades irreverentes e singulares, avessas a normas, etiquetas, fórmulas e paradigmas. Seria João uma dessas personalidades? Por mais que pensasse, chegara ao ponto de acreditar somente no instinto e no senso comum. Não obstante, provido de mais tempo para si, procurara há dias na enciclopédia lá de casa e na internet qual o animal em que ele se transformava. Ao fim de muitas leituras, e dadas as mudanças físicas de que padecia e que lhe dificultaram a pesquisa, encontrou na hiena castanha o resultado exacto das suas buscas.

(A hiena castanha é um animal solitário e peculiar que vive nas savanas e nos desertos do sul africano. Como todas as hienas, é um ser necrófago, acostumado a carcaças de animais mortos, mas difere em parte daquelas por se alimentar também de ovos, insectos, fungos e fruta, e pela forma como se organiza hierárquica e territorialmente, em clãs de quatro a seis membros, como os lobos. Além disso, não tem pouso fixo nem uma época específica de acasalamento.)

Ora, a metamorfose de João Comum, ainda que desconfortável e capaz de ferir susceptibilidades à vista desarmada, era, ao fim e ao cabo, uma vantagem séria e a ter em conta no inferno social de então, visto que, caso a transformação se desse até às últimas consequências, isto é, se se viesse a revelar total e irreversível, ele passaria a ser, de uma vez por todas, uma besta peluda, autónoma, com apetência natural para a subsistência e dona de um faro invejável, livre o suficiente para escolher qualquer paradeiro e matar e comer o que bem entendesse — ou seja, o sonho de todo o cidadão ou contribuinte amordaçado pelas regras e restrições sociais.

Assim, à medida que os três no quintal discutiam sobre qual a melhor maneira de resolver o imbróglio de João Comum, este aproveitou a oportunidade e, em pelota e vestido apenas com um sobretudo apesar do calor que se fazia sentir, escapuliu-se pela porta da frente e correu ladeira abaixo, o vento arejando-lhe o pénis vermelho e em processo de encolhimento. Estava livre, pensou ele, livre para ver e correr mundo como um animal selvagem, livre para defecar ao deus-dará e sempre que tivesse vontade, para se regalar com o sangue dos mortos como um depravado, para rir sem reserva, para esquecer o que fora e abraçar com agrado o que viria a ser, livre do condicionamento e confinamento sociais, livre de uma vida até aí sem sentido enquanto membro servil da sociedade humana.

Por fim, tal como previsto, transformou-se num magnifico espécimen da raça das hienas castanhas, e quaisquer traços físicos de humanidade que pudesse guardar ainda desapareceram por completo. No entanto, foi apanhado em descontraído passeio na avenida principal por um bando zeloso de agentes da autoridade em camisas cor-de-rosa. Por conseguinte, foi levado para o jardim zoológico e aí ficou, cativo atrás das grossas e sólidas barras de ferro de uma jaula, mais visto por quem errava no itinerário da visita do que por quem desejava vê-lo. Apesar de tudo, alegrou-se como nunca ao perceber que nada muda e que, afinal, estava do lado errado da história. Depois, riu de bom grado, no seu riso de hiena, ao miúdo tímido, sardento e de uniforme rosado que parou a olhar para ele, à luz suave do fim da tarde.