NIKOLA POPOVIĆ
Tradução: Anamarija Marinović
NIKOLA POPOVIĆ (Sarajevo, 1979), italianista de profissão, dedica-se à investigação da prosa italiana contemporânea. Ele ensina italiano no Departamento de Arte Musical da Faculdade de Filologia e Artes de Kragujevac. Publicou traduções de livros de Ettore Mazina, Simone Vinci, Valeria Parella e inúmeras traduções de escritores italianos em revistas literárias. É autor de resenhas críticas na área de cinema, teatro e literatura. Publicou livros de prosa curta: Histórias do Líbano (Centro Cultural “Gradac”, Raška, 2016), que ganhou o Oscar “Ivo Andrić”, Sketches for Navigation (Agnosta, Belgrado, 2019; Imprimatur, Banjaluka, 2020), que recebeu o prémio “Ljubomir P. Nenadović” para o melhor livro de viagens e The Dream of Kosmos Skaruh (Planjaks, Tešanj, 2022). Foi traduzido para inglês, húngaro e macedônio. Foi editor-chefe e responsável da revista de literatura, cultura e questões sociais “Bosanska vila” em Sarajevo. (Tra. Google)
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НИКОЛА ПОПОВИЋ (Сарајево, 1979), италијаниста по струци, бави се истраживањем савремене италијанске прозе. Предаје италијански језик на Одсеку за музичку уметност Филолошко-уметничког факултета у Крагујевцу. Објавио је преводе књига Етореа Мазине, Симоне Винчи, Валерије Пареле и бројне преводе италијанских писаца у књижевним часописима. Аутор је критичких осврта из области филма, позоришта и књижевности,. Објавио је књиге кратке прозе: Приче из Либана (Центар за културу „Градац“, Рашка, 2016) која је добила награду Академије „Иво Андрић“, Скице за пловидбу (Агноста, Београд, 2019; Имприматур, Бањалука, 2020), која је добила награду „Љубомир П. Ненадовић“ за најбољу путописну књигу и Сан Космоса Скаруха (Плањакс, Тешањ, 2022). Превођен је на енглески, мађарски и македонски језик. Био је главни и одговорни уредник часописа за књижевност, културу и друштвена питања „Босанска вила“ у Сарајеву.
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– Todos dizem que tinham sonhado com uma ave e logo a seguir: uma ave é um presságio bom. Porém, será que abriu as asas e voa pelas nuvens em direcção ao sol, ou é uma ave rapina que, procurando a preda, se desmorona em direcção do chão? E quantas serão: uma que voa num voo solitário, ou um bando, uma esquadrilha de forma triangular?
Estzer está a olhar para o reflexo no Monte da Rosa, como se fosse um livro interpretativo de sonhos estendido pelo céu. No Verão, ela traz vestidos compridos, e agora, no Inverno, um sobretudo leve para a manhã fresquinha da cidade de Buda, com o desenho cor-de-laranja de uma flor.
– Uma ave só, isso significa uma nova de longe. Uma ave morta significa queda, mas por um breve período de tempo, antes de começar um novo voo. Um bando significa abundância.
Eszter fala da mesma forma em que dança. O seu pensamento e as suas palavras são como passos, ora longos, ora curtos. Como no momento em que chega ao topo da sua rua e ã uma volta de dançarina.
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Dizem os habitantes da cidade de Buda que os murmúrios da água trazem a insónia ou os sonhos. Aquela tarde, no Monte da Rosa, cada um falou sobre o sonhado, procurando nos sonhos as imagens do passado ou um indicador de caminho para adiante. E cada um, como acontece ao contar o sonhado, contava segundo se lembrava, e nas imagens nebulosas acrescentava a cor, unindo o sonhar nocturno ao claro do dia. Depois, em tudo implantava os contos de fadas e as lendas bem conhecidas.
Ádám, o taxista, foi o primeiro a contar o sonho. Sobre uma ave gigantesca, maior que a águia e o cóndor: – É o turul, a mítica ave húnica, com uma enorme distância entre as asas…
No sonho, o turul olhava e falava com voz humana: em húngaro, e como ia ser de outra forma: está na ora que o clã, grande e inteiro, bem como ele e todos os seus, partam em direcção da planície, ei-la, a aguardar, deserta, mas repleta de trigos a nascerem e rica. Mostra o turul lá para leste, envolve a cabeça, levanta a asa como um homem levanta o hombro. Senta-se num divã almofadado como um paxá, na sua cabeça, em vez da coleira que põem aos falcões – uma pequena coroa.
Assim começou o sonho de Ádám. Então, o turul aterrou para o terreno dele, ao pé da cidade de Buda, entre as árvores fructíferas, de alperses, no Inverno vendadas como as pernas do ferido:
– Belo jardim – disse a ave, antes de levantar voo; ele parou, acompanhou-a com o olhar, as asas castanhas diluíram-se e transformaram num ponto. Olhava o taxista para a ave, e entre o sonho pensava e pensava: é Domingo, presumivelmente irão cortar-lhe lenha queimar, grossa e miúda, para haver para a grelha e para o aquecimento, e para o forno em que no Verão irá fazer compota de alperces maduros.
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– E a ave, disse-te mais alguma coisa? – perguntou Abishek, indiano e fotógrafo, e acrescentou que na memória, igualmente, o mais que resta são as imagens, e a conversa pode também inventar-se e acrescentar-se ao sonho.
– Ela disse, já que perguntas – respondeu o taxista, ao mesmo, rubro como se se prepaarsse a defender o jardim recém-conquistado: -Disse o turul que me era recomedável pedir um crédito, para comprar um carro novo, porque o velho se vai arrastando, ams mais tarde ou mais cedo iria trair-me pelo caminho. E mais, para arranjar a cerca desagastada.
– Fartou-se de falar o turul, e aida conselhos dá – disse o barman Mátyás – anda lá, bebe um bocadinho. Abishek acenou negativamente com a mão meio curada da queimadura, desde antanho, desde São Martinho, e então estendeu os lábios num amplo sorriso.
Eszter, já sabemos, fala pouco. Apenas baloiçou brandamente no seu sítio, como se procurasse para si um ritmo conhecido, e perguntou somente se o sonho foi sonhado de madrugada. E mais: para que ponto cardeal estava virada a cabeceira?
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Mátyás, o barman, já sabemos, é um homem concentrado no seu ofício e trabalho, mas as suas histórias também num instante, começam a navegar pelo ténue borde do copo e o seu olhar atravessa os vinhais e campos imaginados. Assemelha-se, sabemo-lo também, ao conde-aventureiro do conto, o seu bigode é ruivo, como no lince e também deixou crescer as patilhas suíças.
Acerca dos sonhos diz que, desde o inverno, sonha raras vezes e pouco, e o seu sonho é forte e estável. Deixa a janela de par em par e adormece logo, com o ressonar cortante do ar. De manhã, diz, desperta com a respiração purificada. Embora, nos últimos dias, voltou a acometê-lo um sonho sonhado ainda no tempo da infância: uma noite de Verão na quinta do seu pai, no vinhal. A lua está cheia, contam-se histórias dos guardadores dos vinhais, decifram se as manchas e neblinas do céu e tudo vibrava de fervor de Verão.
No sonho, o pai parou, tomou a videira nas mãos, falou: deu bons frutos o vinhal, está na época madura. E para o vinho, as videiras não se devem misturar, para o vinho não ser deamsiado azedo.
–O vinhal, bom sonho – interrompe-o Eszter de seguida – embora também possa não ser. Há no vinhal algo de azardeiro, investir no desconhecido: se a videira irá dar bons frutos, se a raíz irá penetrar na terra?
Assim Eszter interpretou este sonho também, e Mátyás prosseguiu a contar: de repente, aqueles dias de Fevereiro e pelo vinhal passa uma procisssão, pessoas enmascaradas sob as máscaras de madeira, depois mulheres com grinaldas na cabeça. Cantam alegremente, tocam os tímpanos e as campainhas. Neles estava o velocino de ovelha, atiram Esse rasto branco no sonho transforma-se nas folhs de videira, e ele foi atrás do rasto.
Da quinta, o caminho leva para a cidade de Buda, para o Monte da Rosa. Mátyás desperta com o pensamento sobre a videira que deve deixar as raízes, sobre as castas que não se devem misturar, sobre o mosto de uvas que fervilha, sobre as castas que há que misturar para o sabor não ficar azedo. Haverá uma cave e nela barris de madeira de carvalho, e as garrafas de riesling, esbeltas como cintura de uma moça. Nelas está o rótulo com o símbolo de ave.
Estavam a ouvir sobre o sonho do barman da cidade de Buda. Eszter voltou a perguntar: – Se tinha sido sonhado de madrugada?
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Eszter sabe da dança, sabe das pessoas, e eis, sabe dos sonhos. As suas histórias fluem em direcção da casa, que tem varas altas, e o seu terraço assemelha-se â ponte dos capitães:- No portão dantes havia turuis, aves míticas, de ferro forjado. Aora, se olhas, é difícil imaginá-los.- Assim diz, enquanto mostra, um portão tem duas alas alas, coentalhes semelhantes a plantas trepadoras. Eszter fala e estende os braços, assim eram as aves em frente do portão como na entrada para o castelo. De asas abertas e formam uma cúpual sobre a entrada, como uma fila indiana solene de espadas, que recebe a escolta do príncipe, com as aves em vez dos cortesãos.
– De onde é que ela obteve as aves, talvez até com ela falem no sonho – disse Abishek.
– Tu, ao que parece, precisas de sono, hoje estás de mau humor. Anima-te!- disse-lhe o taxista Ádám.
Eszter contava a sua história, uma história cheia de repetições, mas jamais privada de peripécias – sobre a oficina do seu avô, onde se elaboravam móveis de ratã. E, agora, ela repetiu: ratã esses são os troncos secos da palmeira. E uma boa poltrona, bergeira, acompanha como o passo de dança a linha do corpo.
Quando Eszter fala, trtudo é pitoresco, o espaço bem como o tempo, florescem-lhe uma ao lado da outra as rosas no Monte da Rosa, aquelas das que se faz o ratã, voam lado a lado os turuis húnicos e as aves miúdas:
– Olha, lá estão os abelharucos, lá estão os abelharucos! – Eszter mostra as copas das árvores.
-É uma trepadeira-azul – disse o indiano com tom importante, súbito de bom humor, porque o mundo vivente e as suas criaturas, é o mais caro paara ele. A trepadeira-azul é isso, uma ave especial: ei-la, a correr pelo tronco da árvore abaixo!
– Canta? Vive acasalada? – perguntou Eszter.
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Para ela tudo no mundo é novo e desconhecido. Eas histórias, como se todos od dias mudassem da lene, como o olho do peixe, então limpo e claro, como tudo aquilo que está em frente. Assim mesmo do prédio cuja parte foi construída em cima depois da guerra, sobre a parte confiscada da casa, sobre a parentela dispersada pelo mundo, ela diz apenas – dádiva de Deus.
O tempo antes da guerra e o tempo depois chama: aqeule tempo e este tempo. Quem entra na casa do outro, sabe-se, agrÁdám-lhe os móveis e os candeeiros, começa a agradar-lhe a biblioteca, e põe-se a pensar que isso lhe pertence desde sempre e para sempre. Sobre isso Eszter não fala, mas fala sobre o telhado plano, como era dantes, sobre o Verão, as noites da cidade de Buda, que sabem ser de estremo calor, pois aqui também, nas alturas, chega um cetro ar de humidade podre do rio.
Do monte da Rossa diz que está bastante construído, do terraço dela antigamente via-se a cidade, agora os prédios ofuscam a visão. Pois, os quarteirões são como as pessoas, crescem. Para Eszter, o tempo é uma dança, uma quadrilha corrida, ela sobre as décadas fala como se fossem as voltas de uma dança.
Ela, sabemos, a toda a gente no Monte da Rosa ensina a dançar. Seja Verão, sejam as festas que glorificam a semeadura e a ceifa, ou as apanhas. Há dança, dançada vivamente, como as chamas da fogueira.
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– Transporta-a o tempo, misturam-se nela as imagens do sonho e da realidade – disse Abishek – e uma casa é uma casa – não é um castelo para ter estátuas com aves. – Assim disse o indiano – por um instante outra vez malhumorado, novamente ao seu braço retornou o queimar da queimadura do Outono, do carvão a ferver, enquento cicatriza a nova pele. Disse dura e cortantemente, mas pronto paarou e logo a seguir, como na navegação que apanha a ráfaga de bom vento, navegou em outra direcção. Tirou um palito de sândalo, queimou-o como se fosse curandeiro e através do cheiro prazerozo, continuou a história mais cara – sobre um pequeno tigre que o seu avô, o retornado da guerra, tinha encontrado ao pé da estrada e tinha trazido para casa, e então davam-lhe de beber leite e de comer erva, como a um gatinho.
Agradou o tigrezinho às crianças e ao avô, porém, depois, quando lhe cresceram os dentes, sentiu o chamamento do selvagem, lambendo com a língua áspera, como as agulhas, a mão humana. Um disparo da carabina e a pele do tigre, então conta – no Bangalor, na Índia. Lá, a pele fica, estendida na parede e cuida dda casa, como um espírito tenro. Aqui, no Monte da Rosa, histórias sobre os sonhos e o turul, que é uma ave húnica, mais pequena que o albatros, e maior que o falcão.
Eszter mostra o portão de ferro, fala sobre os tótems de aves, que, eis, aninham ante os nossos olhos, procurando abrigo no oco do tronco, ou dentro da terra, sob as raízes, entre as pedras, nos terraços das casas da cidade de Buda.
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Quando vieres à cidade de Buda, dirige-te ao Monte da Rosa, um quarteirão que leva o nome em homenagem a uma roseira. Podes ir, da praça grande para cima, seguindo as pegadas e os rastos das rodas, ou a partir do rio, pelas sendas, escondidas dos olhares. Do alto, abre as asas a cidade e o homem abre a respiração, pra inhalar e cheirar tudo, e para navegar com o olhar até Pestee, através dos colares de pontes, através do rio, para a terra. No Monte da Rosa, as vozes vêm de perto e de longe e as conversas são abraçadas pelas cidades, ou essas são – como dizem os viajantes- os encontros do destino ao longo do globo terráqueo. É conhecido: cada um procura o ouvido para as suas histórias.
Há no Monte da Rosa uma casa, da qual dizem que no portão tinha tido as aves turul, de asas abertas como uma fila indiana com sabres na entrada do castelo. Perguntas como sžao essas aves. Isso ninguém to pode dizer, já sabes que são míticas. Não obstante, é conhecido que se sonha também com aquilo que não existe. O turul não é a ave dodo, que os marinheiros e os raptores se fartaram de caçar; à ave exótica de Madagascar decifram-lhe os padrões na plumagem segundo os desengos dos diários de bordo e o tamanho pelo um ou outro esqueleto encontrado. E o chamamento, pelo que, segundo dizem, recebeu o nome, de novo pelas histórias, ou pelos escritos à tinta logo ao pé dos desenhos. Aqui os diálogos e as amizades, ali os escritos feitos no mar, revestidos das histórias dos navegadores, onde tudo num instante acolhe o ritmo das ondas e o exótico torna-se em escolta generosa.
Do casal de turules, essas aves sob o portão da casa de Eszter, no Monte da Rosa, dizem que eram tão grandes como o cóndor dos Andes ou como um albatreos que provém da estirpe das gaivotas, só maior e tem o bico semelhante. Outros contam:eram apenas um pouco maiores que o peneireiro comum, o peqiueno falcão-sacre.
Nas histórias e nos sonhos tudo é menor ou maior, e a memória desgasta-se como argamassa. A casa, no entanto, ergue-se e não é um castelo, mas uma cadsa de dois andares da cidade de Buda, só que as suas janelas dão para o Danúbio e as pontes. Porém, há algo de senhorial. O portãoergue-se, e as aves também existiam, orque eis, aqui a história, e onde há história, há vida. A melancolia da cidade de Buda, se vem desde os murmúrios das águas subterrâneas, fica coberta pelo olhar ao longe.
Ela, Eszter, com certeza está aí, qualquer pessoa vai encontrá-la nas suas deambulações da cidade de Buda. Narra sobre a dança, o baile, em tudo vê o ritmo. Hoje, está de pé no sobretudo da cor de néspera, ora semelhante a uma nimfa, ora â matrona de uma antiga dinastia. Junto do portão há um escavador amarelo escava e rói como um verme, até à cerca.
O Monte da Rosa é ao mesmo tempo um jardim e um quarteirão deslocado da cidade A vida aqui está cheia de sonhos e das miúdas finezas que, como um condimento, adoçam ou apimentam o dia. Eis, esta manhã, chegaram a nossa casa formigas, rasteja, desde a janela a peqeuena guarda amarela.
– Há remédio também para isso – diz em seguida Abishek – uuma mistura de alcatrão e das ervas indianas, e mais anda o pó dos ossos de tigre moídos. Untas isso no pasto amarelo, como um bálsamo na ferida, as formigas estão e vão-se embora.
A cidade de Buda para alguém é o crepúsculo e o acalmar do dia, a outros, persegue-os para o desassossego da mudança de casa. Aqui, nos sonhos, as aves falam com voz humana.
Autor: Nikola Popović