A confiança suplicante

 

 

 

 

 

 

Frei BENTO DOMINGUES, O.P.


  1. A 28 de Dezembro de 2023, foi publicada a Declaração Fiducia supplicans (Confiança suplicante) sobre o significado pastoral das bênçãos.

Segundo a sua Apresentação, esta Declaração considera diversas questões que chegaram ao Dicastério para Doutrina da Fé nos últimos anos. Ao preparar o documento, o Dicastério, como é sua prática, consultou especialistas, empreendeu um cuidadoso processo de redacção e discutiu o texto no Congresso da Secção Doutrinária do Dicastério. Durante esse período, o documento foi discutido com o Santo Padre. Finalmente, o texto da Declaração foi submetido ao Santo Padre para a sua revisão, que o aprovou com a sua assinatura.

Enquanto se estudava o tema deste documento, foi divulgada a resposta do Santo Padre às Dubia de alguns Cardeais. Essa resposta forneceu esclarecimentos importantes para esta reflexão e representa um elemento decisivo para o trabalho do Dicastério. Dado que “a Cúria Romana é antes de tudo um instrumento ao serviço do sucessor de Pedro” (Ap. Const. Praedicate Evangelium, II 1), o nosso trabalho deve favorecer, juntamente com a compreensão da doutrina perene da Igreja, a recepção do Ensinamento do Santo Padre.

Tal como acontece com a resposta acima mencionada do Santo Padre às Dubia de dois Cardeais, esta Declaração permanece firme na doutrina tradicional da Igreja sobre o casamento, não permitindo qualquer tipo de rito litúrgico ou bênção semelhante a um rito litúrgico que possa criar confusão. O valor deste documento, porém, é que oferece uma contribuição específica e inovadora ao significado pastoral das bênçãos, permitindo ampliar e enriquecer a compreensão clássica das bênçãos, que está intimamente ligada a uma perspectiva litúrgica. Tal reflexão teológica, baseada na visão pastoral do Papa Francisco, implica um verdadeiro desenvolvimento a partir do que foi dito sobre as bênçãos no Magistério e nos textos oficiais da Igreja. Isto explica porque este texto assumiu a tipologia de uma Declaração.

É precisamente neste contexto que se pode compreender a possibilidade de abençoar os casais em situação irregular e os casais do mesmo sexo, sem validar oficialmente o seu estatuto ou alterar de alguma forma o ensinamento perene da Igreja sobre o matrimónio.

Esta Declaração pretende também ser uma homenagem ao Povo fiel de Deus, que adora o Senhor com tantos gestos de profunda confiança na sua misericórdia e que, com esta confiança, vem constantemente pedir a bênção da Mãe Igreja[1].

O documento esclarece que a grande bênção de Deus é Jesus Cristo, seu Filho. É uma bênção para toda a humanidade, é uma bênção para todos nós. Ele é a Palavra eterna com a qual o Pai nos abençoou quando ainda éramos pecadores, como diz S. Paulo (Rm 5,8).

  1. É um documento que, em primeiro lugar, deve ser lido e estudado, como qualquer outro que pretenda a adesão do povo cristão. Não há nada pior do que criar confusões, pretendendo ser uma luz para toda a casa.

Espero que este documento venha a ser retomado e alargado pois, ao que dizem, muitos pastores e fiéis não estão satisfeitos com as respostas dadas até agora. Estamos ainda em pleno processo sinodal e corremos o risco de não tomarmos a sério as exigências desse processo. Uma das coisas que implica é de não encerrar definitivamente o que, entretanto, foi sendo alcançado. É, no entanto, um texto que parece continuar a misturar o que é provisório e o que é definitivo.

Seria um atrevimento tentar soluções pastorais para todos os tempos e lugares. Na Igreja Católica, não se pode continuar a não entrar nas reformas e a dificultar o caminho de quem as procura. Nenhum de nós pode prever o que vai acontecer, nos próximos tempos, entre as novas gerações. A teologia e a pastoral só ganham, tornando-se intergeracionais e inteligíveis.

Não são claras as razões que levam a aceitar ou a recusar este documento. É difícil compreender porque razão não se continua a investigar. Menos se compreende ainda que se recuse o estudo público destas questões públicas. Seria um abuso dizer que o trabalho que foi feito e que continua a produzir-se não tem importância. Tem importância, é trabalho.

  1. Não deveria ser esquecida a Carta de S. Paulo sobre a linguagem usada na liturgia:

«Se a vossa língua não proferir um discurso inteligível, como se há-de saber o que dizeis? Sereis como quem fala ao vento. Há no mundo não sei quantas espécies de línguas e todas têm o seu significado. Ora, se eu não conheço o significado de uma língua, serei como um bárbaro para aquele que fala e aquele que fala, também o será para mim.
Assim também vós: já que estais ávidos dos dons do Espírito, procurai adquiri-los em abundância, mas para edificação da assembleia. Por isso, o que fala em línguas reze para obter o dom da interpretação. Porque, se eu rezo em línguas, o meu espírito está em oração, mas a minha inteligência não colhe frutos»[2].

Por um lado, um documento da Igreja que suscita tantos problemas e propostas não pode ser considerado fruto de uma instituição morta. Por outro, exige continuar a investigação e a sua experiência pastoral.

É inevitável que não fique tudo arrumado e esclarecido. É da própria natureza de uma Igreja sinodal deixar abertas as portas e as janelas para que o ar se renove continuamente.

  1. Mateus, no seu longo discurso sobre diversas parábolas (a do semeador, a do joio, a do grão de mostarda, a do fermento, a do tesouro e da pérola, a da rede), acrescentou com palavras de Jesus:todo o escriba que se torna discípulo do Reino dos Céus é semelhante a um pai de família que do seu tesouro tira coisas novas e velhas[3].

Não devemos, no entanto, acumular sermões, parábolas e declarações de sabedoria, como se já estivéssemos no fim do mundo. Se assim fosse, também não havia pressa em resolver todos os problemas.

 

[1] www.vatican.va

[2] 1 Cor 14, 9-14

[3] Mt 13, 52


Público, 04 Fevereiro 2024