A Decisão

 

JOÃO PEREIRA DE MATOS


Eis o momento da decisão. Um único momento. Um que nem antes nem depois pôde acontecer, mas que agora, só agora, o terei pleno. Compreendê-lo é impossível nas suas causas remotas porque, para tanto, teria de entender as suas causas, diria, que intermédias: não as próximas, que essas são simplicíssimas, porém aquelas um pouco mais distantes que não são, de igual modo, as causas últimas (essas ninguém conhece, seria demasiado complicado perceber cada elemento da vasta tessitura causal que, compondo uma imagem coerente e total, explicasse o porquê, no aqui e já) quando, há muito, que se vêm congregando as razões de um outrora anterior a este que sou, que estão perdidas na nebulosa ancestralidade, não só familiar, mas de todo um povo de quem os meus antepassados provêm e poderei dizer até, de certo ponto de vista, que se estavam conjugando antes sequer de o primeiro hominídeo ousar erguer-se em dois pés; ou mesmo nos princípios do mundo e assim sucessivamente. Talvez só uma inteligência divina o lograsse com a sua consabida doida omnisciência, com a claridade que esta lhe confere ou uma estrutura maquinal que os vindouros saberão construir, de tal modo complexa que alcançará perscrutar no infinito de filigrana de tudo o que foi sendo, no ínfimo como no grande, que um e outro contribuem de uma maneira secreta, mas exacta para a explicação final: o vasto como agremiação de toda a pequenez, o grão que, conjuntamente com uma legião de outros, compõe uma constelação.

Seja como for, estas considerações de pouco ajudam a perceber sequer o longo fosso que se abrirá quando tentamos transpor a diferença entre as causas próximas, absolutamente sabidas, mansas e domesticadas e as causas distantes, inextricáveis, confusas, de uma ferocidade opaca que derrota quem lhes queira descortinar os porquês. Esse abismo é composto, então, pelas tais causas intermédias que flutuam, ladinas, entre um vislumbre toldado de incógnitas e essa tal opacidade semitransparente que, subitamente, se parece aclarar, como o vulto que o nevoeiro deixa aproximar-se revelando uma feição familiar. E, o que é mais estranho, é que esse incessante bailado de adumbramento e luz parece mais vivo e misterioso e fascinante e ansiogénico quando nos abeiramos das tais causas próximas. Eis que o acrescento de lucidez, seja pela aparente simplificação e encurtamento das lonjuras causais, seja porque chegámos ao que antes parecia remoto e, afinal, esse apuramento da vista é apenas uma ilusão, qualquer uma que seja a via. Pois a perplexidade nasce debaixo de cada pedra. Multiplica-se a dúvida quando se tinha a certeza. E é essa proliferação do engano que constrói um edifício de insegurança, pois ao topar-se com a fluidez do que se tinha por certo não se poderá jamais reconhecer a consistência de uma verdade até então ignota. Por isso, não se avança: se partirmos da mais lhana crença, dá-se dois passos e somos cegos, se contemplamos o horizonte longínquo corremos o risco de não perceber o que há debaixo do nariz. Assim, quando nos toca a urgência da decisão é uma paralisia viscosa que se instala, malsã.

Como poderia ser diferente? No passado, nem sequer sonhei que a decisão me seria exigida e perante a angústia dela só quis cogitar num futuro onde ela não existisse enquanto potência, mas apenas nas suas consequências, boas ou funestas, porém sendo a própria decisão irreversível, pois relegada, por um salto da imaginação e em definitivo, para a história da minha biografia. Tudo isto vos parecerá vazia elucubração e nada vos disse, até aqui, sobre o que tenho de decidir. Pois. Posso dizer-vos que não é, em si, uma decisão importante tendo, todavia, o potencial de influenciar todo o meu porvir. Não é importante, antes de mais, porque eu não sou importante: sou, pelo contrário, bastante modesto, e tímido. Não tenho a habilidade congenial daqueles que, parecendo um pouco humildes, souberam influenciar tanta gente, quase ao modo de eminências pardas que, refugiando-se na obscuridade de chancelarias, cafés ou salões foram, mais ou menos a contragosto, fios secretos da incrível tapeçaria da marcha da humanidade. E por isso o saber, mesmo não possuindo eu essa habilidade, não quero nem posso descartar a possibilidade desta minha decisão provocar efeitos que me transcendem. Até no meu pequeno mundo se passa o mesmo, a decisão pertence-me, mas eu também lhe pertenço. Não é coisa, aliás,  de vida ou de morte, nem minha e muito menos alheia; ecoa a morte, é certo, e concerne, radicalmente, à vida e é isso que é problemático. Depois da decisão tomada, esta vida que conheci, poderá alterar-se a ponto de ficar irreconhecível.

Não houve, nunca, uma luz que brilhasse com tal intensidade que dissipasse todas as dúvidas, como um fulgor de alvorada que afasta e relega para uma memória distante a neblina orvalhada da noite, escuridão opressiva de cegueira externa, símile tão puro da cegueira interna que acomete esta cansada humanidade que, aos tropeções, percorreu o mundo, também ela ferida pela dúvida, também ela tacteando pelas imagens de nitidez na escolha, também ela pedindo a todas as divindades, únicas ou múltiplas, supra ou infra terrenas, com semblante de animal rapace ou de mais humana catadura que, nem que seja por uma única vez, ilumine os terrores de uma essencial escolha. Mas, então como agora, estão esgotadas as preces, são inúteis os portulanos e os grimórios de obscura alquimia como vãs foram as elucubrações da razão que, por muito perfeita que seja, é — como vos mostrei — vara curta para tanta medição, pois qualquer cálculo fica aquém dos seus últimos objectivos. É certo que sem o raciocínio somos nada, mas este também se entorpece pela largueza do cosmo ou pela enormidade da tarefa. Por isso, deu em compartimentar-se, de focar cada coisa de per se, esquecendo, de cada vez, o que o rodeia e eu necessito, ao invés, da união de quanto saber exista ou, pelo menos, de poder seleccionar criteriosamente as noções que aqui, deveras, importam. Nem isso está ao alcance. Quero dizer, tal escolha carece de um compêndio preliminar que seria aquele que pudesse dizer «estuda isto, esquece aquilo» e que afirmasse também «estuda primeiro isto e depois aquilo» e rematasse «todavia, para entenderes o princípio fundador do que levo escrito, inquire, como premissa, essoutro tomo que contém a chave da minha cifra». Já adivinhastes que esta é, moto perpetuo, de mecânica impossível: quem garantiria que esse volume preliminar não aconselharia procedimento semelhante, remetendo-nos para ainda outro livro, gastando-nos a vida numa regressiva, indefinida e talvez infinita demanda pela raiz fundamental do vero saber, apenas para obter a informação prévia, mas necessária, quanto à opção a tomar sobre esta única decisão? E se uma vida não chega para essa recursiva viagem, uma vez obtido o porto seguro teria de se gastar outra vida para percorrer a direcção inversa mesmo que, agilíssimos, frequentássemos quantas bibliotecas houvesse na urbe e como a esponja marinha absorvêssemos a tanta vaga ciência ou consabida evidência para as transformarmos no instrumento preciso da nossa escolha.

Porém, a decisão não espera. E se não a tomasse? Não. Não o posso nem o devo fazer, porquanto essa seria a mais paradoxal das hipóteses. E a mais perniciosa. Em geral, nada decidir é, em si próprio, uma decisão pois as consequências existirão à mesma, às quais se acrescentará a culpa de, por omissão, as termos deixado acontecer. Acresce que esses efeitos omissivos estão, por completo, fora do nosso controlo porque ao decidir de modo resoluto e eficaz podemos, bastas vezes, influenciar o que acontecerá depois, ainda que sempre se mantenha uma margem para todos os imponderáveis que, tão inevitáveis como a decadência e a morte, se sucederão. Neste caso, ainda por cima, é mais grave. Se não decidir, decidirão por mim. Aqui já não é a difusa ordem da causalidade comum que forçará a minha mão ausente, será a vontade de outros, talvez indiferentes ao meu destino, talvez até malevolentes, que tomarão este encargo e que devido ou à indiferença ou a essa malevolência responderão ao repto com uma leviandade que jamais poderá augurar algo de bom. Esmagarão os meus interesses — afinal, o que lhes importa? — frustrarão as minhas expectativas sem perderem um minuto de sono. Em nada lhes interessa que podem condicionar o resto dos meus dias, que serão passados, certamente, a recordar o que poderia ter decidido e que, ao invés, foram eles que, tomando a pior decisão possível, são os responsáveis pelas amarguras e dissabores que teria de enfrentar e me fariam desejar retornar ao tempo, até ao maravilhoso momento, em que ainda podia decidir. E como ninguém torna ao que foi, maior seria a mágoa, mais completa a derrota, tão gigante o rancor que seria a espumar da boca ou romper de bílis, a víscera. Isto tenho por certo. Apenas não sei, apesar de tudo, o que decidir.

É pena que as potências profundas do sentimento não sejam de fiar. Se naquele momento decisório entro em sintonia com o sentir-confiança logo devo duvidar. É que o sentir-confiança, porque é um motor da acção apenas emocional, obnubila — como um ter-de-fazer — a dimensão crítica-racional, o sopesar criterioso dos prós e dos contras, de ter também em atenção a dimensão do «talvez», tantas são as incógnitas que proliferam sob o Sol. A convicção é loucura, certeza-desejo de exactidão para sempre negada, um melancólico saber-mo-nos na pele de Tântalo, embora o sustento seja o raciocínio voraz e a água que nos iria dessedentar a ânsia de compreender, mesmo que um pequeno, insignificante e até fútil detalhe de uma coisa qualquer. Quando avançamos, quando julgamos avançar, a certeza que possuíamos recede. Portanto, se o sentir-confiança provém dessa ilusória querença o sentir-dúvida é tão, ou mais, enganador. A dúvida paralisa. A dúvida gasta e a dúvida mói. A dúvida deixa-nos insones (insones para que a velemos). A dúvida vitupera o sentido do justo e do bom porque os não saberemos, já, reconhecer: o que parecia tão justo é pecaminoso e reduz toda a bondade a perigo malsão. A dúvida é a perversão máxima da paralisia, da indecisão. E, no entanto, quanto prodígio há na dúvida. Fulgor prometeico na cavalgada humana para o refinamento superior do engenho. Não fora por ela e nada seria da civilização. Mas eu não tive a ventura dessa dúvida construtiva, só do seu aspecto negro, destrutivo, de implosão das forcas da vontade, no gelar das pulsões da decisão.

Como se agir fosse grotesco, infirmar a ordem divina do livre arbítrio, macaqueando-o como símio insciente que apenas come e procria sem limite ou razão.

Sim, faço-vos esta genealogia da impotência decisória como fundamento único de quanta existência lúcida podeis querer almejar, já não da minha angústia, mas dela em geral, com o alcance de uma cosmogonia. Talvez nem ao bom Deus lhe seja permitido decidir após o sopro primeiro que instituiu este mundo. A sua perfeição é abster-se, a sua face revela-se, abscôndita, no fechar dos olhos ante o pecado e o erro. No insondável — até para ele — do arbítrio. Única acção e para sempre e talvez nem Ele exista ou perecesse por essa inutilidade e razão. Porém, ai de mim, por falta dessa majestade e potência não posso refugiar-me no não-ser, eximir-me deste transe. Adiar. Adiar sine die, por toda a eternidade, a cada vez mais urgente decisão.

A agonia de um cansaço todo e fundo. Um cansaço que, só por si e ele é tudo, me impede de sequer mexer um dedo, quanto mais tomar uma decisão e logo esta que congrega tantos estratos, complexa teia, onde as sobreposições de temas e questões de tão diversa ordem desenvolveram peculiares raízes pelas interligações, até aí insuspeitas, chegando quase ao ponto da incredulidade, onde um cristão se admira em como é curiosa a existência, em como assuntos tão díspares são, afinal, irmãos, convivendo com tanta facilidade entre si, não cuidando que só complicam a vida pois acrescentam novos níveis de complexidade e amplificam toda a terrível perplexidade que será, sem se saber como, ter de decidir.

Tentarei, no entanto, ser exacto, que a precisão é a limpeza da carne, mas para o espírito. Esta é uma decisão não cumulativa, ou seja, não é composta por um conjunto de pequenas outras decisões que, conjuntamente, produzam a integral escolha. É, ao invés, unitária porque não pode ser decomposta e, em rigor, também é binária pois é aquilo que se entende por dilema e, na estrutura, ternária, na medida em que, como vimos, a abstenção dela, ainda que de consequências catastróficas, é uma possibilidade.

Outro mais corajoso, jovem e persistente poderia mesmo chegar a uma quarta via na escolha, que será sempre aquela que, por todos os meios, tenta manter abertas as hipóteses que qualquer opção preclude. Isso exige uma acção rapidíssima. Envidar por um percurso e, a qualquer momento, arrepiar caminho, muito ainda a tempo de experimentar outro qualquer. Como se ninguém notasse. Porém, só talvez um semideus o lograsse fazer. Por quê, justamente, ele? Porque não tendo a presciência divina tem ainda algo da sua força e agilidade, se não para subverter, na totalidade, as leis do tempo, pelo menos, para o abrandar. Tal o prodígio dos seus pés. Eu não possuo esses dons. Se me enganar tenho apenas a vida para me arrepender: breve pela natureza mortal do homem, longa pela persistência da amargura. Porque esta decisão é, acima de tudo, definitiva e não transitória e nem ao menos tentativa. Uma vez tomada não há volta. Oh, antes houvesse, testar cada termo da alternativa, assim tivesse tempo, seria o modo mais seguro, talvez o único de evitar o engano.

É interessante pensar que, como com tantos ferimentos psíquicos, a emergência da decisão condensa e, simultaneamente, expande o tempo. O ter de decidir infiltra-se no quotidiano, mesmo quando, de momento, pretendemos evitar a questão, fazendo deliquescer as horas, que se arrastam, como agora, mesmo se demoram enquanto escrevo isto, sem deixar de causar infindável espanto com a celeridade de vermos aproximar-se aquele instante onde tudo se deverá decidir. Quase já não há memória daquele tempo, talvez longínquo, onde a necessidade decisória não era mais do que um esboço e mesmo quando começou a ganhar contornos definidos e até definitivos não havia urgência, essa data terminal jazia, algures, no futuro. Não. Não havia pressa. Calmamente, com um carácter abstracto e quase teórico poderia analisar cada ângulo do problema, os seus prós e os seus contras, os aspectos práticos, mas também as ramificações éticas, o contexto cultural e a envolvente social, sem descurar, como é óbvio, a dimensão económica, já para não falar nas repercussões um pouco mais mesquinhas, da comodidade ou do risco de dissabores que são o reverso amargo de qualquer confronto. O lapso em aparência longo mas, afinal, tão breve despersonalizava o assunto que, naquele momento, ainda me não dizia respeito, outrossim, a um decisor ideal, criatura sem rosto ou com todos os rostos da terra, mas nenhum deles o meu. Fulano que, ademais, saberia aceitar quaisquer consequências, alegres ou funestas, porque fundamente compenetrado de que tudo é decidível, da bondade intrínseca do que se decidiu ou, quando má a escolha, que é possível suportar o malogro com a boa consciência de um deus ou de um néscio. Depois, acreditei que, não sendo eu nem um nem outro, poderia, não obstante, usar de uma racionalidade bastante comum que, porém, por excesso ou por defeito, descobri não possuir.

Compreendam. Não sou um vulgar indeciso. Tenho em mim muitas decisões. Apenas não esta. Específica e historicamente aconteceu-me ver erguerem-se uma série de bloqueios.

Um fechamento singular de horizonte. Uma resistência à análise, um véu, diria mesmo de uma opacidade absoluta ou, de outro modo, de uma translúcida aparência que esconde radical velamento de onde provém a ilusão que é simples o que o não é. Distorção que seria ligeira e sem importância se não soubesse que o que é grande, o que é verdadeiramente grande, começa pequeno e por assim ser — porque o permitimos — é que atinge esta largueza de vastidão desumana. Quem consegue prestar atenção ao ínfimo que se transforma porque ousa o infinito? Quando isso infecta a exactidão do corpo e o difuso alcance da alma e se dá a ver e só então reparamos nele, já é tarde demais. E já qualquer decisão é impossível.


João Pereira de Matos