Chegaram Los Infieles
by Fracaso Limitada

 

 

 

 


 

 

::::::::::::::::::::::::::Maria Alzira Brum::::::::
Coadjuvante e colaboradora em geral do TriploV.
Faço links, escrevo, edito, traduzo, me viro, sobrevivo, vivo. Livro solo: O Doutor e o Jagunço: ciência, cultura e mestiçagem em Os Sertões (Arte&Ciência); coletâneas: Tierra en trance: el cine latinoamericano en cien películas (Alianza), O Clarim e a Oração: cem anos de Os Sertões (Geração), Contos Cruéis: as narrativas mais violentas da literatura brasileira (Geração), Quartas Histórias: contos inspirados em narrativas de Guimarães Rosa (Garamond).
PAGANDO O PATO OU
AFINAL VOCÊ ESCREVE PARA QUÊ?
Far from Love the Heavenly Father
Leads the Chosen Child
Oftener through Realm of Briar
Than the Mieadow mild (Emily Dickinson)








Aos doze anos eu era baixota e já tinha seios grandes, parecia uma anã. Naquele ano me colocaram num colégio de freiras. Era uma sociedade hierárquica e classista em que as indisciplinadas, leia-se pobres, gordas, feias ou de pele escura, eram a base. As freiras usavam a prepotência como método educativo. Funciona. As bonitinhas esnobavam e espezinhavam as outras e estas quando podiam davam o troco: uma sociedade perfeita.

Li que segundo uma pesquisa as crianças maltratadas e abusadas sexualmente são em geral mais feias ou possuem traços menos infantis do que aquelas que são amadas e bem tratadas pelos adultos. Seres humanos são bichos cruéis. Freiras são seres humanos. As freiras do nosso colégio protegiam as meninas bonitinhas e perseguiam as feias. Não falo de sexo e amor, apenas que eu era e sou um desastre em qualquer esporte mas me safava lendo entrevistas da Oriana Fallaci, enciclopédias em fascículos, jornais e boa literatura, como a de Machado e Oscar Wilde. Eu saboreava em segredo o fato de ser boa em alguma coisa. Seres humanos são bichos cruéis. Meninas que lêem são seres humanos.

Irmã Lúcia, a professora de português, era igualmente severa com bonitinhas e feias, atletas e desastres. Era uma exceção democrática e eu a respeitava por isso. Eu me destacava na sua matéria mas cuidava da retaguarda. Uma menina que demonstrasse intelecto provocava repulsa. Não era ódio nem inveja, mas o tipo de horror que se experimenta diante de uma aberração. Claro que este sentimento não se aplicava à inteligência bem comportada das bonitinhas nem sequer quando liam algo que prestasse. Não falo de sexo e amor, o problema não está no quê mas no como.

Certo dia Irmã Lúcia chegou com uma pilha de revistas do Pato Donald e as distribuiu. A maioria teria preferido revistas femininas, mas como as alternativas usuais eram a Moreninha e a Iracema o Pato foi recebido com alegre balbúrdia.

Ela pediu silêncio e explicou que as revistinhas serviriam para fazer uma redação. Vocês devem analisar as histórias, os personagens, seu caráter e atitude, o que eles fazem, o lugar onde vivem e escrever sobre isso. Analisar implica pensar. É para pensar, guardem isto. Alguma dúvida?

Depois de um longo silêncio a campainha nos libertou.

Em casa me dei conta. Que merda! Justo o Pato Donald? Estava numa enrascada. Embora não conhecesse o Matelart para pedir socorro, sabia que se costuma dividir a leitura em uma parte nobre e outra podre. Na primeira se incluem a boa literatura e, com algum esforço, entrevistas da Oriana Fallaci, enciclopédias em fascículos e até mesmo jornais. Mas o Pato Donald se inclui irremediavelmente na parte podre. Não contei isso lá em cima porque não era uma coisa da qual eu me orgulhava nem me orgulho, mas o Pato Donald fazia parte das minhas leituras, assim como as revistas porno. Seres humanos são bichos vulgares e perversos. Meninas são seres humanos

Analisando a revistinha, analisar implica pensar, percebi que os patos eram ingênuos, covardes, vorazes por comida, dinheiro e fama, armavam uns contra os outros o tempo todo e quando se tratava de se dar bem não respeitavam nem os parentes e nem sequer a si mesmos; os patos se submetiam a todo tipo de humilhação para satisfazer suas ânsias. Não falo de sexo e amor mas falo de relações entre patos e patas: Margarida só se interessava por roupas, jóias e status e vivia chantageando o Donald com a ameaça de ceder aos galanteios do Gastão ou de algum outro pato alfa.

A natureza dos patos era imperiosa e sua sociedade hieráquica e classista. Concluí que a natureza e a sociedade dos patos não eram lá tão diferentes das nossas e que o Pato Donald fazia parte de mim e da minha cultura. Patos são bichos execráveis. Patos também são seres humanos. Então, ler o Pato Donald, assim como a pornografia, devia ser um vício inocente. Mas eu não queria correr riscos e não escrevi nada disso. Acabei não escrevendo para mim e sim para a Irmã Lúcia e o resultado foi uma redação correta, supostamente inócua.

Algum de vocês certamente já precisou ou quis muito ser amado e deve saber que precisar ou querer ser amado é o caminho mais curto para estragar tudo. A gente não só não consegue o que precisa ou quer como perde alguma coisa. É óbvio que eu não falo de sexo e amor.

Seres humanos são bichos carentes. Meninas são seres humanos. Mas o mundo não está nem aí para isso e a Irmã Lúcia me deu 6. Foi a nota mais alta da classe mas empatei com duas sonsas que passavam o dia inteiro estudando. Eu me senti humilhada e injustiçada. Seres humanos são os únicos bichos que constroem armadilhas para si próprios. Meninas são seres humanos. Fui falar com a Irmã Lúcia.

Irmã Lúcia – Veio reclamar da sua nota?
Eu – Mais ou menos.
Irmã Lúcia – Mentir é feio e é pecado.
Eu – Escrevi mais do que todo mundo, não cometi erros de português e fiquei com a mesma nota que a...
Irmã Lúcia – Você se acha mais inteligente que as outras, não é?
Eu – Não é bem assim...
Irmã Lúcia – Mentir é feio e é pecado. Se você fosse tão boa teria escrito coisa melhor.
Eu – Mas...
Irmã Lúcia – A responsabilidade pela nota é sua. Eu avisei que era para pensar.

Mentir é feio e é pecado. Saí da sala dela me desprezando. Tinha certeza de que eu sentia os patos e podia escrever sobre eles melhor do que qualquer uma naquela classe, mas eu tinha mentido para mim mesma. Não falo de sexo e amor, e o Barthes diz que “saber que não se escreve para o outro, saber que o que vou escrever não me fará amado por aquele que amo, que a escritura está ali onde você não está, é o começo da escritura”. Descobri isto naquele dia de um jeito duro, sem teorias consoladoras, pagando o pato.

Seres humanos são bichos que repetem. Escritores e afins são seres humanos. Houve outras vezes, e a cada uma delas diminuiu a inocência e aumentou o pato. Agora já não pode haver desculpas. Se alguém me perguntar afinal você escreve para quê? vou responder que é para não ter que pagar o pato.