Quarenta anos após o 25
de Novembro de 1975, importa recordá-lo, como acontecimento
fundamental na vida política portuguesa, nomeadamente na consolidação
do projecto apresentado aos portugueses pelo MFA em 25 de Abril de
1974, mas importa também analisá-lo, procurando aproveitá-lo para
perceber melhor o que se passa hoje em Portugal.
Após um período de luta e transformações intensas
em Portugal, há quarenta anos estávamos à beira da guerra civil, com o
risco de nos perdermos na maravilhosa aventura colectiva em que se
transformara o 25 de Abril. A Revolução dos Cravos estava prestes a
estoirar e, com isso, a desaparecerem todos os sonhos que se haviam
alimentado.
Tendo, em 25 de Abril de 1974, avançado para o
derrube da ditadura; para a resolução do problema colonial, com o
consequente fim da guerra que há 13 anos mantínhamos em três
longínquas colónias; para a instalação de uma democracia politica
“tipo ocidental”; foi com enorme celeridade que o MFA desenvolveu a
melhor e mais eficiente operação militar que alguma vez as Forças
Armadas Portuguesas realizaram ou vieram a realizar.
Empurrados pelo povo português, que tomou em mãos a
própria revolução – que saudades desses tempos participativos e
entusiasmantes! –, aos militares coube fundamentalmente criar e
garantir condições para que o Programa que apresentaram nessa
maravilhosa madrugada libertadora se pudesse cumprir na totalidade.
No entanto, as ambições humanas não deram descanso
ao MFA e, rapidamente, ele vê surgir no seu seio, um projecto pessoal
à volta de António de Spínola, que tudo faz para subverter o projecto
colectivo que estava em marcha.
Foi a tentativa de rasgar o Programa, logo no dia
25 de Abril; foi o “Golpe Palma Carlos” menos de três meses depois;
foi o 28 de Setembro, com a própria auto resignação de Spínola; foi o
11 de Março de 1975…
Com todas essas tentativas falhadas, Spínola abriu
sempre a porta ao chamado “salto qualitativo” à esquerda, o que ia
provocando o não cumprimento de uma das promessas chaves do MFA, para
que o seu Programa se concretizasse: refiro-me às eleições para a
Assembleia Constituinte, base da democratização do Pais, objectivo
primeiro dos Capitães de Abril.
Eleita a Assembleia Constituinte, nas eleições mais
livres e participadas que alguma vez se fizeram em Portugal, ao MFA
cabia, então, garantir as condições para que a mesma aprovasse, de
forma livre e autónoma a Constituição da República Portuguesa.
A aceleração provocada pela dinâmica criada pelas
sucessivas derrotas das tentativas de quem nunca aceitou um 25 de
Abril libertador, criou, no entanto, movimentos e esperanças
ilegítimas na sociedade portuguesa, com inevitáveis reflexos no
interior do MFA.
Foi o tempo das várias vanguardas revolucionárias
que, procurando imitar exemplos noutros países, se desenvolviam,
preconizavam a substituição da revolução democrática que o MFA
iniciara em 25 de Abril por outras revoluções mais ou menos na moda,
nesses tempos de então.
Em consequência, o MFA dividiu-se em facções, cada
uma procurando defender o seu projecto.
Serei suspeito nas opiniões que tenho: são as
minhas, é lógico que as defenda!
Pessoalmente, continuo a considerar que a
legitimidade revolucionária pertenceu sempre aos capitães de Abril que
se bateram pela concretização das promessas apresentadas no seu
Programa do MFA.
A partir de determinado momento, tiveram atrás de
si todos os que, não concordando com o 25 de Abril libertador, não
tinham coragem nem condições para impor o regresso ao “antes do 25 de
Abril” ou, no mínimo, impor uma “democracia musculada”? É um facto,
mas é isso que sempre acontece em todos os lugares e com todas as
sociedades! Tacticamente, todos e cada um, procuram alianças para, não
conseguido atingir os objectivos que pretendem, manterem as condições
que lhes permitam chegar a esses objectivos, num futuro que pretendem
o mais próximo possível.
Não vou aqui descrever em pormenor o que foram os
tempos do PREC, Processo Revolucionário em Curso. Os enormes problemas
existentes, os exageros cometidos, as divisões verificadas, as utopias
perseguidas…
O facto é que tudo isso se “resolveu” com o 25 de
Novembro de 1975.
25 de Novembro, que para uns é o fim do 25 de
Abril, para outros , o retornar a essa data mágica da História de
Portugal, repondo o verdadeiro espirito democrático e libertador. Para
uns, um golpe da direita feito de provocações à esquerda
revolucionária, que é atirada borda fora do processo revolucionário,
para outros, uma tentativa de golpe dos esquerdistas, mais ou menos
acompanhados pelos comunistas, a que se segue uma resposta firme e
decidida das forças democráticas que repõem o comboio do 25 de Abril
nos seus próprios carris.
Em suma, poderemos perguntar quantos 25 de Novembro
existiram? Provavelmente, tal como no 28 de Setembro e no 11 de Março,
também aqui cada um terá o seu. Pois, se até o 25 de Abril, apesar de
inclusivo, é olhado de formas diferentes, por uns e por outros!
Quarenta anos passados, continua a ser polémica a
leitura que se faz daqueles tempos tão conturbados, tão controversos,
mas tão ricos e profundos.
Como um dos que neles se envolveram, um dos
responsáveis por muitas decisões então assumidas, passados estes anos,
confesso não me sentir arrependido de ter lutado pelos meus ideais, de
ter contribuído para construir uma sociedade diferente. Apesar de
alguns erros cometidos, apesar de muitas desilusões que, de então para
cá, tenho enfrentado, apesar de algumas traições que então sofri e de
que só mais tarde vim a tomar conhecimento, continuo a considerar que
valeu a pena. Valeu a pena lutar por um país democrático, livre e
aberto ao mundo e à modernidade. Um País onde o medo, a repressão, a
guerra, o atraso e o analfabetismo não estivessem permanentemente
presentes no seu povo.
Nem tudo foi conseguido, nem todo o mal foi
erradicado, mas não tenho dúvidas de que vivemos muito melhor do que
antes do 25 de Abril.
Mesmo, apesar de nos últimos anos termos vindo a
assistir à destruição de quase tudo o que se conseguiu conquistar com
Abril, temos ainda a liberdade conquistada que nos permite lutar
contra as novas forças da reacção, os novos fascistas, as novas
“maiorias silenciosas“, que querem voltar ao 24 de Abril!
Por isso, apesar de o 25 de Novembro continuar a
ser uma data, um acontecimento, fracturante, temos de ser capazes de o
olhar com novos olhos, para podermos dele tirar as lições que nos
permitam enfrentar as novas lutas em que estamos envolvidos.
A História repete-se, afirma-se permanentemente. É
uma afirmação que se ouve repetidamente, também no que à História de
Portugal diz respeito.
Pessoalmente, comparando o 5 de Outubro com o 25 de
Abril, considero que o 25 de Novembro é a data que faltou ao 5 de
Outubro.
Isto, porque penso que se durante a 1ª República
tivesse ocorrido um acontecimento como o 25 de Novembro, de que
resultasse o fim da “bagunça” e da indisciplina nos quartéis, a
transferência da discussão política dos quarteis, para um órgão de
soberania especial, formado por militares, com a institucionalização
de um período de transição durante o qual esse órgão tivesse poderes
específicos e fosse o garante da consolidação democrática, talvez a 1ª
República não tivesse terminado em 28 de Maio de 1926.
O 25 de Novembro será, porventura, a razão pela
qual o regime implantado pelo 25 de Abril ultrapassou há muito o dobro
da vida do regime iniciado em 5 de Outubro de 1910.
Em 25 de Novembro de 1975 estivemos à beira da
guerra civil.
Como um dos principais protagonistas, por muitas
dúvidas que possa manter, de uma coisa tenho a certeza: não aconteceu
o pior.
Isto, apesar de, tal como nos outros pontos
culminantes do processo revolucionário, também aqui ter havido quem,
sem razões plausíveis, tenha sido injustamente mal tratado. Como
costumo dizer a alguns amigos que o sofreram, a nossa virtude está em
não termos assumido atitudes extremas. E o facto é que todos nós, mais
cedo ou mais tarde, acabámos por sofrer injustiças e maus tratos.
Mas, para conseguir compreender o que se está
passando neste momento em Portugal, impõe-se perguntar: quem venceu e
quem perdeu?
Também aqui haverá mais que uma leitura:
liminarmente dir-se-á que venceram os
moderados, o Grupo dos Nove, e que perderam os
radicais, os esquerdistas e os comunistas.
É assim tão simples?
Desde logo, há quem afirme que os comunistas
venceram, pois anularam os esquerdistas e mantiveram-se na esfera do
poder, não tendo sido ilegalizados.
Naquela altura os
moderados foram vistos como
um grupo homogéneo e declarados vencedores. Eram eles que defendiam a
aprovação da Constituição da República, a entrega do poder à
sociedade, a consolidação do Estado democrático e de direito.
Foi isso que se consumou, foi isso que ficou para a
História.
No entanto, se analisarmos melhor, constataremos
que esse grupo de vencedores era constituído, na essência, por dois
grupos: o maioritário, o Grupo dos Nove que mantinha a legitimidade
revolucionária do Movimento dos Capitães e se manteve fiel, cumprindo
todas as suas promessas, ao Programa do MFA; outro, minoritário, o
grupo saudosista do 24 de Abril, que se acobertou atrás do Grupo dos
Nove, que teve mesmo algum protagonismo operacional, mas que foi
vencido no seu objectivo de querer “ sangue, muito sangue”, com a
ilegalização, no mínimo, dos comunistas.
Juntamente com Costa Gomes, Melo Antunes, Ramalho
Eanes, Vitor Alves, Franco Charais, Pezarat Correia, Vitor Crespo,
Costa Neves, Sousa e Castro, Marques Júnior e outros, fui um dos
principais protagonistas dessa luta, que esteve na base da consagração
inequívoca de uma democracia representativa, mas uma democracia
assente na plena igualdade de direitos e deveres dos cidadãos e dos
seus representantes, nos termos da Constituição da República, que
viria a ser aprovada, na sequência do 25 de Novembro.
Nestes quarenta anos, estes vencedores/vencidos
nunca desistiram dos seus desígnios e, temos de convir, muitos deles
têm vindo a conseguir concretizá-los.
E, chegado ao fim do seu segundo mandato o actual
Presidente da República, desmascara-se plenamente: depois do episódio
da promoção a general do coronel Jaime Neves, “palhaçada” que
indignificou as Forças Armadas e constituiu uma ofensa aos militares
de Abril e ao Portugal democrático, estamos agora, passados mais de
quarenta e um anos, a assistir à condecoração com a Ordem da Torre e
Espada, de militares por acções desenvolvidas na Guerra Colonial.
Algumas, em termos militares, até serão merecidas e se justificarão,
mas, agora, tantos anos passados, que ideias estarão por detrás de
quem assim procede? Justificar a guerra colonial? Aqui fica um alerta,
pois os bastidores dizem-nos que se preparam condecorações que “nem ao
Estado-maior lembrava” (para usar a linguagem militar).
Esses vencedores/vencidos têm vindo a recuperar e
tentam, de facto, ser os verdadeiros vencedores do 25 de Novembro.
Impedidos, em 1975, de ilegalizarem o PCP, de
liquidarem os seus dirigentes e partidários mais activos, ou, no
mínimo colocá-lo “sob vigilância apertada”, tentam agora, através do
Presidente da República, riscá-los dos partidos com direito a
participarem na solução governativa do Pais. “Decretando” que podem
concorrer às eleições, podem eleger deputados, mas não podem pertencer
ao “arco da governação”.
Não tenhamos dúvidas: se em 25 de Novembro de 1975
se conseguiu parar o aventureirismo esquerdista e as ambições de um
socialismo científico, conseguiu-se igualmente parar a tentativa da
extrema-direita, de regresso ao 24 de Abril, e a da direita, de
implantação de uma democracia musculada.
É esse o enorme valor, a enorme relevância que teve
o 25 de Novembro, é essa a razão de continuar a sentir-me orgulhoso de
ter sido um dos principais responsáveis pela solução vencedora.
E é também por isso que continuo na luta para
impedir que esse grupo de vencedores/vencidos, apesar do apoio
estrangeiro que possui, apesar das armas que tem, apesar dos ventos
favoráveis que o neo liberalismo financeiro especulativo lhe
proporciona, consiga transformar a derrota sofrida há 40 anos numa
vitória para os dias de hoje.
Houve um dia um amigo que me contestou, “tendo você
estado dum lado da barricada e os comunistas doutro, no 25 de
Novembro, como é possível, agora, fundar a Associação 25 de Abril e
estar lado a lado com eles?”
Respondi-lhe então “No 25 de Abril, nós estávamos
dum lado, os fascistas estavam do outro. Você já fez um governo com o
CDS, onde estão os fascistas (sim, porque eles não desapareceram de um
dia para o outro…). Para mim, a barreira do 25 de Abril continua a
sobrepor-se, a ser mais importante que a barreira do 25 de Novembro!”
E é isso que continuo a pensar…
Por isso, me sinto mais realizado, cada dia que
passa, como responsável maior de uma associação onde convive a enorme
maioria dos militares de Abril.
É de facto reconfortante sermos capazes de
ultrapassar divergências, sermos capazes de colocar de lado factores
menores que nos poderiam dividir e separar e, apesar de adversários em
momentos difíceis e conturbados, sermos capazes de nos unirmos à volta
do essencial, para continuarmos a luta iniciada em 25 de Abril, por um
Portugal mais livre, mais democrático, mais justo, mais fraterno e em
paz.
Lisboa, 25 de Novembro de 2015
Vasco Lourenço