A árvore das camélias

 

 

JOÃO CAMILO


João Camilo dos Santos foi Professor Catedrático de Literatura Portuguesa e Brasileira e de Comparative Literature na Universidade da Califórnia, Santa Bárbara, e Director do Centro de Estudos Portugueses da mesma universidade entre 1989 e 2015, tendo criado em 1994 a revista Santa Barbara Portuguese Studies. Actualmente Emeritus Professor da University of California.


A dama das camélias? A história francesa? Por favor, meu amigo, não me traga à memória lembranças desagradáveis. Há na minha vida uma dama e na vida dessa dama uma paixão por uma árvore pequenina em que florescem camélias. A dama foi-se embora, eu herdei a planta. E com a planta recordações e problemas que se podiam ter evitado. Quer que lhe conte? Então oiça.

Eu vivia num rés-do-chão com jardim. Jardim pequeno, que eu não cultivava. No andar de cima morava uma menina que gostava de flores mas não tinha jardim. Não falávamos muito porque neste país as pessoas são assim, pouco comunicativas, parece que têm medo umas das outras. E a menina devia ser tímida. Um dia, no entanto, encheu-se de coragem e perguntou-me se eu me importava que ela plantasse uma arvorezinha que dá camélias no meu jardim. Não percebi a intenção. Ela explicou:

– Cá de cima, da minha varanda, dava-me prazer ver crescer a árvore e contemplar as camélias. Eu adoro camélias. Devem cheirar bem.

Ela era bonita, eu achei-lhe piada, sorri, aceitei o contrato.

 

Foi ela quem comprou e veio plantar a arvorezinha ainda minúscula na terra do meu jardim.  Veio um sábado de manhã, pouco depois de termos feito o nosso acordo. Eu ajudei-a a meter a raiz da árvore na terra, íamos conversando. Agradava-me a companhia, devo confessar. Vista de perto, a pele do rosto da menina era fresca, cheirava bem, apetecia dar-lhe beijinhos. O cabelo espalhava-se-lhe meio desordenado pelos ombros, às vezes tapava-lhe os olhos e ela ia logo com a mão afastá-los. As orelhas pequeninas eram uma frutinha frágil e deliciosa que apetecia morder. Depois de termos jovialmente enterrado a raiz ficámos sem nada que fazer, fez-se uma pausa. Mas não me apetecia vê-la ir-se já embora, ficar sem companhia. Convidei-a a ficar mais um pouco.

Sentámo-nos no jardim a tomar chá. Falámos do que fazíamos e do que nunca tínhamos feito, falámos do trabalho, falámos de lugares onde tínhamos vivido antes. Falámos de pessoas e de livros, de filmes e de música. Enfim, falámos. E ficámos a conhecer-nos finalmente. Pelo menos um pouco.

A partir daí rompeu-se o gelo, ela via-me e eu via-a, olhávamo-nos nos olhos às vezes. Desapareceram os receios polidos que antes se camuflavam de boa educação e de reserva. Conversando mais vezes não ficámos apenas mais familiares, pois criou-se entre nós uma pequena intimidade. Quando nos víamos, eu no jardim, ela na varanda, saudávamo-nos, às vezes falávamos um pouco. Uma vez, mais afoita, ela convidou-me a subir, tomámos chá e comemos uns biscoitos. E íamos falando, de tudo e de nada.

Ambos gostávamos de chá, tínhamos em casa diversas variedades. Falámos nisso várias vezes em vez de falar de coisas mais pessoais, mais privadas. É assim com frequência no início das relações, quando as pessoas não se conhecem bem. Os assuntos inofensivos ou em que há menos risco de ambiguidades dão jeito para ir rompendo o gelo. Embora o pensamento e a atenção, que nunca deixam de estar activos, se concentrem já, consciente e inconscientemente, na pessoa que temos na frente, no seu corpo, na sua maneira de estar e de falar, nos seus gestos, nós falamos é do carro que temos de levar à garagem, do filme que acaba de sair, dos vizinhos ou dos colegas de trabalho, da família distante. Falamos de tudo e de nada, mas na sombra, silenciosamente, qualquer coisa vai nascendo, vai-se tecendo uma intriga, qualquer coisa que depois se mistura de maneira difícil de decifrar aos nossos sonhos mais obscuros, qualquer coisa sem nome mas que por vezes nos deixa pensativos e nos impede de nos concentrarmos no trabalho ou de adormecer imediatamente quando nos deitamos.

A modesta arvorezinha das camélias, que estava crescer mais depressa do que eu imaginara, que apesar de minúscula já devia ter crescido bastante noutro sítio, aproximou-nos, fez de dois estranhos que se cruzavam sem nada saberem um do outro duas pessoas que agora podiam conversar. Quando nos cruzávamos perto de casa acontecia às vezes que retomávamos uma conversa anterior ou comentávamos algum episódio da actualidade mais recente. E começámos a alongar os minutos dessas conversas fortuitas, a ter prazer em olhar um para o outro. Eu pelo menos tinha esse prazer, sentia-o. Mas também não tenho razões para pensar que ela só ficava a falar comigo por delicadeza. Os olhos dela não me olhavam curiosos e sorridentes? Algumas vezes eu acabava por ir ter com ela mais tarde para tomarmos chá ou ela descia as escadas e tomávamos o Darjeeling em minha casa.

 

Eu andava pelos trinta e cinco anos, era bibliotecário na universidade e vivia só. Ela era professora num liceu das redondezas e devia ter entre vinte e sete e trinta anos. Não era uma miúda, mas também não era uma mulher madura, longe disso. Eu não sabia nada da sua vida privada, não lhe conhecia namorado, não me dei nunca conta de que alguém a viesse buscar para ir ao restaurante, ao cinema ou ao teatro. Claro, podia ter namorado e estarem de momento separados por razões profissionais. Ela nunca falou nisso e eu não tinha intimidade suficiente para fazer perguntas sobre assunto tão privado. As fotografias de homens que ela tinha em casa eram do pai, dos irmãos, de uns primos, ela própria me tinha falado da família e explicado quem era quem. Uma tarde, quando estava em casa a aborrecer-me, pensei bruscamente: e se eu me apaixonasse por ela? E logo a seguir, mais nervosamente: será que já estou apaixonado por ela? Já nos conhecíamos há mais de um mês. De casa dela chegavam-me nesse momento as notas de uma sonata de Beethoven, a nº 32 opus 111. Era ela quem estava a tocar? Ela tinha a porta da varanda aberta e os sons, as frases do piano entravam pensativamente, sedutoramente, pela porta aberta do meu jardim. Eu tinha visto o piano em casa dela, tinha-lhe perguntado se tocava mesmo e o que é que gostava de tocar, mas ela limitara-se a dizer que o piano era de um amigo e que tocava mal, não valia a pena falar nisso.

Apaixonar-me por ela? Essas coisas acontecem, não se decidem. Será que já acontecera, sem eu me dar conta disso? Preferi afastar a ideia. A ideia não se ofendeu por eu a ter recusado e foi refugiar-se humildemente num cantinho quase desocupado do meu espírito, aonde eu não chegava facilmente. E continuou a importunar-me.

 

Já não sei bem como é que as coisas se precipitaram, mas a verdade é que uma semana depois eu e ela estávamos felizes, éramos namorados. Ela tinha descido as escadas uma noite, ainda cedo, porque se aborrecia sozinha em casa. Falámos do tédio, da solidão, tomámos chá, ouvimos um quarteto de Beethoven. A dado momento apercebi-me de que ela tinha lágrimas nos olhos. Não perguntei porquê, preferi pensar que era a emoção do momento, o florescer do amor. Não era bonito, comovente? Claro que era. Acariciei-a, consolei-a, beijei-a, a minha ternura era genuína. Não estava excitado, estava comovido. Quando procurei os seus lábios, eles vieram ao encontro dos meus.

 

Essa noite ela dormiu em minha casa. Falámos muito, noite adiante. Falámos do passado, de quando ainda não nos conhecíamos, falámos da abençoada arvorezinha das camélias. Eu perguntei-lhe se a ideia de plantar a árvore no meu jardim não fora premeditada, um pretexto dela para estabelecermos a relação. Ela riu-se e disse que gostava muito de camélias e que olhar para a arvorezinha lá de cima, da varanda dela, lhe inspirava pensamentos bons.

 

Durante meses as nossas relações foram-se desenvolvendo sem sobressaltos, aprofundaram-se. Estávamos, éramos felizes os dois. Eu considerava-me uma pessoa com sorte, ela ria-se e dizia que sorte fora ela ter-me conhecido. Passávamos muito tempo em casa a ouvir música e a conversar, mas íamos de vez em quando jantar fora, a bons restaurantes, e viajávamos por vezes nos fins de semana, íamos para uma montanha onde no Inverno se esquiava, perto havia uma bela floresta. Dormíamos muitas vezes juntos em casa dela ou na minha, conforme calhava ou nos apetecia. Se saíamos para jantar, ela queria que eu levasse uma camélia na botoeira do casaco, ela própria se encarregava de a colher e de a ajeitar na lapela.

 

Ela nunca me perguntou se eu tinha amado outras mulheres, eu não lhe perguntei se ela tinha amado outros homens. Uma tarde, porém, ela chegou a casa preocupada. Eu vi-a aproximar-se cabisbaixa e falei-lhe do jardim, onde estava sentado a ler ao lado da árvore das camélias, para a rua. Não quis entrar, sentia-se indisposta. Nada de grave, no entanto, eu não tinha de me preocupar, ela ia deitar-se para descansar um pouco.

 

Mais tarde, eram umas dez da noite, ela desceu. Queria falar comigo. Estava embaraçada. E eu comecei a ficar preocupado, mas não sabia ainda por que razão devia preocupar-me. Contou-me então, com as lágrimas nos olhos, que tinha tido um namorado há uns dois anos, que ele era engenheiro e estava em África há um ano, que ela pensava que as relações com ele não tinham futuro. Como considerava o assunto resolvido, nunca lhe parecera necessário falar-me nisso. Eu primeiro fiquei surpreendido. Depois fiquei inquieto, perturbado, nervoso, irritado, zangado. Ela continuou: o ex-namorado tinha-lhe telefonado na véspera a dizer que vinha passar um mês com ela e ela não sabia que fazer. Eu perguntei:

– Quer dizer, Clara, que mantiveste a relação com ele durante todo este tempo sem me dizeres nada.

– Ele nunca escrevia, telefonava raramente, não havia relação nenhuma, respondeu ela.

– Pois, mas se ele quer voltar, se se lembrou de ti, isso significa que para ele pelo menos a relação nunca terminou.

Ela não sabia como explicar o que estava a acontecer. A prolongada ausência de notícias e de contactos tinha sido para ela uma prova indiscutível de ruptura, não lhe parecia que tivessem sido ou fossem necessárias explicações suplementares. Provavelmente nem ela nem ele tinham querido abordar o assunto formalmente por lhes parecer desnecessário e para evitar dessa maneira a dor ou o embaraço. Só que agora ela sentia-se de novo confusa, estava atrapalhada e não sabia que fazer, como resolver o problema. Murmurei:

– Mas se vocês não têm falado, isso não significa que ambos tinham dado a relação por terminada, não?

Ela baixou os olhos e não disse nada. E eu pensei: o problema pode ser tanto meu como dela, mas é ela que tem de o resolver.

Ela abraçou-me, beijou-me, jurou-me que eu era o único objecto do seu amor, o único homem da sua vida. Ela só me amava a mim, estava segura disso.

– Então, Clarinha, vamos resolver o problema, disse eu, telefonas ao homem e falas-lhe da nossa relação

Ela ficou calada e pensativa. Pouco depois disse:

– Não tenho coragem de o magoar, não posso, acho que não consigo, ele foi sempre tão bom comigo

E eu, falsamente tranquilo e conciliador:

– Nesse caso sou eu que perco tudo, paciência, é a vida.

Ela protestou, agarrou-se-me ao pescoço, beijou-me banhada em lágrimas. A ideia de a perder, a ameaça de ter de viver sem ela, a recordação de todos os momentos que tínhamos vivido juntos e que agora estavam em risco de ser interrompidos perturbavam-me. Eu sofria. Beijei-a com desespero e com raiva levei-a para a minha cama. Fizemos amor três vezes. Com frenesim e um prazer novo, surpreendente, estranho. Depois adormecemos.

De manhã estávamos mais calmos. Ela fez-me uma festa na cara, depois pôs-se em cima de mim a dar-me beijos. Ficámos uns minutos em silêncio abraçados e a acariciar-nos. O perigo, talvez o medo ou o remorso, reuniam-nos, aproximam-nos, pensei eu. Depois ela levantou-se, tomou um duche, vestiu-se e foi trabalhar. Deixou no quarto um cheirinho bom a pêssego, os cremes dela sempre tinham cheiros de fruta. Eu levantei-me e fui trabalhar também. Quando me preparava para sair de casa e apercebi a arvorezinha das camélias pela porta que dava para o jardim apertou-se-me o coração. Passei o dia na biblioteca, preocupado, evidentemente, e com pouca capacidade de me concentrar no que tinha a fazer. Várias vezes dei por mim sentado à secretária do meu gabinete com o olhar fixo na parede, totalmente distraído da realidade.

 

Passou uma semana. Depois de termos estudado o problema de várias perspectivas decidimos que ela não diria nada ao Jeff por enquanto, que era preferível, mais corajoso e digno ter uma conversa a sério com ele, olhos nos olhos, quando ele chegasse. Eu sou humano, detesto a crueldade, compreendi e aceitei. Se eu estivesse na situação do pobre Jeff também gostaria de ser tratado assim, com alguma deferência. Já bastava o desgosto, se desgosto ia haver, o que não se sabia, visto que segundo ela contava eles há muito tempo que não se viam nem se falavam. Ele telefonara porque vinha de férias e lembrara-se dela. Mas não disse que vinha de férias propositadamente para a ver e para estar com ela. Havia alguma diferença, não? Eu não achava? Não respondi.

 

Ela acabou mais tarde por achar que, para evitar complicações e não tornar as coisas mais dolorosas para ninguém, era melhor, em vez de ficarmos os três a atormentar-nos impondo cada um de nós a nossa presença aos outros em momento tão delicado, ela viajar com ele logo que ele chegasse. E pouco a pouco ia explicar-lhe o que se passava, pô-lo ao corrente da nossa relação. Não percebi a lógica dela. Não gostei da ideia, não gostei mesmo nada, mas aceitei. Fiquei de pé atrás, no entanto. Comecei a ter dúvidas. E decidi ir eu próprio passar uma semana à montanha quando estivesse para chegar esse fantasma surgido brutalmente do passado. Assim nem tinha de o conhecer. Aliás, confesso, não me apetecia nada conhecê-lo nem me parecia que fosse saudável encontrar-me com ele. Estava a fazer o possível por tornar as coisas mais fáceis para todos. Provavelmente não devia.

 

Ela ajudou-me a fazer a mala e quis que eu dormisse em casa dela na véspera da minha partida. Fui-me convencendo de que as nossas relações não estavam em perigo, pelo menos tanto como eu secretamente o receara. Senti-me mais tranquilo. Ela não se cansava de repetir que me amava, não queria que eu me preocupasse, pedia-me desculpa, lamentava a sua ligeireza. E proibiu-me severamente, com um dedo no ar, de me pôr a imaginar histórias insensatas de traições durante a sua ausência. Embora em mim subsistisse alguma inquietação, achei que por ora não devia estar tão nervoso. Fiz um esforço para afastar certas ideias que começavam a afectar seriamente o meu equilíbrio mental e emocional e posso dizer que passei uma semana relativamente tranquila na montanha. Claro, aborreci-me um pouco e reflecti muito. Nem sempre dormi bem, tive alguns pesadelos. Às vezes ficava inquieto, perdia o apetite, outras vezes ficava irritado e mesmo furioso com ela., tinha-lhe raiva. Mas a altitude, as árvores, o ar puro, o silêncio e a solidão da natureza sempre tiveram o poder de me pôr de bem com a vida, de bem comigo mesmo e eu não me queixava demasiado. Quando voltei da montanha eles tinham-se ido embora, como previsto. Eu estava sozinho, na expectativa. E a solidão, de que eu me desabituara graças a ela, começou a pesar-me.

 

Foram passando os dias. Ela telefonou-me todas as noites durante uma semana, sempre meio apressada, sempre com receio de ser surpreendida pelo outro. Eu perguntava-lhe como iam as coisas, se ela já lhe tinha falado de nós. Ela disse que lhe tinha falado de mim várias vezes como sendo um grande amigo seu, mas que ainda não tivera a oportunidade de fazer a transição e de lhe dizer toda a verdade. Eu irritei-me e perguntei-lhe se dormiam juntos. Ela fez que se zangou, ameaçou desligar o telefone, disse que dormiam em camas separadas, jurou que entre eles desaparecera esse tipo de intimidade, que nada se tinha passado desse ponto de vista.

Isto foi durante a primeira semana. Na segunda semana, enquanto a minha preocupação e a minha irritação não paravam de aumentar, ela só me telefonou duas vezes. E estava com tanta pressa, tão nervosa, tão cheia de receios que não deu para falar de nada. Eu já andava a dormir mal, nervoso e deprimido. Tudo piorou.

Quando ela me telefonou na terceira semana a dizer que não tinha tido coragem de confessar a verdade ao Jeff eu fiquei doido de raiva e explodi. Ela não se comoveu e informou-me friamente de que tinha decidido voltar com ele para África. Ele sentia-se lá muito só, longe da família, dos amigos e da civilização. E ela afinal tinha obrigações para com ele, eles tinham tido uma relação intensa durante vários anos, ele até era um amigo de infância. Agora, ao revê-lo, sentira remorsos de ter sido um pouco leviana ao considerar que as relações entre eles estavam terminadas. Pediu-me compreensão e perdão. Jurou-me, entre dois soluços sinceros ou falsos, que nunca se havia de esquecer de mim, que me amava, que eu ocupava no coração dela um lugar que ninguém, absolutamente ninguém, poderia nunca ocupar. Repetiu que estava a agir em parte por dever e em parte por compaixão, mas que não podia neste momento tomar outra atitude. E desejou-me felicidades.

No dia seguinte de manhã telefonou-me de novo e disse:

– Não tive coragem de te dizer isso ontem. Ainda não tenho a certeza, mas creio que estou grávida. Não seria conveniente tu tentares contactar-me.

Mais um murro no meu estômago. Sentei-me na cama, meio agoniado, mas ainda tive presença de espírito para comentar cinicamente:

– Mas se tu não dormias com ele, estás grávida é de um filho meu.

Ela não disse nada durante uns segundos, depois ouvi-a murmurar:

– Meu querido, perdoa-me, não fiques a odiar-me. Ainda não estou segura de nada, mas não pode ser, eu fiz um teste de gravidez antes de ele vir. ´De qualquer modo o apartamento onde te conheci é meu e fatalmente voltaremos a encontrar-nos no futuro.

Ela disse adeus e desligou o telefone. Eu não disse nada. Mas se ela tinha feito o teste da gravidez entes de o outro chegar isso significava que tinha havido premeditação, que ela já sabia o que ia acontecer.

 

Estávamos no Verão, achei que eram desastres a mais para um pobre bibliotecário sem muitos amigos nem grandes distracções na vida. Estava tão desiludido, tão ferido, tão deprimido. Pensei: nunca mais vou acreditar em ninguém, desta vez é definitivo. Decidi partir para a Europa, afastar-me dos lugares que me lembravam a sua presença e as nossas relações. Fiquei lá dois meses, andei sempre com ela no pensamento. Voltei sem a ter esquecido e a minha visão do mundo e da vida não melhorara nem melhorou depois do meu regresso. Dormi com uma rapariga em Paris. Sem muito prazer e com grande sentimento de culpa. Uma noite em que me senti muito só e muito deprimido, andava a pé pelas ruas de Lyon depois de ter jantado magnificamente, pensei em matar-me. Atirava-me ao rio. Influência surpreendente do bom vinho da Bourgogne, de que eu abusara ao jantar e que queria agora vingar-se abusando da minha fragilidade emocional. Achei a ideia estúpida. Voltei ao hotel e dormi menos mal.

 

Passou ano e meio. A Clarinha telefonou-me de África há coisa de um mês. Ao ouvir a voz dela fiquei sucessivamente surpreendido, estranhamente contente, depois outra vez irritado e furioso com ela. Não deixei transparecer as minhas emoções, calei-me uns segundos e fiquei à espera. Ela falou. Confessou-me que não é feliz, que decidiu não casar com o Jeff. Pela segunda vez chegou à conclusão que não o ama. Disse-me que passa muito tempo sozinha, que se aborrece, que não se adapta à vida em África.

– E o teu filho? – perguntei eu, que não sou rancoroso.

– Oh, o meu filho, balbuciou ela.

Suspirou e disse que tinha abortado naturalmente, já em África, talvez devido às viagens e às emoções. Mas bem vistas as coisas, tinha sido melhor assim. Talvez o filho até fosse meu, o que teria complicado muito a sua vida e a de outra pessoa.

– Imagina que ele era parecido contigo?

E suspirou de novo. Eu não disse nada, fiquei à espera. Então ela perguntou-me, já meio a rir, aparentemente bem disposta, se eu tratava bem a arvorezinha das camélias, se não me esquecia de a regar. Entendi que me estava a abrir uma porta por onde eu podia entrar. Era isso? Ri-me, não respondi. Achei preferível não esboçar qualquer tentativa de regresso ao amor por porta tão incerta.

 

Já percebeu agora, meu amigo, por que razão eu prefiro que não me falem em árvores de camélias, por que razão eu não gosto de camélias? Ah, já me esquecia de lhe dizer: quando tinha voltado da Europa arranquei a arvorezinha das camélias do meu jardim e ofereci-a a um colega que não suporto, que não é boa pessoa e vive no campo. Ficou surpreendido, mas aceitou a oferta com um sorriso. Talvez ele acabe por fazer o que eu não fiz: esquecer-se de regar a árvore, deixá-la secar. E já agora deixe-me acrescentar que a ela não lhe contei o destino que tinha dado à maldita árvore.