A casa do eu

 

MARIA ESTELA GUEDES


E eu era a casa
A música do mar
M Céu Costa

 

Estreia de M Céu Costa na estante da poesia portuguesa, E eu era a casa, editado pela Urutau, é um livro mínimo de sensibilidade maior. Com efeito, os materiais de construção da casa são essencialmente constituídos pelo resultado da emoção e da perceção sensorial. Já o aspeto exterior do livro, os poucos e curtos poemas, a seleção da imagem para a capa, denotam essa sensibilidade voltada para o grácil, para o afeto em versão suave, de amorosidade, de repúdio pela violência ou pela agressão.

M Céu Costa

E no entanto o uso do “eu” implica fechar uma porta com ruído, seja ou não o ruído percebido ou desejado pela autora. Desde há bastante tempo ele se faz ouvir na arte e fora dela, como rejeição a grades impostas à individualidade. Realmente sem o eu e sua identidade nenhuma questão social existe, o eu só assume dimensão de humanidade quando diante do espelho dos outros. Somos seres sociais, o encontro social não se verifica entre grupos, sim entre os indivíduos do grupo. Lamento que o uso do “eu” ainda hoje, ao fim de tantos anos da experiência da esquerda, ainda permaneça sob a alçada do preconceito de que mostrar a casa do eu é narcisismo e desinteresse pelos outros. Pelo contrário, o facto de o “eu” ser uma casa implica abrigo, proteção, cuidados dispensados ao outro.

É muito difícil escapar aos dados da perceção sensorial da espécie, que nos permitem ver um mundo organizado da mesma maneira para todos, e não apenas um conjunto de ondas e partículas, um mundo a preto e branco como parece ser o dos cães, que são daltónicos, segundo dizem, ou repartido por mil imagens como seria o percecionado pelos olhos facetados dos insetos. Sabemos muito pouco destas circunstâncias. No entanto, é fácil ver que todos vemos o mesmo azul do céu, a mesma vegetação verde e o mesmo branco das paisagens nevadas. Esse é o nosso real, aquilo que o eu percebe quando a sua sensorialidade está alerta. O poeta escapa a esta realidade fabricada pelo nosso cérebro, que só é realidade para ele e não para o cérebro de outras espécies. Que faz o poeta? Desarruma a paisagem que evoquei, mantendo-a, desarruma-a na medida do possível que é a sua sensibilidade, criando outra, e então as paisagens duplicam, o poeta vive em dois mundos, o de todos e o apenas seu:

Chove
E o mundo é grande
Igual a um deserto
Que não cabe em nós

Nunca somos de um mundo apenas
É isso que nos dói
Quando andamos sobre o soalho
Desta casa
Escoando para as fendas os barcos que a vida tem

Belos, tranquilos versos, a despeito do fogo interior, voltados mais para fora do que para dentro, a despeito do título, com a presença da autoridade do sujeito. Mas demasiado pequenino livro para o que promete. Esperemos então, de M Céu Costa, mais poemas, mais imagens, mais companhia lírica a seguir, já que esta primeira foi tão boa.

Há uma agitação sobre todas as coisas
Penso na mulher que sai de casa ainda escuro
Com a manhã escondida no avental

Vai pela beira dos campos acordar as águas

M CÉU COSTA

E eu era a casa

Pontevedra / São Paulo, Editora Urutau

2022