A casa de Vitorino Nemésio

MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov


Ricos em beleza paisagística e literária, disto achamos exemplo em Praia da Vitória, terra natal de Vitorino Nemésio, nos Açores, onde coligimos as imagens, que se referem sobretudo à Casa Museu Vitorino Nemésio, onde morou com os pais. Casa remediada, se comparada com a das tias, com as quais passou a viver em adolescente. Esta casa apalaçada, que também mostramos, é hoje a Biblioteca e Arquivo da cidade.

A casa é encantadora, traz-nos memórias de infância pelo recheio, mobílias e objetos. Porém, mais do que os interiores, encantam os exteriores, o terraço com um fogão de várias bocas, em pedra, a vista para uma das tão belas ruas da povoação, os recantos, os muros, onde vivem as lagartixas famosas, endemismos da Madeira e dos Açores, Lacerta dugesi. Um banco de jardim convida à escrita, uma janela à viagem interior no navio do devaneio.

Um dos elementos ornamentais da cidade que mais chamam a atenção, decerto posterior a Vitorino Nemésio, é o cuidado posto na calçada portuguesa, cuidado comum a outras cidades e vilas dos Açores.

Casa Museu Vitorino Nemésio
No hall de entrada do Museu, o televisor recorda o programa da RTP, “Se bem me lembro”, que tornou Vitorino Nemésio familiar a todos os portugueses.

Um fogão no terraço
O pensativo banco de jardim, no terraço da casa de Vitorino Nemésio.
Praça de Praia Vitória.
Praia da Vitória: note-se o desenho contemporâneo da calçada portuguesa numa rua que mantém o casario do tempo de juventude de Vitorino Nemésio.
O dragoeiro, endemismo das ilhas da Macaronésia, aparece quase exclusivamemte em ambiente urbano: avenidas, ruas e jardins,
A casa das tias, onde viveu em adolescente Vitorino Nemésio, é hoje a Biblioteca e Arquivo.

 

VITORINO NEMÉSIO, O POETA
Praia da Vitória, 19 de dezembro de 1901 – Lisboa, 20 de fevereiro de 1978

 

Representação de Vitorino Nemésio na série de painéis de azulejaria, espalhados pela Praia da Vitória, que homenageiam os seus poetas.

 

AZOREAN TORPOR

Onde a vaga retumba eram as obras do porto:

Roldanas, guinchos, cais, pedras esverdeadas

E, na areia da draga, ao sol, um peixe morto

Que vê passar na praia as damas enjoadas.

 

A cidade? Esqueci. Um poeta é sempre absorto;

De mais a mais – talvez paragens abandonadas.

O que é certo é que entrei um dia naquele porto

Em que as próprias marés parecem arrestadas.

 

Porque a mais leve luz que se embeba na Barra

Embacia os perfis dos cais e dos navios

Em frente à linha do horizonte que se perde.

 

E um desconsolo, um não-partir paira nos pios

Das gaivotas sem céu que o vento empluma e agarra

Estilhaçando o arisco mar de vidro verde.

Em O Bicho Harmonioso

 

A  CAMINHO DO CORVO

A minha vida está velha

Mas eu sou novo até aos dentes.

Bendito seja o deus do encontro,

O mar que nos criou

Na sede da verdade,

A moça que o Canal tocou com seus fantasmas

E se deu de repente a mim como uma mãe,

Pois fica-se sabendo

Que da espuma do mar sai gente e amor também.

Bendita a Milha, o espaço ardente,

E a mão cerrada

Contra a vida esmagada.

Abençoemos o impossível

E que o silêncio bem ouvido

Seja por mim no amor de alguém.

De Sapateia Açoriana

 

MAIO DE MINHA MÃE

O primeiro de Maio de minha Mãe

Não era social, mas de favas e giestas.

Uma cadeira de pau, flor dos dedos do Avô

— Polimento, esquadria, engrade, olhá-la ao longe —

Dava assento a Florália, o meu primeiro amor.

 

Já não se usa poesia descritiva,

Mas como hei-de falar da Maromba de Maio

Ou, se era macho, do litro de vinho na sua mão?

O primeiro de Maio nas Ilhas, morno como uma rosa,

Algodoado de cúmulos, lento no mar e rapioqueiro

Como Baco em Camões,

Límpido de azeviche

E, afinal de contas, do ponto de vista proletário,

Mais de mãos na algibeira do que Lenine em Zurich.

(Porque foi por esta época: eu é que não sabia!)

 

A minha Maromba tinha barriga de palha como as massas

E a foice roçadoira da erva das cabras do Ribeiro

Que se pegou, esquecida, no banco do martelo de meu Avô

Cujas quedas iguais, gravíficas, profundas

 

Muito prego em cunhal deixaram,

Muita madeira emalhetaram,

Muita estrela atraíram ao bico da foice do Ribeiro

Nas noites de luar em que roçava erva às cabras.

Favas de Maio do meu tempo!

Havia poder popular

Nas mãos de minha mãe, que as descascava como flores

E flores eram de si, na flórea abada

Como se já guardassem flor de laranjeira e açaflor

Nas suas intenções de Maio 1918, para as depor

(Nem pensada sequer) na fronte à minha amada.

Na Antologia Poética

 

TENHO UMA SAUDADE TÃO BRABA

Tenho uma saudade tão braba

Da ilha onde já não moro,

Que em velho só bebo a baba

Do pouco pranto que choro.

 

Os meus parentes, com dó,

Bem que me querem levar,

Mas talvez que nem meu pó

Mereça a Deus lá ficar.

 

Enfim, só Nosso Senhor

Há-de decidir se posso

Morrer lá com esta dor,

A meio de um Padre Nosso.

 

Quando se diz «Seja feita»

Eu sentirei na garganta

A mão da Morte, direita

A este peito, que ainda canta.

Do Caderno de Caligraphia e outros Poemas a Marga

 

MORTE PENSADA

Experimentei a Morte na cabeça

(No coração,só se ele parasse).

Mas, por mais que a conheça,

Não se pensa a Morte: dá-se.

Que a morte não é ser, sendo ela tudo,

Nem pessoa será,que tantas leva:

É um lá ou além, último som agudo

A que não chega a voz de vivo. Nem

Chove ou neva

Onde campa é a terra de ninguém.

Não morremos sequer: matamos a alma

Enternecida pelo corpo terno.

E ela lá vai, sua alma sua palma,

Que nem morre no Inferno.

De Sapateia Açoriana