A atualidade na História do Futuro de Padre António Vieira

 

CATARINA PATRÍCIO


Catarina Patrício (Portugal) desenvolve a sua atividade entre a prática artística, o ensino e a investigação científica. Investigadora em Pós-Doutoramento com bolsa FCT no ICNOVA – FCSH-UNL, com o programa de trabalhos “Smart City: Cinema, Utopicidade e Governamentalidade na Cidade Pós-Industrial”, Patrício é professora de Antropologia do Espaço no departamento de Arquitetura e Urbanismo da ECATI‑ULHT desde 2010. Doutorada em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (2014), na especialidade Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias, com uma investigação sobre Técnica, Guerra e Cinema financiada pela FCT, Catarina Patrício é Mestre em Antropologia dos Movimentos Sociais pela FCSH-UNL (2008) e licenciada em Pintura pela Faculdade de Belas‑Artes da Universidade de Lisboa (2003) tendo estudado fotografia ao abrigo do programa Erasmus na Fachhochschule Bielefeld (2000).

Catarina Patrício[1]  . Universidade Lusófona e ICNOVA, Lisboa [PT] . catarinapatricioleitao14@gmail.com


Abstract

Este ensaio procura a atualidade na História do Futuro de Padre António Vieira. Como é que uma obra escrita há mais de três séculos pode falar tanto dos desafios que hoje atravessamos? Propomos um percurso eminentemente ontológico. Primeiro, e tomando a futuridade na ficção enquanto um dos disparadores da modernidade, revelam-se impulsos de reconfiguração humana. Seguir-se-á a própria futuridade enquanto exercício ontológico – como o tempo em Vieira, enquanto processo em curso, revela um futuro a remeter para o presente. Daí a pertinência de ficcionar mundos fora da ciência, porque o futuro que nos chega é inimaginável: o planeta a reagir ao agenciamento humano com mutações climáticas e geológicas nunca antes vistas. Eis o Antropoceno, estando ainda por perceber as suas consequências. Mas é também este o momento em que o projeto fraterno do Quinto Império ganha renovada relevância política.

Palavras-chave: Futuridade, Antropoceno, Apocalíptico, Ficção fora da Ciência


Abstract

This essay seeks for the timeless in the História do Futuro by Father António Vieira. How can a work written more than three centuries ago tell so much about the challenges we face today? We propose an eminently ontological course. First, and taking futurity in fiction as one of the triggers of Modernity, impulses of human reconfiguration are thus revealed. Then futurity comes as an ontological exercise – how time in Vieira, as an on-going process, reveals a future that throws itself back into the present. Hence the relevance of fictioning worlds outside science, because the future that is arriving at u sis already unimaginable: the planet reacting to human agency with climatic and geological mutations never before seen. Here comes the Anthropocene and its consequences are yet to be understood. And yet it is also at this moment that the fraternal project of the Fifth Empire gains renewed political relevance.

Keywords: Futurity, Anthropocene; Apocalyptic; Fiction outside of Science.


Wir sind auf einer Mission: Zur Bildung der Erde sind wir berufen.
NOVALIS

A Futuridade da Ficção como Disparador da Modernidade

Enquanto Padre António Vieira escrevia a sua História do Futuro, Michel de Pure escrevia Épigone, Histoire du Siècle Futur (1659). Atribuída inicialmente a Jacques Guttin, Épigone é frequentemente creditada como sendo a primeira história de ficção futurista. Mas a ser, cumpre situar a História do Futuro no mesmo intervalo temporal: ainda que publicada postumamente em 1718, Vieira começou a sua escrita em 1649. Estamos diante de duas ucronias, talvez então as primeiras; e a inovação de Vieira ou de Pure assenta não na representação utópica do espaço, essas já existiam, mas na representação utópica do tempo – seguindo aqui a influente diferenciação de Reinhart Koselleck entre Raumutopie, as utopias do lugar que marcam a primeira fase das utopias clássicas, e Zeitutopie, as utopias do tempo que lançam a segunda fase das utopias clássicas.[2] Deveras, pois ao campo limitado da produção da Era pré-industrial, as utopias contrapunham o mundo com a idealização de universos alternativos. É o caso de A República de Platão (380 a.C.), de A Cidade Virtuosa de Al-Farabi (autor que viveu entre 874-950) ou de Utopia (1516) de Thomas More. Já as ucronias, essas descerram um universo potencialmente ilimitado, dilatando o mundo e as coisas.

Antes de Épigone, antes de História do Futuro, o futuro estava reservado aos profetas. Seria ficção ainda assim, mas exercia-se um controlo sobre o imaginário “envolto em metáforas, disfarçado em figuras, escurecido de enigmas”.[3] Mas História do Futuro não é uma profecia, não prediz um futuro por vir vaticinado por uma qualquer entidade superior. Antes instala uma latência essencial na dissolução do modelo antigo, justamente a futuridade enquanto exercício no tempo. O tempo, na sua inefável grandeza, será “o mais certo intérprete” – Padre António Vieira di-lo diversas vezes. Em Vieira, o tempo é o elemento que revela:

Os futuros, quanto mais vão correndo, tanto mais se vão chegando para nós, e nós para eles; e como há tantos centos de anos que estão escritas estas profecias, também há outros centos de anos que os futuros se vão chegando para elas, e elas para os futuros; e por isso nós nos atrevemos a fazer hoje o que os Antigos não fizeram, ainda que tivessem acesa a mesma candeia; porque a candeia de mais perto alumia melhor. (Vieira, 1718: 146)

Nesse assentamento, o da futuridade da ficção feita ucronia, encontra-se o momento seminal da ficção científica. A partir daí, diremos que a ficção-futuro[4] parece mediar dois impulsos de reconfiguração da humanidade, e que se tornariam determinantes na constituição do projeto moderno:

(1) num primeiro impulso, ao campo potencialmente infinito da produção com a Era Industrial, a ficção científica responde com a multiplicação das coisas. Júlio Verne, por exemplo, representa bem esta dilatação das possibilidades dos objetos, antecipando-lhe tendências por vir[5]. Isto manifesta-se não apenas nas forças de produção, mas também no bio-poder, porque os futuros virtuais geram capital, sonhando com a previsão e o controle do amanhã[6]. Na voracidade que o caracteriza, nem o futuro escapa ao capitalismo[7].

(2) O segundo impulso constitui aquilo a que Peter Sloterdijk chamou de “Regras para o Parque Humano” [8], ou mais concretamente, as possibilidades de o humano se fazer a si próprio. Tal é o caso das antropotécnicas, como a escrita, mas também a escrita em algoritmos e a manipulação genética.

Com uma reconfiguração geral no horizonte, partimos para o segundo ponto de atualidade na história profético-especulativa de Padre António Vieira – ou como esse exercício se converte numa necessária inquirição ontológica quanto à natureza do presente.

 

  1. A Futuridade enquanto Exercício Ontológico

Padre António Vieira diz no primeiro capítulo de História do Futuro que

O tempo (como o mundo) tem dois hemisférios: um superior e visível, que é o passado, outro inferior e invisível, que é o futuro. No meio, entre um e outro hemisfério ficam os horizontes do tempo, que são estes instantes do presente que imos vivendo, onde o passado se termina e o futuro se começa. (Vieira, 1718: 67. Ênfase nossa)

De permeio está o horizonte, o instante que o presente dura, “onde o passado se termina e o futuro se começa” – uma condição progressiva, reveladora de como o presente se desenrola retendo. Será assim que o presente, como processo em curso, dá a ver aspetos de como o passado ainda é, e de como o futuro vai já remetendo para o agora, esse instante que “imos vivendo”. Trata-se de um exercício essencial, pois “para todos os agentes [humanos ou não humanos] atuar significa ter a sua existência vir do futuro para o presente” (Latour, 2014: 13). Aqui, Bruno Latour parece citar secretamente Alfred North Whitehead, quando este diz sobre o presente em Science and the Modern World (1925) que

Um acontecimento tem um futuro. Isso significa que um acontecimento espelha dentro de si aspectos de como o futuro retrocede ao presente, ou, por outras palavras, como o presente determinou o futuro. Assim, um acontecimento tem antecipação: ‘A alma profética do vasto mundo sonhando com as coisas por vir’: Estas conclusões são essenciais para qualquer forma de realismo. Pois existe no mundo para nosso conhecimento, memória do passado, imediação de realização e indicação das coisas por vir.[9]

Diremos então que qualquer ocorrência, qualquer entidade ou evento, é de natureza processual e, ao acontecer, coloca-se entre todas as outras ocorrências sem as quais não poderia ser (cf. Whitehead, 1925: 176). Da mesma maneira que o futuro que se antecipa está também ele entre a multiplicidade de futuros possíveis, lá adiante à espera de acontecer. Pensar um presente que está sempre a deixar de o ser, como o faz Padre António Vieira, intensifica conexões que não as unicamente determinadas na lateralidade de se estar em co‑presença ou concomitância, mas que, projetivamente, trazem ao presente um futuro que se vai tecendo agora.

Num mundo em permanente mutação, particularmente este momento geológico que atravessamos – o chamado Antropoceno, o qual assinala o desaparecimento de uma certa estabilidade do mundo natural –, a facticidade das leis da ciência pode já não dar conta do que está por vir. Nessa hora se percebe como a radicalidade do exercício ontológico de Vieira, precisamente porque quer trazer ao presente a imponderabilidade de um futuro que se vai fazendo, tem condições para se tornar um esquema politicamente necessário.

 

  1. Ficção fora da Ciência

“Ficção (de mundos) fora da ciência” é um conceito que Quentin Meillassoux apresenta no ensaio Métaphysique et Fiction des Monde Hors-Science[10] para resolver o problema da indução em David Hume. O interesse de Meillassoux em criar este subgénero dentro da ficção científica terá relevância metafísica.

Se a ficção científica sonha mundos que se dilatam ou modificam diante de novas possibilidades de conhecimento ou de domínio do real, sempre dentro de um certo nível de cientificidade, a “ficção (de mundos) fora da ciência” imagina mundos onde a ciência experimental, enquanto sistema de aquisição de conhecimento com base no método científico, será impossível ou colapsa – porém, sonhar mundo fora da ciência não significa uma anulação da ciência ou mundos sem saber.

Por definição, a experiência apenas pode dar conta do presente, i.e. aquilo que verifico neste instante. Também dará conta de um passado, enquanto registo daquilo que já foi experimentado, catalogado ou tornado lei. Mas sob esse aspecto, ficará sempre de fora o futuro, porque não há experiência do futuro. O que está porvir é inexperimentável.

Numa ficção fora da ciência, as leis que serviram ao passado e ao presente cessam abruptamente; narra-se uma história que se torna impossível de articular ou de ter pontos de concordância, mesmo que ténues, com os tradicionais métodos científicos. Ora, é precisamente isso que está em causa no problema da indução de Hume com o exemplo do jogo de bilhar. Pela precisão com que é jogado, um jogador de bilhar conta com as leis da física para calcular geometricamente a sua jogada. Todavia, como indaga Hume, o que nos garante que as leis da física possam ser válidas no momento que se segue quando, rigorosamente, não há experiência de futuro? Motivado pelas duas respostas clássicas ao problema de Hume, apresentadas por Immanuel Kant e Karl Popper, Meillassoux atestará, por um lado, a incapacidade de Popper em situar uma contingencialidade fora da ciência – porque procura solucionar o dilema em termos epistemológicos, quando em Hume o problema é puramente ontológico[11]. Será em Kant que Meillassoux encontra algumas pistas, ainda que a Dedução Transcendental das Categorias seja insuficiente. Mas é pela distinção entre estes dois regimes de ficção, mormente pelo descarte da validade das leis da ciência, que o conceito serve o nosso argumento.

Consideramos ser possível dizer que História do Futuro é uma ficção fora da ciência. Desde logo porque, em termos ontológicos, Vieira percebe bem como não há experiência do futuro que possa ser calculada com base no passado – nesta História contam-se “felicidades novas”, “[…] não só novas, porque são futuras, mas porque não terão semelhanças com elas nenhuma das passadas” (Vieira, 1718: 67-68). Mas também pelo conteúdo do que é ficcionado – justamente a impossibilidade de Portugal vir a ser esse Quinto Império, pois não há nenhum facto vindo das leis da ciência que apontem para esse destino. Mas, talvez por isso mesmo, haja tanta atualidade na figura do Globo[12] – a esfera cristã que irradia o Quinto Império:

[…] diferentemente do que sucedia no mundo antigo, em que os deuses não tinham um plano próprio para o evoluir dos acontecimentos humanos, limitando-se a garantir o sucesso ou insucesso dos seus feitos, o Deus do cristianismo, conhecendo, no seu eterno presente, o que os homens farão no decurso do tempo, define um plano, uma ordem, uma harmonia, um horizonte de sentido para tais atos e suas consequências, projetando-se na totalidade dos pontos deste percurso universal, tanto no hemisfério do passado como no do futuro, como ainda nos instantes em que estes se intercetam dando corpo ao presente (Calafate, 2016: 85).

Quando um império aspira a alargar as suas fronteiras, fá-lo concentrando força bélica num único ponto do globo – e, depois de o ter conquistado, logo mobiliza o seu poder para um outro lugar. Em contraste, “quando o líder de uma religião deseja divulgá-la, envia missionários o mais amplamente possível, para todos os pontos da bússola, para criar um corpo disperso de homens isolados” (Tarde, 1893: 63) – é uma ideia que encontrámos em Gabriel Tarde e que lhe serve para pensar como “os processos pelos quais os seres vivos se propagam se assemelham muito mais à propaganda apostólica do que à anexação militar” (63). Mas aqui interessa reter como Vieira faz deflagrar a palavra reticularmente, espalhando com ela uma ideia que ganha potência e que quer ser.

Toda a possibilidade predispõe-se a ser realizada e, uma vez formada, qualquer realização quer universalizar-se (Tarde 1893, 60), é essa voracidade que move as coisas. Veja-se como vontade do império é comum a qualquer espécie, de uma ideia a uma infecção:

Toda a realidade, cada característica, uma vez formada, tende a universalizar-se. Esta é a razão pela qual a luz e o calor irradiam e porque a eletricidade se propaga com tal rapidez evidente, e a menor vibração atómica aspira por si mesma a preencher o éter infinito, uma meta para a qual todas as outras vibrações estabelecem uma reivindicação competitiva. É por essa razão que todas espécies, todas as raças vivas uma vez formadas, multiplicando-se numa progressão geométrica, logo cobririam o globo inteiro, se não se deparassem com seus rivais igualmente férteis […]. (Tarde 1893, 60)[13]

É por isso que qualquer produto social, industrial, uma linha de verso, uma fórmula, uma ideia política, sonha como Alexandre – procurando “projetar-se em milhares e milhões de cópias em todos os lugares onde os homens vivem, e só pára nesse caminho quando bloqueado pela força do seu rival não menos ambicioso” (Tarde, 1893: 60). E nessa avidez de expansão pela palavra, planetarizou-se uma ideia que quer concretizar-se.

Tudo o que é imaginável quer acontecer – dos futuros mais gloriosos ao mais terrível cataclismo. Lembre-se Vieira quando diz que “nem todos os futuros são para desejar, porque há muitos futuros para temer” (Vieira, 1718: 69). E assim voltamos ao presente, ao nosso presente, já uma realidade fora da ciência. Depois de 12 000 anos de Holoceno, eis o Antropoceno[14], a nova era geológica que absorve o impacto do desenvolvimento mais recente da acção humana libertando mutações de todo o género.

Gaia instabiliza-se[15]. É este o nome dado por James Lovelock à pele da Terra, que agora “sacode” a presença humana. A sua hipótese remete para um único organismo “[…] composto de todas as coisas vivas e o seu ambiente de superfície, os oceanos, a atmosfera e as rochas crustais, as duas partes fortemente unidas e indivisíveis” (Lovelock 1991,11). É nela que agora o agenciamento humano interfere, destabilizando o seu metaequilíbrio: a dependência dos combustíveis fósseis, o aumento da população, a superabudância de objetos e o uso do descartável, a desflorestação, enfim, todas as formas de exploração e de pressão sobre o planeta. Atravessar o Antropoceno obriga a uma nova relação com a natureza, mas também com a ciência. Se para as ciências modernas a tarefa consistia em compreender o mundo através da facticidade do saber, ter-se-á agora de problematizar o agenciamento humano não apenas como construção das ideias, mas também enquanto força geológica daquilo que documenta[16].

Se, como o propõe Gabriel Tarde, “a realidade é um dispêndio do possível” (Tarde, 1893: 212), isso significa dizer que a realidade dura apenas aquilo que o presente durar e, no instante em que cessa, tudo o que existe a partir daí torna-se imprevisível: entramos na contingência absoluta[17]. É com isso que, a partir de agora, temos de contar. Daí que ficcionar mundos fora das leis da ciência seja um exercício politicamente necessário, precisamente porque quer pensar um mundo inimaginável.

 

  1. A Relevância Política do Quinto Império

O Antropoceno obriga a alargar, abruptamente, o que tomamos por agenciamento. Não só porque o género humano é agora uma força geológica, meteorológica, biológica, mas também porque é neste momento que a natureza conquista o seu estatuto subjetivo:[18] furacões, chuvas torrenciais ou secas extremas agem tanto quanto programas, tabelas Excel, generais ou multidões. Caímos no Antropoceno para encontrar sinais de um mundo do depois, o que atua como contragolpe no presente:

[…] o apocalíptico dá o tom à desqualificação do existente, segundo formas novas, longínquas já do teocentrismo, sem por isso se confundir com uma ‘secularização’. Ao invés, funciona fora de um quadro imediatamente religioso, que é fundamentalmente utópico, ideal. (Miranda, 1994: 232)

Bragança de Miranda fala da afeção apocalíptica da discursividade moderna, e como esta terá sido essencial para o esquema epocológico[19]. Aqui apontamos para o problema da extinção tornando inteligível. Será nihilizando o existente, como o faz o Antropoceno, que o apocalíptico se reorganiza num imperativo positivo: agora, que estamos coletivamente implicados na nossa própria sobrevivência, temos de repensar a nossa relação com a Terra. Vem à lembrança o Übermensch de Nietzsche e, como o Sinn der Erde, a direção para a Terra que a sua geofilosofia e geoestética[20] propõem, poderá reconstituir-se nessa potente e projetiva figura que encontramos no Quinto Império, pela “[…] capacidade de sair de si próprio, de se transcender num império que, na visão de Vieira, deveria ser baseado num cristianismo universalista, casa de voluntária adesão para todos os povos” (Soromenho-Marques, 2016: 116-117). E, com este projeto “à medida da redondeza da Terra” (Calafate, 2016: 90), recorde-se também Novalis: “Temos uma missão: somos chamados à formação da Terra”[21].

“Se se admite consolação no acabar, nenhuma outra pode haver maior que acabar quando acaba tudo” (Vieira, 1718: 573). Que assim seja, mas suspendendo o fim do mundo com um Quinto Império que possa responder com uma ligação coletiva e planetária[22] ao inimaginado: o ser humano a programar a sua própria extinção. Porque há um fundo de verdade no apocalipse, este já não como uma catástrofe anunciada por quatro cavalos, sete selos e sete trombetas, que nos atingiria inesperadamente, mas uma onde “até os pássaros dos telhados percebem o nosso fim”.[23] E o Quinto Império surge aqui não como uma totalidade, não como uma subtilização na dominação, mas como uma virtualidade que encarna em si uma ideia cósmica tão potente como a fraternidade universal [24] – ainda que esta possa não estar destinada a realizar-se efetivamente.

Catarina Patrício


Referências no texto:

Datas entre parêntesis reto dizem respeito à data da primeira publicação. Referências em texto dizem respeito à data da primeira publicação.

Calafate, P. 2016. “Capítulo XV – Vieira e a sua visão do futuro” in Vieira “Esse povo de palavras”. Coord. J. Eduardo Franco, Aida S. Lemos, Paulo S. Pereira. pp. 85-90. Paris: Nota de Rodapé Edições.

Franco, J. E. 2016. “Capítulo I – Vieira Global – introdução” in Vieira “Esse povo de palavras”. Coord. J. Eduardo Franco, Aida S. Lemos, Paulo S. Pereira. pp. 9-12. Paris: Nota de Rodapé Edições.

Koselleck, R. 1985 [1982]. “Die Verzeitlichung der Utopie”. W. Voßkamp (ed.), Utopieforschung. Interdisziplinäre Studien zur neuzeitlichen Utopie. pp. 1-14. Stuttgart: Metzler Verlag.

Latour, B. 2014. “Agency at the time of the Anthropocene” in New Literary History.  Vol. 45, pp. 1-18. Johns Hopkins University Press.

Latour, B. 2017 [2015]. Facing Gaia: Eight Lectures on the New Climate Regime. Cambridge: Polity Press.

Lovelock, James 2000 [1991]. Gaia: The Practical Science of a Planetary Medicine. Oxford: Oxford University Press.

Meillassoux, Q. 2015 [2013]. Science Fiction and Extro-Science Fiction. Minneapolis: Univocal Publishing.

Miranda, J. B. 1994. Analítica da Atualidade. Lisboa: Vega.

Simondon, G. 2009 [1968]. “Entretien sur la Mecanologie” in Revue de synthèse, 130, pp. 103-132.

Shaviro, S. 2010. Post-Cinematic Affect. Washington: O Books.

Sloterdijk, P. 2008 [2007]. «A Natureza por Fazer. O Tema decisivo da Época Moderna». In Política: Crítica do contemporâneo, pp. 103-128. Porto: Fundação Serralves.

Soromenho-Marques, V. 2016. “Capítulo XX – Vieira: um existencialista avant la lettre” in Vieira “Esse povo de palavras”. Coord. J. Eduardo Franco, Aida S. Lemos, Paulo S. Pereira. pp. 113-117. Paris: Nota de Rodapé Edições.

Tarde, G. 2012 [1983]. Monadology and Sociology. Melbourne: Re.press.

Vieira, A. 2014 [1718]. História do Futuro (livro anteprimeiro). Lisboa: Círculo de Leitores.

Whitehead, A. 2015. [1920] The concept of Nature. Neo Editions.

Whitehead, A. 1948 [1925]. Science and the Modern World – Lowell Lectures 1925. New York: Pelican Mentor.


[1] O presente trabalho foi financiado por Fundos Nacionais através da FCT — Fundação para a Ciência e Tecnologia (Portugal), no âmbito do projeto de pós-doutoramento no ICNOVA com referência SFRH/BPD/108680/2015. Orcid ID: orcid.org/0000-0002-1904-2775.

[2] Veja-se Koselleck, R. 1985 [1982], “Die Verzeitlichung der Utopie”, W. Voßkamp (ed.), Utopieforschung. Interdisziplinäre Studien zur neuzeitlichen Utopie. Estugarda: Metzler Verlag. pp. 1-14.

[3] São palavras de Vieira. Reproduza-se aqui a passagem completa: “Os profetas não chamam histórias às suas profecias, porque não guardam nelas estilo nem leis de história: não distinguem os tempos, não assinalam os lugares, não individuam as pessoas, não seguem a ordem dos casos e sucessos; e quando tudo isto viram e tudo disseram, é envolto em metáforas, disfarçado em figuras, escurecido de enigmas, e contado ou cantado em frases próprias do espírito e do estilo profético, mais acomodadas à majestade e admiração dos mistérios que à notícia e inteligência deles” (Vieira, 1718: 68).

[4] Termo que aqui procura englobar a ficção científica, as ucronias e as distopias modernas.

[5] Ainda antes da era do motor, o mundo estaria já repleto de máquinas embrionárias. Gilbert Simondon, um dos mais relevantes filósofos da técnica, encontra essa tendência em Júlio Verne e, em entrevista a Jean Le Moine, dirá que por antecipação científica, há muito que a mecanologia existe sob uma forma poética, que antevê a relação entre a indústria mais perfeita, a ciência mais bem equipada e uma natureza no seu estado mais natural,  acrescentando: “J’ai plutôt abordé le gout mécanologique par les romans d’anticipation scientifique de Jules Verne, qui sont du XIXe  siècle, que par les philosophes, les techniciens, ou les spécialistes de la mécanologie proprement dite” (Simondon 1968, 108).

[6] Trata-se de uma advertência do afrotuturista Kodwo Eshun: “As New Economy ideas take hold, virtual futures generate capital. A subtle oscillation between prediction and control is engineered in which successful or powerful descriptions of the future have an increasing ability to draw us towards them, to command us to make them flesh… Science fiction is now a research and development department within a futures industry that dreams of the prediction and control of tomorrow” (Eshun apud Shaviro, 2010: 32).

[7] Repare-se como o capitalismo, na sua lógica corporativa de acumulação e apropriação, não captura apenas objetos, mas também gestos, expressões, divisas e palavras de ordem. Daí a renovada importância da contestação do comediante Bill Hicks: “Quit putting a goddamn dollar sign on every thing on this planet”. Resistir a essa captura passa já por manter, a todo o custo, a abertura do futuro.

[8] Cf. Sloterdijk, P. 1999. Regeln für den Menschenpark: Ein Antwortschreiben zu Heideggers Brief über den Humanismus. Frankfurt/M: Suhrkamp.

[9] Veja-se o original: “An event has a future. This means that an event mirrors within itself such aspects as the future throws back on to the present, or, in other words, as the present has determined concerning the future. Thus an event has anticipation: ‘The prophetic soul of the wide world dreaming on things to come: These conclusions are essential for any form of realism. For there is in the world for our cognisance, memory of the past, immediacy of realisation, and indication of things to come” (Whitehead, 1925: 74).

[10] Apresentado inicialmente em 2006 numa conferência na École Normale Supérieure (Paris-Ulm) e publicado em 2013. Consultámos a sua tradução para inglês.

[11] A reforçá-lo, veja-se a passagem: “What then is Popper’s misinterpretation of Hume? Popper poses, in reality, the following problem: can our theories be refuted in the future by new experiments? His problem is thus epistemological; it concerns the nature of scientific knowledge. But it is not ontological, in contrast to Hume’s problem, which concerns not simply the stability of theories but the stability of processes, of physical laws themselves. Popper, via falsificationism, does not treat this ontological problem” (Meillassoux, 2013: 15).

[12] Sobre o Globo veja-se o segundo tomo das esferas de Peter Sloterdijk (1999. Sphären II – Globen. Suhrkamp) e a palestra de Bruno Latour «Why Gaia is not the Globe – and why our future depends on not confusing the two» (2016) orientada à não coincidência entre Terra e Globo.

[13] Na tradução consultada: “Every reality, every characteristic, once formed, tends to universalize itself. This is the reason why light and heat radiate and why electricity propagates with such evident rapidity, and the least atomic vibration aspires by itself to fill the infinite ether, a goal to which every other vibration lays a competing claim. This is why every species, every living race be it barely formed, multiplying in a geometric progression, would soon cover the entire globe, if it did not come up against its equally fertile rivals […]”(Tarde, 1893: 60).

[14] Ainda que não haja um consenso quanto à data que o assinala, nem se chegámos a entrar ou não neste período, assuma-se o Antropoceno – isso lembrar-nos-á permanentemente da responsabilidade humana diante da instabilização da Gaia: «To live in the epoch of the Anthropocene is to acknowledge a strange and difficult limitation of powers in favor of Gaia, considered as the secular aggregation of all the agents that can be recognized thanks to the tracing of feedback loops. Here, just as with the earlier invention of the political personification of the State, both thought and practice need fiction: “Gaia, I name you as that which I am addressing and that which I am prepared to face” (Latour, 2015: 283).

[15] Cf. Latour, B. 2015. Face à Gaïa. Huit conférences sur le nouveau régime climatique. Paris: Éditions La Découverte.

[16] Cf. Latour, B. 2014. Agency at the time of the Anthropocene, New Literary History. Vol. 45, pp. 1-18. Johns Hopkins University Press.

[17] Permitimo-nos aqui destacar Meillassoux e o seu importante trabalho sobre a contigencialidade. Cf. Meillassoux, Q. 2006. Après la Finitude – Essai sur la nécessité de la contingence. Paris: Seuil.

[18] Alfred North Whitehead era já aqui exemplar, contribuindo para o fim do primado sujeito-objeto, já que, em Whitehead, categorias como vontade, desejo e criação “animam” qualquer entidade, quer seja humano ou não‑humano, orgânico ou inorgânico. Cf. Whitehead, A. 2015 [1920]. The concept of Nature. Neo Editions.

[19] Cf. “Epocologia e Apocalítico” in Miranda, J. B. 1994. Analítica da Atualidade. Lisboa: Vega. pp.230-238.

[20] Cf. Shapiro, G. 2016. Nietzsche’s Earth: Great Events, Great Politics. Chicago: The University of Chicago Press.

[21] Em A Natureza Por Fazer. O Tema Decisivo da Época Moderna, conferência de 2007 em Serralves, Peter Sloterdijk propõe diz que «fazer a Natureza significa nem mais nem menos que reconhecer-se como responsável, nesta era de globalização, pela arquitectura de interiores da biosfera» (Sloterdijk 2007, 121).

[22] Essa intenção fraterna assente numa geotécnica fora assinalada por Walter Benjamin em “Planetário”, um curto ensaio de 1929. Cf. Benjamin, Walter. 1992 [1929]. “Planetário”. In Rua de sentido único, pp. 107-108. Lisboa: Relógio D’Água.

[23] Como dissera o poeta alemão Hans Magnus Enzensberger (apud Miranda, 1994: 232).

[24] Enfatize-se a atualidade da proposta de Padre António Vieira citando José Eduardo Franco na Introdução a Vieira “Esse povo de palavras”: “A sua mensagem ainda mantém, em muitos aspectos, uma atualidade retumbante que encontra pontos de sintonia com projetos recentes de construção de um mundo melhor e, nomeadamente, da constituição de uma autoridade mundial para regular as relações globais entre os povos e garantir as bases de concórdia e de convivência pacífica” (Franco, 2016: 12).