Li que segundo uma pesquisa as crianças maltratadas e abusadas sexualmente são em geral mais feias ou possuem traços menos infantis do que aquelas que são amadas e bem tratadas pelos adultos. Seres humanos são bichos cruéis. Freiras são seres humanos. As freiras do nosso colégio protegiam as meninas bonitinhas e perseguiam as feias. Não falo de sexo e amor, apenas que eu era e sou um desastre em qualquer esporte mas me safava lendo entrevistas da Oriana Fallaci, enciclopédias em fascículos, jornais e boa literatura, como a de Machado e Oscar Wilde. Eu saboreava em segredo o fato de ser boa em alguma coisa. Seres humanos são bichos cruéis. Meninas que lêem são seres humanos.
Irmã Lúcia, a professora de português, era igualmente severa com bonitinhas e feias, atletas e desastres. Era uma exceção democrática e eu a respeitava por isso. Eu me destacava na sua matéria mas cuidava da retaguarda. Uma menina que demonstrasse intelecto provocava repulsa. Não era ódio nem inveja, mas o tipo de horror que se experimenta diante de uma aberração. Claro que este sentimento não se aplicava à inteligência bem comportada das bonitinhas nem sequer quando liam algo que prestasse. Não falo de sexo e amor, o problema não está no quê mas no como.
Certo dia Irmã Lúcia chegou com uma pilha de revistas do Pato Donald e as distribuiu. A maioria teria preferido revistas femininas, mas como as alternativas usuais eram a Moreninha e a Iracema o Pato foi recebido com alegre balbúrdia.
Ela pediu silêncio e explicou que as revistinhas serviriam para fazer uma redação. Vocês devem analisar as histórias, os personagens, seu caráter e atitude, o que eles fazem, o lugar onde vivem e escrever sobre isso. Analisar implica pensar. É para pensar, guardem isto. Alguma dúvida?
Depois de um longo silêncio a campainha nos libertou.
Em casa me dei conta. Que merda! Justo o Pato Donald? Estava numa enrascada. Embora não conhecesse o Matelart para pedir socorro, sabia que se costuma dividir a leitura em uma parte nobre e outra podre. Na primeira se incluem a boa literatura e, com algum esforço, entrevistas da Oriana Fallaci, enciclopédias em fascículos e até mesmo jornais. Mas o Pato Donald se inclui irremediavelmente na parte podre. Não contei isso lá em cima porque não era uma coisa da qual eu me orgulhava nem me orgulho, mas o Pato Donald fazia parte das minhas leituras, assim como as revistas porno. Seres humanos são bichos vulgares e perversos. Meninas são seres humanos
Analisando a revistinha, analisar implica pensar, percebi que os patos eram ingênuos, covardes, vorazes por comida, dinheiro e fama, armavam uns contra os outros o tempo todo e quando se tratava de se dar bem não respeitavam nem os parentes e nem sequer a si mesmos; os patos se submetiam a todo tipo de humilhação para satisfazer suas ânsias. Não falo de sexo e amor mas falo de relações entre patos e patas: Margarida só se interessava por roupas, jóias e status e vivia chantageando o Donald com a ameaça de ceder aos galanteios do Gastão ou de algum outro pato alfa.
A natureza dos patos era imperiosa e sua sociedade hieráquica e classista. Concluí que a natureza e a sociedade dos patos não eram lá tão diferentes das nossas e que o Pato Donald fazia parte de mim e da minha cultura. Patos são bichos execráveis. Patos também são seres humanos. Então, ler o Pato Donald, assim como a pornografia, devia ser um vício inocente. Mas eu não queria correr riscos e não escrevi nada disso. Acabei não escrevendo para mim e sim para a Irmã Lúcia e o resultado foi uma redação correta, supostamente inócua.
Algum de vocês certamente já precisou ou quis muito ser amado e deve saber que precisar ou querer ser amado é o caminho mais curto para estragar tudo. A gente não só não consegue o que precisa ou quer como perde alguma coisa. É óbvio que eu não falo de sexo e amor.
Seres humanos são bichos carentes. Meninas são seres humanos. Mas o mundo não está nem aí para isso e a Irmã Lúcia me deu 6. Foi a nota mais alta da classe mas empatei com duas sonsas que passavam o dia inteiro estudando. Eu me senti humilhada e injustiçada. Seres humanos são os únicos bichos que constroem armadilhas para si próprios. Meninas são seres humanos. Fui falar com a Irmã Lúcia.
Irmã Lúcia – Veio reclamar da sua nota?
Eu – Mais ou menos.
Irmã Lúcia – Mentir é feio e é pecado.
Eu – Escrevi mais do que todo mundo, não cometi erros de português e fiquei com a mesma nota que a...
Irmã Lúcia – Você se acha mais inteligente que as outras, não é?
Eu – Não é bem assim...
Irmã Lúcia – Mentir é feio e é pecado. Se você fosse tão boa teria escrito coisa melhor.
Eu – Mas...
Irmã Lúcia – A responsabilidade pela nota é sua. Eu avisei que era para pensar.
Mentir é feio e é pecado. Saí da sala dela me desprezando. Tinha certeza de que eu sentia os patos e podia escrever sobre eles melhor do que qualquer uma naquela classe, mas eu tinha mentido para mim mesma. Não falo de sexo e amor, e o Barthes diz que “saber que não se escreve para o outro, saber que o que vou escrever não me fará amado por aquele que amo, que a escritura está ali onde você não está, é o começo da escritura”. Descobri isto naquele dia de um jeito duro, sem teorias consoladoras, pagando o pato.
Seres humanos são bichos que repetem. Escritores e afins são seres humanos. Houve outras vezes, e a cada uma delas diminuiu a inocência e aumentou o pato. Agora já não pode haver desculpas. Se alguém me perguntar afinal você escreve para quê? vou responder que é para não ter que pagar o pato.