1.
Fui com o Henk ao museu do Páteo do Colégio. Queríamos fotografar para um livro que estamos fazendo uma maquete que representa São Paulo em 1554, quando os jesuítas fundaram o colégio para catequizar os índios e junto com este a cidade. Queríamos ver mato água índios no lugar onde hoje está o centro de São Paulo. Não conseguimos permissão para fotografar no mesmo dia e a maquete afinal é uma maquete.
Museus em geral mostram uma perspectiva padronizada de história com o objetivo de preencher com informações enlatadas as cabecinhas de turistas e escolares em manadas. É uma coisa que oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. Entendam bem, não estava nem estou a fim de explicar e preferi não comentar isto com o Henk, que é fotógrafo e holandês e ele mesmo.
No viaduto, indo em direção ao metrô, uma coisa chamou nossa atenção na área em declive que vai dos fundos do Páteo do Colégio até a 25 de Março: uma horta. Olhando melhor pudemos discernir à volta dela pequenos pés de fruta: amoreira, jaqueira, goiabeira, bananeiras e até cana-de-açúcar e abacaxi.
Pedimos informações aos policiais do posto em frente. Disseram que horta e pomar existem há dois anos por iniciativa dos garis que trabalham na área e que com o tempo os policiais também foram aderindo. A área, pertencente aos jesuítas e mantida pela prefeitura, é fechada ao público. Os policiais nos deram autorização para descer e falar com os garis que estavam lá em hora de descanso.
Descemos. O Henk começou a fotografar. Eu me dirigi aos dois homens morenos de uniforme laranja e me apresentei. Simpáticos, responderam calma e pausadamente. Onofre era o mais falante, leve sotaque nordestino. Os dois moram em bairros da periferia de São Paulo, um na Zona Sul outro na Zona Leste. Saem de casa cedinho e com vassoura e pá percorrem limpando todo dia alguns dos quarteirões mais movimentados da cidade. Salário: menos de 400 reais.
– E é muito lixo – disse Manoel.
Perguntei se gostam da sua profissão. Responderam quase ao mesmo tempo que sim e Onofre enfatizou:
– Saí um tempo para trabalhar de empreiteiro com o meu cunhado, mas não agüentei e voltei. Eu adoro a limpeza.
O Henk se aproximou e perguntou sobre as plantas e a produção.
– Dividimos as verduras entre o pessoal. Já as frutas, tirando as goiabeiras, ainda vão demorar pra nascer. Até agora só colhemos um cacho de banana.
Conversamos mais um pouco sobre plantas gentes vidas. Os dois nos deram atenção e responderam à nossa curiosidade com amabilidade e paciência. Estavam visivelmente surpresos com o nosso interesse.
– É que a maioria só nos vê como lixeiro, e lixeiro pra muitos é pior que lixo, não tem valor nenhum. Quase ninguém trata a gente assim.
– Assim como?
– Como pessoa, como cidadão.
2.
Nesse mesmo dia, li que na esquina das ruas João Passaláqua e Santo Antônio, também no centro, dois garis acharam um corpo no meio dos sacos de lixo. O morto tinha um corte profundo na cabeça e um ferimento no olho, provavelmente provocados por objeto pontiagudo. O caso foi registrado na delegacia como homicídio de autoria desconhecida. Um funcionário do Instituto Médico-Legal disse aos jornalistas que o morto "aparenta ser descendente de índio, tem a pele parda e olhos levemente puxados, é magro e tem jeito de morador de rua". Depois de dois dias ninguém tinha aparecido para tentar reconhecer o corpo do índio da pessoa do cidadão da criança, um menino de 12 anos.