venda das raparigas . britiande . portugal . abertura: 2006

Stella Carbono M.'. M.'.C.'.

TRABALHOS DE UMA LENHADORA

TERCEIRA PARTE: ARTE

Arboreto

 

BRITIANDE - PORTO

2010

 Para a Isaura Baptista Guedes
que leva os primos e amigos para a sua quinta
e lhes dá a mamar das árvores

ARBORETO - INDEX

A cerejeira

São pessoas com raízes
tão fundamente enterradas
no coração
que sangram por espinhos
finos acúleos
e deixam regos de cicatrizes.

As árvores são antepassados
de braços erguidos sobre a carapinha.
E a cerejeira tão velha
toda ela portas abertas
para nós amantes.
Caem de maduros frutos doces
da cabeça dos homens
pensamentos luxuriantes
entre os quais repicam bronzes.

Somos a cerejeira
de vermelhas bagas
brincos nas pequenas orelhas
ouriculares
no cadinho fonético
audíveis estrelas
brilham com seus dentes de Au.
Em baixo correm riachos
subterrâneos
até ao caranguejo de lava
no centro incandescente da terra
que a tudo alumia e dá mama.

Somos a cerejeira
dobrada sobre si mesma
a segurar nas mãos a dor em brasa.

Cintilam ideias, fulguram mentes
agitam-se as folhas tagarelas
dos choupos tremedores
mas nós somos a interdita cerejeira
de punhais trespassada
à porta dos pais fechada
os velhos sentados na laje antiga
dos provérbios contados
à soleira da anosa choupana
enquanto galinhas debicam grãos de sol
na crepitação da palha
despedem centelhas os folículos
das espigas e rente ao chão
nos agostos insondáveis
vibra a colcha acetinada
das gramíneas.
Por cima de tudo isto
as pensativas árvores
de grilhetas nos pés
ou com cartazes afixados nelas
a avisar que são procuradas.
Essa pessoa de chapéu
de bagos vermelhos na cabeça
para proteger os pensamentos
e de mão encostada ao lado esquerdo do tronco
a serenar o coração
sou eu
Prunus como o abrunheiro
subgénero Cerasus
Rosales como as silvas Rubus
agressivas que dão leite negro
nas amoras
na fase alquímica de rubedo.

Meu coração não te partas
como travessa de barro
antes de ir ao forno
nesta despedida imóvel
à porta da casa
fechada.
Despeço-me da infância
tão idosa
como a tua franja rubra
de corais.
O esquife espera-me
com o peso do sol em cima
do peito
e nos ouvidos o rumor distante
da egipcía canção.

Não eu não matei.
Não eu não roubei.
Não eu não cobicei o homem de mulher nenhuma
e não
- porque não? –
também a homem nenhum cobicei a esposa.
De minha mãe oiço o rosário de
Não Não Não
profana cantiga apenas
de quem não controla a vida
mas para quem a confissão é positiva.

Toda eu portas abertas
que era
e agora derrubada
a proteger-me das facadas
fechei todas as entradas
para o labirinto do coração.

Volto lentamente a proa
à nilótica barca
e vogo para muito mais longe que isto.
A oriente
a funerária embarcação abeira-se
de um arbusto genealógico
pérolas ardentes vermelhas
que nem pintam nem são passas
antes colar de cerejas acesas.

Chegam pássaros de bico dourado
para o repasto das árvores
e caem mortos caem mortos
com tanta fruta no chão
que ninguém aproveita
mas deixar os pássaros comer
isso é que não!

Gaia a superTerra deusa-Mater
feita de estruturas e relações
não sabe sentir vergonha
nem ódio contra esta gente
que ainda não saiu da fase evolutiva de macaco.
Por isso não se vinga
apenas nos dá o troco dos nossos atos:
mosquitos com fartura baratas tremendas
as casas invadidas pelos ratos
as alfaces radioactivas
que nos fazem cair os cabelos
e os dentes das gengivas.
Quando era tão fácil deixar comer as aves
numa terra em que ainda há cerejas para todos.

Para todos
mas não para ti
a quem barraram a passagem
para as árvores.
Não há chaves não há chaves
não há chaves de platina nem de latão
capazes de abrir as portas
fechadas do coração.

Zumbem abelhas à volta do tronco alto
e carcomido dos anos
porque as árvores envelhecem
como os amos
e merecem como eles morrer disso.
Idosa cerejeira tocada um pouco de
Alzheimer
de Alzheimer deveras ferida
ampara-me no teu regaço.

Eis que chega o carniceiro
com seu cutelo
à garganta da mãe apontado.
O tronco dobra-se para dentro
os ramos apertam-se em torno da dor
salta uma espadana de sangue
cerejas vermelhas cerejas de sangue
salpicam o áspero chão.

Outra machadada
no tronco da única árvore
de porte no terreno
anciã do pomar
os cabelos de líquenes brancos
já anunciando morte a seu tempo
sem precisão de eutanásia.
A velha grita que não fez nada
a velha agarra-se ao sofrimento próprio e alheio
e geme que não foi ela
apesar de tão culpada como todos nós
não foi ela quem interditou aos pássaros
as mais altas cerejas
é só um grito único a varrê-la das raízes
à cúpula dos pensamentos
rubis amargos
verdes ramas
rubis amaros
ideais de merda
cerejas na lama.

O sangue é um regato
que se derrama
do coração aos pés da velha
decana nesse arboreto sem cerca
onde outrora
com a nobreza que nunca mais se viu na terra
se erguia uma gentil choupana.
Caem-lhe um a um os braços
num roçagar de folhagem e estampido breve
das projetadas cerejas
brincos viventes
em torno das abelhas
o tronco aberto à facada
a ver-se-lhe tudo por dentro:
o coração rebentado
as tripas os rins às fatias
que mal se seguram por um fio
e a seiva vermelho vivo
que escorre
resina animal pungente.

A besta armada de cutelo e machado e punhal
mais toda a força da brutal razão
abate abate
abate a velha cerejeira
só para mostrar ao mundo
nada isto chiça coisa nenhuma.

Zumbem insetos à volta dos toros
carcomidos dos anos
no chão sem sentidos empilhados
porque as árvores envelhecem
como os amos
e merecem como eles morrer de antigas.

Toca a finados na tarde
convocando o povo para o meu enterro
e já com antecedência fiz o choro
bebida a cana
a cara pintada de branco
o tambor a dar a notícia à noite
cedo na barca de Rá embarcada.

Barraram a passagem à memória
este dia é de defuntos.
Não há chaves não há chaves
não há chaves de platina nem de latão
capazes de abrir as portas
que a cerejeira abatida
fechou ao coração.
 

 

Maria Estela Guedes
Britiande . Porto, Agosto/Outubro, 2010