Maria Alzira Brum Lemos.............

MARIA ALZIRA BRUM LEMOS
entrevistada por Maria Estela Guedes

Maria Alzira Brum Lemos, escritora e tradutora, desde a primeira hora com presença no Triplov, tem andado a viver fora da sua pátria, o Brasil. Por mero acaso, encontrámo-nos em Curitiba, em Outubro passado, ela para visitar os pais,
eu para visitar os meus Bons Primos.
Não podia perder a ocasião de a entrevistar,
a Maria Alzira é uma intelectual muito atenta aos problemas e à cultura do nosso tempo. Vamos por isso saber
o que pensa sobre tópicos na crista da onda,
por onde tem andado, e a fazer o quê.

A Maria Alzira Brum Lemos
 envolvida num projeto PORNÔ

 

Maria Estela Guedes -   Alzira, que projetos literários te ocupam atualmente? Ouvi falar de uma obra pornô... O que é isso?! Perdeste a cabeça ou trata-se de um trabalho de vanguarda?

Maria Alzira Brum Lemos - Talvez só há um único projeto multifacetado, hiperlinkado e em processo que às vezes chamo de “a criação do mundo”. A literatura e a publicação são partes desta ideia que tenho de obra. Estou trabalhando em “Ensaios para não morrer na praia”, um conjunto de textos sobre o que se poderia chamar de experiências do nomadismo. Costumo perder a cabeça como freqüência. Eu não usaria a palavra vanguarda para definir um texto ou uma obra atual. O conceito de vanguarda, tal e como proposto por autores e movimentos do século XX, já não tem sentido. A ideia de novo ou inovador também se desgastou, uma vez que foi apropriado como uma retórica para vender sabão em pó, cosméticos, celulares livros, ideias, autores. “Pornô com história”, que acabo de concluir, é uma novela curta que nasceu de um convite da Editora Altazor do Peru para participar do volume dedicado a Anaïs Nin no âmbito de uma coleção que se propõe a reler autores importantes do século XX. A partir deste convite, montei o texto inspirado em e por Anaïs e também por ideias e atitudes contemporâneas como o pornô e o pós-pornô, a performance e o pornoterrorismo, entre outras. É uma novela com trilha sonora, principalmente música dos anos 80 (Depeche Mode, The Cure, AC-DC, The Clash, Paralamas do Sucesso, entre outras). É difícil falar em uma proposta, sobretudo sendo eu a autora.  Acho que se há nesta novela alguma ambição, é a de todo texto literário: ser parecido com outro texto de ficção e ao mesmo tempo introduzir uma visão pessoal na própria ficção como um todo. A novela sairá em espanhol juntamente com textos de Anaïs e da escritora equatoriana Solange Rodríguez Pape .

Maria Estela Guedes -   Sim, as tendências passam de moda, mas não podemos deitar fora as palavras, fazem-nos falta... Falemos de ti: saíste do Brasil e tens andado pela América Latina. Agora és uma nómada. O que significa o nomadismo para uma escritora? 

Maria Alzira Brum Lemos - Desde criança vivo em movimento, primeiro por contingências de minha família, depois por necessidade, inquietação e opção. Nunca fiquei muito tempo seguido em uma mesma cidade, vivi em mais de 40 casas em diferentes cidades, estados, países. Nós nos conhecemos em Portugal, no final dos 90, quando eu vivia em Madri. Nos últimos dois anos tenho vivido em diferentes países da América Latina (México, Argentina, Peru, Equador). Nomadismo é um termo que evoca muitos significados e ultimamente tem estado em evidência a partir, entre outros, da filosofia de Deleuze. No meu caso, não tem que ver só com movimento no espaço, com translação. Eu me apropriei provisoriamente deste termo para me referir a um modo de vida, produção e interação social que não é pautado pela linearidade, pelo progresso, pela estabilidade e pela ideia de unidade da identidade. Falo de um modo de vida em que as relações não estão intermediadas principalmente pelas convenções, mas pela criação. Falo em um movimento de co-criação do mundo em que vamos viver. Escrever é uma forma de nomadismo, já que implica navegar no mar dos signos, dos idiomas, na virtualidade. Talvez o nomadismo seja de certa forma inerente à condição de escritora. Tenho muitas reflexões, que serão em parte publicadas em livro em 2012, mas, seja como for, o uso do termo nómada é também circunstancial. Eu me aproprio dele e o uso por um tempo. Mas é só isto. Não serve como rótulo nem como marca.   

Maria Estela Guedes - Também me reencontrei com Deleuze (e Guattari) nesta viagem ao Brasil, por causa da territorialização em Carlos de Oliveira. Alzira, que tens recebido, humana, intelectual e espiritualmente, das tuas experiências de viagem?

Maria Alzira Brum Lemos - Aprendo a questionar e rever e destruir preconceitos que são tomados como verdades inquestionáveis e condições para se viver “bem e adequadamente”. E também que é inevitável destruir junto com eles muitos sonhos. Descubro que há “n” maneiras de viver e construir relações afetivas, econômicas, etc. e que é possível fazer as coisas de outra maneira. Descubro que tudo é conexão. O humano é isto, o intelectual é isto, o espiritual é isto: conexão. Recebo presentes e perco coisas a cada dia. Aprecio o riso e os momentos bonitos, a conversa, os projetos compartilhados.     

 Maria Estela Guedes -  Já que falamos de espiritualidade, como defines as que vão surgindo nesta nossa pós-modernidade? Levo do Brasil muito boas impressões, mas também a desoladora imagem de noites televisivas com quase todos os canais ocupados por esses padres protestantes que anunciam milagres e chamam a atenção para o rodapé da imagem, com o número bancário em que os crentes devem depositar as esmolas. Quando ia para o CEU da Vila Curuçá, na periferia de São Paulo, com a equipe da peça “A voz do provocador”, o Antônio Abujamra mostrou uma imensa igreja evangélica com capacidade para 30 mil pessoas. Que mundo é este?

Maria Alzira Brum Lemos - Um mundo complexo em que convivem e se radicalizam visões opostas, conceitos e fenômenos diversos de espiritualidade. Imagino que o avanço das correntes neopentecostais tem que ver com a busca de certezas. Estas formas de religiosidade oferecem uma versão renovada e “eletrônica” dos valores mais reacionários, uma associação entre cristianismo e capitalismo, entre a suposta verdade bíblica e valores como família, tradição, propriedade. Como em todos os momentos em que há certa consciência de queda ou mudança de crenças, conceitos, valores e normas sociais, há uma tendência a buscar as raízes destes, seja para contestá-los e criar algo novo, seja para reafirmá-los. Todos nós buscamos um lugar no mundo. O problema é que estes momentos de mudança são indefinidos e podem gerar retrocesso, totalitarismo, barbárie. Isto que você viu no Brasil, acho, é uma manifestação deste fenômeno. Infelizmente há espaço social para este tipo de coisa. E também algum espaço institucional. A questão é como vamos agir frente a isto. Aposto sempre na força e no poder das ideias no cotidiano e em não nos calarmos nem abdicarmos em nenhum momento, por exemplo, da luta pelo estado laico, pelo reconhecimento institucional da liberdade sexual, direito ao aborto etc. Aproveito para dizer que acho incrível imaginar você e o Abujamra a caminho da Vila Curuçá conversando sobre a arquitetura neopentecostal e a espiritualidade pós-moderna.

 Maria Estela Guedes - Pois foi, realmente... Uma viagem cheia de ensinamentos e provocações, o Abujamra, com a idade que tem, já conquistou o estatuto de sábio... Mas agora estamos em Curitiba, no Paraná, acabado um bom almocinho caseiro na Casa Lilás. Tem algum significado particular para ti esta cidade?

Maria Alzira Brum Lemos - É a cidade onde vivem meus pais e meus irmãos. Quando se mudaram para cá, eu não vivia mais com eles. Então é ao mesmo tempo uma cidade familiar e estranha. Sou tanto curitibana quanto estrangeira quando estou aqui. Tem um lado interessante nisto. Continuo descobrindo a cidade. 

Maria Estela Guedes - O fato de viveres atualmente no México mexeu com o teu sentimento de pertença? Sentes-te menos lusófona, menos brasílica, menos Brum Lemos? O México inspira-te?

Maria Alzira Brum Lemos - Nos últimos dois anos, passei mais tempo no México do que em outros lugares. Sinto uma forte ligação com a cultura e o ambiente mexicano. Lusófono, brasílica, Brum Lemos são signos, palavras, e são também o mapa e o território das descobertas, das revelações, das contingências. Em toda origem há uma multiplicidade, um hibridismo, uma mestiçagem. Minha pertença está em construção nas minhas conexões afetivas, intelectuais, nestas continuidades virtuais, no amor no sentido geral. Na possibilidade de retomar e reconstruir a cada dia os significados e a poesia da vida. 

Maria Estela Guedes - Foi bom rever-te e ouvir-te, querida Alzira. Espero que nos reencontremos em breve em Portugal.

 

Maria Alzira Brum Lemos e Maria Estela Guedes em Curitiba (Outubro de 2011)

Maria Alzira Brum Lemos (Brasil) é pensadora, escritora, pesquisadora, tradutora, criadora e realizadora de atividades artísticas, culturais e literárias. É doutora em Comunicação e Semiótica. Publicou, entre outros,  A Ordem Secreta dos Ornitorrincos (São Paulo, Amauta, 2008)e Novela suvenir (México, DF. Fonca e Santa Muerte Cartonera).