MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov
Ricos em beleza paisagística e literária, disto achamos exemplo em Praia da Vitória, terra natal de Vitorino Nemésio, nos Açores, onde coligimos as imagens, que se referem sobretudo à Casa Museu Vitorino Nemésio, onde morou com os pais. Casa remediada, se comparada com a das tias, com as quais passou a viver em adolescente. Esta casa apalaçada, que também mostramos, é hoje a Biblioteca e Arquivo da cidade.
A casa é encantadora, traz-nos memórias de infância pelo recheio, mobílias e objetos. Porém, mais do que os interiores, encantam os exteriores, o terraço com um fogão de várias bocas, em pedra, a vista para uma das tão belas ruas da povoação, os recantos, os muros, onde vivem as lagartixas famosas, endemismos da Madeira e dos Açores, Lacerta dugesi. Um banco de jardim convida à escrita, uma janela à viagem interior no navio do devaneio.
Um dos elementos ornamentais da cidade que mais chamam a atenção, decerto posterior a Vitorino Nemésio, é o cuidado posto na calçada portuguesa, cuidado comum a outras cidades e vilas dos Açores.
VITORINO NEMÉSIO, O POETA
Praia da Vitória, 19 de dezembro de 1901 – Lisboa, 20 de fevereiro de 1978
AZOREAN TORPOR
Onde a vaga retumba eram as obras do porto:
Roldanas, guinchos, cais, pedras esverdeadas
E, na areia da draga, ao sol, um peixe morto
Que vê passar na praia as damas enjoadas.
A cidade? Esqueci. Um poeta é sempre absorto;
De mais a mais – talvez paragens abandonadas.
O que é certo é que entrei um dia naquele porto
Em que as próprias marés parecem arrestadas.
Porque a mais leve luz que se embeba na Barra
Embacia os perfis dos cais e dos navios
Em frente à linha do horizonte que se perde.
E um desconsolo, um não-partir paira nos pios
Das gaivotas sem céu que o vento empluma e agarra
Estilhaçando o arisco mar de vidro verde.
Em O Bicho Harmonioso
A CAMINHO DO CORVO
A minha vida está velha
Mas eu sou novo até aos dentes.
Bendito seja o deus do encontro,
O mar que nos criou
Na sede da verdade,
A moça que o Canal tocou com seus fantasmas
E se deu de repente a mim como uma mãe,
Pois fica-se sabendo
Que da espuma do mar sai gente e amor também.
Bendita a Milha, o espaço ardente,
E a mão cerrada
Contra a vida esmagada.
Abençoemos o impossível
E que o silêncio bem ouvido
Seja por mim no amor de alguém.
De Sapateia Açoriana
MAIO DE MINHA MÃE
O primeiro de Maio de minha Mãe
Não era social, mas de favas e giestas.
Uma cadeira de pau, flor dos dedos do Avô
— Polimento, esquadria, engrade, olhá-la ao longe —
Dava assento a Florália, o meu primeiro amor.
Já não se usa poesia descritiva,
Mas como hei-de falar da Maromba de Maio
Ou, se era macho, do litro de vinho na sua mão?
O primeiro de Maio nas Ilhas, morno como uma rosa,
Algodoado de cúmulos, lento no mar e rapioqueiro
Como Baco em Camões,
Límpido de azeviche
E, afinal de contas, do ponto de vista proletário,
Mais de mãos na algibeira do que Lenine em Zurich.
(Porque foi por esta época: eu é que não sabia!)
A minha Maromba tinha barriga de palha como as massas
E a foice roçadoira da erva das cabras do Ribeiro
Que se pegou, esquecida, no banco do martelo de meu Avô
Cujas quedas iguais, gravíficas, profundas
Muito prego em cunhal deixaram,
Muita madeira emalhetaram,
Muita estrela atraíram ao bico da foice do Ribeiro
Nas noites de luar em que roçava erva às cabras.
Favas de Maio do meu tempo!
Havia poder popular
Nas mãos de minha mãe, que as descascava como flores
E flores eram de si, na flórea abada
Como se já guardassem flor de laranjeira e açaflor
Nas suas intenções de Maio 1918, para as depor
(Nem pensada sequer) na fronte à minha amada.
Na Antologia Poética
TENHO UMA SAUDADE TÃO BRABA
Tenho uma saudade tão braba
Da ilha onde já não moro,
Que em velho só bebo a baba
Do pouco pranto que choro.
Os meus parentes, com dó,
Bem que me querem levar,
Mas talvez que nem meu pó
Mereça a Deus lá ficar.
Enfim, só Nosso Senhor
Há-de decidir se posso
Morrer lá com esta dor,
A meio de um Padre Nosso.
Quando se diz «Seja feita»
Eu sentirei na garganta
A mão da Morte, direita
A este peito, que ainda canta.
Do Caderno de Caligraphia e outros Poemas a Marga
MORTE PENSADA
Experimentei a Morte na cabeça
(No coração,só se ele parasse).
Mas, por mais que a conheça,
Não se pensa a Morte: dá-se.
Que a morte não é ser, sendo ela tudo,
Nem pessoa será,que tantas leva:
É um lá ou além, último som agudo
A que não chega a voz de vivo. Nem
Chove ou neva
Onde campa é a terra de ninguém.
Não morremos sequer: matamos a alma
Enternecida pelo corpo terno.
E ela lá vai, sua alma sua palma,
Que nem morre no Inferno.
De Sapateia Açoriana