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O Gênero da ciência psicológica |
Nestas breves reflexões, pretendo colocar em análise o fato de que a “generificação” do mundo e de seus sujeitos também estrutura a própria produção científica, mormente aquela do campo da Psicologia , no qual se pode verificar a tendência a universalizar seus conteúdos e a propaga-los, por conseguinte, como noções que neutralizam, ocultam e obscurecem os sujeitos. Enquanto ciência, a Psicologia tem se estruturado desde a desmaterialização de seu objeto de estudo, tratado de forma geral e vaga como o homem, o qual passa a ocupar uma posição de sujeito metafísico e transcendental. Parto do pressuposto, portanto, de que a linguagem científica não é inocente e neutra, mostrando-se implicada e transversalizada pelas próprias problemáticas que constitui e estuda. Teóricos/as como Valerie Walkerdine (1995), Mary McCanney Gergen (1993), Françoise Collin (1992) dentre outros/as têm apontado a importância das fundações epistemológicas da ciência, tornando possível análises da estrutura do conhecimento desde o enfoque patriarcal e androcêntrico. No Brasil, Albertina de Oliveira Costa e Cristina Bruschini (1992), Maria Odila leite da Silva Dias (1992) , Maria Luiza Heilborn (1992), Heloísa Buarque de Holanda (1994) são algumas das feministas que também assinalam a questão, uma vez que consideram, seguindo a trilha da historiadora inglesa Joan Scott (1995:86) , que o gênero, “ como forma primária de dar significado às relações de poder”, é elemento constitutivo das relações sociais, impregnando-se nos símbolos culturalmente disponíveis, nos conceitos normativos das doutrinas educacionais, religiosas, científicas, políticas e jurídicas,nas organizações sociais e nas identidades subjetivas. Se a categoria Gênero refere-se a uma das formas simbólicas de hierarquizar e ordenar o universo em termos de um princípio de valor e se pode imbricar-se, por sua vez, na própria produção do social não se referindo apenas a identidades subjetivas, pode-se vir a problematizar as funções que as ciências sociais e humanas têm desempenhado ao longo de suas trajetórias de desenvolvimento no tocante à regulação e normatização do social, podendo-se avançar na convicção de que o empreendimento científico não é desinteressado e que sua pregnância política o remete para a questão da governabilidade e da biopolítica. A inauguração de conhecidas tradições da ciência psicológica deu-se em conjunturas históricas permeadas pela necessidade de instaurar mudanças relativas às populações urbanas. De acordo com Walkerdine( 1995:209), novas abordagens científicas foram produzidas enquanto instalava-se um governo “centrado na administração científica das populações” e, desta forma, ciências como a psicologia e a sociologia, “tornaram-se incorporadas às tecnologias para regular populações”. Se a produção de conhecimentos pode ser vista como regulada por determinados processos históricos relativos a contextos sociais particulares, se os regimes de verdade, como nos mostra Michel Foucault (1979), se territorializam e desterritorializam desde as forças de poder circulantes no discurso social, se o foco da moderna estratégia de governo é a de “produzir um cidadão governável, obediente, cumpridor das leis, que deve ser produzido por técnicas que não são necessariamente de supressão direta, mas que transformam as características desejáveis em normais e naturais” (Walkerdine, op.cit.:210), há que se reconhecer tanto a impossibilidade da neutralidade científica como a eficácia da ciência quanto ao seu poder performativo estruturante, capaz de dizer as espécies que o mundo contém e as que dele se encontram excluídas. Implicada com o poder de nomear e subjetivar, a Psicologia tem cultivado tradições que, ao se afirmarem neutras, configuram justamente as condições de ocultamento do poder e de suas “verdades”, o que vem caracterizar , em termos bourdieuanos (Pierre Bourdieu,1989) a produção da violência simbólica manifestada na construção do consentimento e da devoção dos próprios sujeitos com as condições de sua dominação. A participação da ciência como forma de poder a serviço da domesticação social tem se constituído como uma especial via da reprodução social e cultural das desigualdades e subordinações, sejam elas de classe social, gênero, raça/etnia, idade, dentre outras. Ao supor-se apolítica, a ciência psicológica tende a negar o poder simbólico que detém e que se torna o sustentáculo legitimador da categorização conveniente dos agentes sociais em homens e mulheres, fixados/as rigidamente em estereotipias de papéis sexuais. Tais estereótipos mostram-se ao mesmo tempo vazios e transbordantes por fazerem falar o silenciamento da imensidão de possibilidades de vir-a-ser homem e mulher. As atuais formas de “generificar” machos e fêmeas enquanto herdeiros sociais, nada mais fazem do que enfatizar as desigualdades entre os gêneros, impondo tanto aos homens como às mulheres, formas de domínio/subordinação alocadas numa economia de trocas simbólicas que torna os homens dominados por sua dominação e as mulheres dominadas pelos homens e distantes do suposto estatuto humano. Ao ocultar-se sob a falsa aparência a-política, a Psicologia torna-se capaz de incluir-se naquilo que Foucault (1977) denomina de “ortopedia moral”: ao despolitizar-se, ela despolitiza os próprios sujeitos sociais, concebendo-os como “seres humanos” passíveis de serem generalizados em suas diferenças. Tornados genéricos, homogêneos e enquadrados ao padrão da normalização social, os sujeitos tendem a se adaptar e interiorizar o código de crenças sobre si, tornando-o uma espécie de segunda natureza. É no próprio coração de seu ser que a dominação masculina celebra sua reprodução! Acredito que os Estudos Feministas podem vir a auxiliar no que diz respeito à colocação da problemática da “generificação” da produção científica. Não enquadrados no modelo de ciência “normal” (Kuhn,1987:24), mostram-se acolhedores das instabilidades das categorias de análise e despudorados em introduzir incertezas e indeterminações como companhias constantes de nossa vigilância epistemológica. Seus compromissos políticos, sua profunda articulação com os anseios de transformação social, sua estruturação íntima com as lutas contra as exclusões, podem se tornar, aos olhos dos psicólogos e dos demais cientistas, como exemplo ético de ciência ao mesmo tempo crítica e criativa, engajada na multiplicidade do real e das populações. |
Referências Bibliográficas |
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa:Difel, 1989. COLLIN, Françoise. Le sexe dês sciences. Lês femmes em plus. Série Sciences em Societé, n.6, oct.1992. COSTA, Albertina de Oliveira; BRUSCHINI,Cristina (orgs.) Uma questãode gênero. Rio:Rosa dos Tempos, 1992. DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Teoria e Método dos Estudos Feministas:perspectiva histórica e cotidiano. In: COSTA, Albertina ; BRUSCHINI, Cristina (orgs.) Uma questão de gênero. Rio:Rosa dos Tempos, 1992. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1977. __________. Microfísica do Poder. Rio:Graal, 1979. GERGEN, Mary Mc Canney (org.) O pensamento feminista e a estrutura do conhecimento. Rio:Rosa dos Tempos, 1993. HEILBORN, Maria Luiza. Fazendo gênero? A antropologia da mulher no Brasil. In: COSTA, Albertina; BRUSCHINI, Cristina (orgs.) Uma questão de gênero. Rio: Rosa dos Tempos, 1992. HOLLANDA, Heloísa Buarque (org.) Tendências e impasses. O feminismo como crítica da cultura. Rio:Rocco, 1994. KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo:Perspectiva, 1987. SCOTT, Joan. Gênero:uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e Realidade. Porto Alegre, v.20.n.2, jul;dez 1995. WALKERDINE, Valerie. O raciocínio em tempos pós-modernos. Revista Educação e Realidade. Porto Alegre, v.20, n.2, jul;dez,1995. |
A Autora é Psicóloga, Doutora em Educação, Professora do Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS e-mail: tfonseca@via-rs.net |