Maria Estela Guedes - Alzira,
que projetos literários te ocupam atualmente? Ouvi falar de uma
obra pornô... O que é isso?! Perdeste a cabeça ou trata-se de um
trabalho de vanguarda?
Maria Alzira Brum Lemos - Talvez só há um
único projeto multifacetado, hiperlinkado e em processo que às
vezes chamo de “a criação do mundo”. A literatura e a publicação
são partes desta ideia que tenho de obra. Estou trabalhando em
“Ensaios para não morrer na praia”, um conjunto de textos sobre
o que se poderia chamar de experiências do nomadismo. Costumo
perder a cabeça como freqüência. Eu não usaria a palavra
vanguarda para definir um texto ou uma obra atual. O conceito de
vanguarda, tal e como proposto por autores e movimentos do
século XX, já não tem sentido. A ideia de novo ou inovador
também se desgastou, uma vez que foi apropriado como uma
retórica para vender sabão em pó, cosméticos, celulares livros,
ideias, autores. “Pornô com história”, que acabo de concluir, é
uma novela curta que nasceu de um convite da Editora Altazor do
Peru para participar do volume dedicado a Anaïs Nin no âmbito de
uma coleção que se propõe a reler autores importantes do século
XX. A partir deste convite, montei o texto inspirado em e por
Anaïs e também por ideias e atitudes contemporâneas como o pornô
e o pós-pornô, a performance e o pornoterrorismo, entre outras.
É uma novela com trilha sonora, principalmente música dos anos
80 (Depeche Mode, The Cure, AC-DC, The Clash, Paralamas do
Sucesso, entre outras). É difícil falar em uma proposta,
sobretudo sendo eu a autora.
Acho
que se há nesta novela alguma ambição, é a de todo texto
literário: ser parecido com outro texto de ficção e ao mesmo
tempo introduzir uma visão pessoal na própria ficção como um
todo. A novela sairá em espanhol juntamente com textos de Anaïs
e da escritora equatoriana Solange Rodríguez Pape .
Maria Estela Guedes - Sim,
as tendências passam de moda, mas não podemos deitar fora as palavras,
fazem-nos falta... Falemos de ti: saíste do Brasil e tens andado pela
América Latina. Agora és uma nómada. O que significa o nomadismo para
uma escritora?
Maria Alzira Brum Lemos - Desde criança vivo em
movimento, primeiro por contingências de minha família, depois por
necessidade, inquietação e opção. Nunca fiquei muito tempo seguido em
uma mesma cidade, vivi em mais de 40 casas em diferentes cidades,
estados, países. Nós nos conhecemos em Portugal, no final dos 90, quando
eu vivia em Madri. Nos últimos dois anos tenho vivido em diferentes
países da América Latina (México, Argentina, Peru, Equador). Nomadismo é
um termo que evoca muitos significados e ultimamente tem estado em
evidência a partir, entre outros, da filosofia de Deleuze. No meu caso,
não tem que ver só com movimento no espaço, com translação. Eu me
apropriei provisoriamente deste termo para me referir a um modo de vida,
produção e interação social que não é pautado pela linearidade, pelo
progresso, pela estabilidade e pela ideia de unidade da identidade. Falo
de um modo de vida em que as relações não estão intermediadas
principalmente pelas convenções, mas pela criação. Falo em um movimento
de co-criação do mundo em que vamos viver. Escrever é uma forma de
nomadismo, já que implica navegar no mar dos signos, dos idiomas, na
virtualidade. Talvez o nomadismo seja de certa forma inerente à condição
de escritora. Tenho muitas reflexões, que serão em parte publicadas em
livro em 2012, mas, seja como for, o uso do termo nómada é também
circunstancial. Eu me aproprio dele e o uso por um tempo. Mas é só isto.
Não serve como rótulo nem como marca.
Maria Estela Guedes - Também
me reencontrei com Deleuze (e Guattari) nesta viagem ao Brasil, por
causa da territorialização em Carlos de Oliveira. Alzira, que tens
recebido, humana, intelectual e espiritualmente, das tuas experiências
de viagem?
Maria Alzira Brum Lemos - Aprendo a questionar e
rever e destruir preconceitos que são tomados como verdades
inquestionáveis e condições para se viver “bem e adequadamente”. E
também que é inevitável destruir junto com eles muitos sonhos. Descubro
que há “n” maneiras de viver e construir relações afetivas, econômicas,
etc. e que é possível fazer as coisas de outra maneira. Descubro que
tudo é conexão. O humano é isto, o intelectual é isto, o espiritual é
isto: conexão. Recebo presentes e perco coisas a cada dia. Aprecio o
riso e os momentos bonitos, a conversa, os projetos compartilhados.
Maria Estela Guedes -
Já que falamos de espiritualidade, como defines as que vão surgindo
nesta nossa pós-modernidade? Levo do Brasil muito boas impressões, mas
também a desoladora imagem de noites televisivas com quase todos os
canais ocupados por esses padres protestantes que anunciam milagres e
chamam a atenção para o rodapé da imagem, com o número bancário em que
os crentes devem depositar as esmolas. Quando ia para o CEU da Vila
Curuçá, na periferia de São Paulo, com a equipe da peça “A voz do
provocador”, o Antônio Abujamra mostrou uma imensa igreja evangélica com
capacidade para 30 mil pessoas. Que mundo é este?
Maria Alzira Brum Lemos - Um mundo complexo em que
convivem e se radicalizam visões opostas, conceitos e fenômenos diversos
de espiritualidade. Imagino que o avanço das correntes neopentecostais
tem que ver com a busca de certezas. Estas formas de religiosidade
oferecem uma versão renovada e “eletrônica” dos valores mais
reacionários, uma associação entre cristianismo e capitalismo, entre a
suposta verdade bíblica e valores como família, tradição, propriedade.
Como em todos os momentos em que há certa consciência de queda ou
mudança de crenças, conceitos, valores e normas sociais, há uma
tendência a buscar as raízes destes, seja para contestá-los e criar algo
novo, seja para reafirmá-los. Todos nós buscamos um lugar no mundo. O
problema é que estes momentos de mudança são indefinidos e podem gerar
retrocesso, totalitarismo, barbárie. Isto que você viu no Brasil, acho,
é uma manifestação deste fenômeno. Infelizmente há espaço social para
este tipo de coisa. E também algum espaço institucional. A questão é
como vamos agir frente a isto. Aposto sempre na força e no poder das
ideias no cotidiano e em não nos calarmos nem abdicarmos em nenhum
momento, por exemplo, da luta pelo estado laico, pelo reconhecimento
institucional da liberdade sexual, direito ao aborto etc. Aproveito para
dizer que acho incrível imaginar você e o Abujamra a caminho da Vila
Curuçá conversando sobre a arquitetura neopentecostal e a
espiritualidade pós-moderna.
Maria Estela Guedes - Pois
foi, realmente... Uma viagem cheia de ensinamentos e provocações, o
Abujamra, com a idade que tem, já conquistou o estatuto de sábio... Mas
agora estamos em Curitiba, no Paraná, acabado um bom almocinho caseiro
na Casa Lilás. Tem algum significado particular para ti esta cidade?
Maria Alzira Brum Lemos - É a cidade onde vivem meus
pais e meus irmãos. Quando se mudaram para cá, eu não vivia mais com
eles. Então é ao mesmo tempo uma cidade familiar e estranha. Sou tanto
curitibana quanto estrangeira quando estou aqui. Tem um lado
interessante nisto. Continuo descobrindo a cidade.
Maria Estela Guedes - O fato
de viveres atualmente no México mexeu com o teu sentimento de pertença?
Sentes-te menos lusófona, menos brasílica, menos Brum Lemos? O México
inspira-te?
Maria Alzira Brum Lemos - Nos últimos dois anos,
passei mais tempo no México do que em outros lugares. Sinto uma forte
ligação com a cultura e o ambiente mexicano. Lusófono, brasílica, Brum
Lemos são signos, palavras, e são também o mapa e o território das
descobertas, das revelações, das contingências. Em toda origem há uma
multiplicidade, um hibridismo, uma mestiçagem. Minha pertença está em
construção nas minhas conexões afetivas, intelectuais, nestas
continuidades virtuais, no amor no sentido geral. Na possibilidade de
retomar e reconstruir a cada dia os significados e a poesia da vida.
Maria Estela Guedes - Foi
bom rever-te e ouvir-te, querida Alzira. Espero que nos reencontremos em
breve em Portugal. |