venda das raparigas . britiande . portugal . abertura: 2006

Stella Carbono M.'. M.'.C.'.

TRABALHOS DE UMA LENHADORA

TERCEIRA PARTE: ARTE

Arboreto

 

BRITIANDE - PORTO

2010

 Para a Isaura Baptista Guedes
que leva os primos e amigos para a sua quinta
e lhes dá a mamar das árvores

ARBORETO - INDEX

Arboreto

Vem vindo devagar o rolo negro
o odor acre em volutas que o nariz persegue
salpicos de cinza depositam-se no terraço
entram fagulhas pelo quarto dentro
seguindo uma nuvem chamuscada de borboletas.

Os carvoeiros agacham-se atrás das choças
aterrados.
Os jardineiros preparam baldes
os lenhadores atentam no fio dos machados.

A colcha branca da cama
manchada com um crime alheio
afinal nosso
é de todos o crime
com mata em chamas ou rios pútridos
todos somos criminosos:
carvoeiros jardineiros rachadores e
lenhadores
e paisanos de outros orientes.

Erguem-se gritos sob a ameaça
o fogo tão próximo das casas
uivam cães
os lobos já não existem
e as lagartixas correndo loucamente
em busca de um buraco no chão
ocupado já por escaravelhos
uma cobra aflita
e outros animais que buscam salvação
mas voltam para trás
acabando
predador e presa
por partilhar a mesma lura subterrânea
enquanto no mundo dos homens
lavrar mais escândalo ainda do que flamas.

A mãe Gaia agarra-nos agora pelos pés
sem raivas sem espírito de vingança
não é sequer um julgamento
apenas o resultado da nossa ganância.
Piores somos que animais
bestas sem raciocínio nem piedade
merecíamos tribunal e essa imagem de Salomão
a espada na mão direita
a ameaçar a criança suspensa
da mão esquerda.
Mas não temos aqui nenhum tribunal
nem juízes cruéis
justos ou santos.
Gaia é um superorganismo
Terra-Mater
Magnificente, ó Sublime e Sereníssima
Mãe de toda a gente
rogai por nós!

Gaia ignora sentimentos
não conhece a raiva o ódio a arrogância
não sabe o que é a vingança.
O eterno riso na boca dá-nos
sem cobrar o troco do mal que lhe infligimos
lenha para nos queimarmos.

Os carvoeiros agacham-se atrás das choças
aterrados.
Os jardineiros preparam baldes de água
para apagar o incêndio
os lenhadores atentam no fio dos machados.

Não há salvação para o povo da floresta.
Bem podem os botânicos deixar arder
o Systema Naturae.
Sem árvores não se forma oxigénio
resta-nos morrer asfixiados.

 

Maria Estela Guedes
Britiande . Porto, Agosto/-, 2010