Chegaram Los Infieles
by Fracaso Limitada
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::::::::::::::::::::::::::Maria Alzira Brum::::::::
Coadjuvante e colaboradora em geral do TriploV.
Faço links, escrevo, edito, traduzo, me viro, sobrevivo, vivo. Livro solo: O Doutor e o Jagunço: ciência, cultura e mestiçagem em Os Sertões (Arte&Ciência); coletâneas: Tierra en trance: el cine latinoamericano en cien películas (Alianza), O Clarim e a Oração: cem anos de Os Sertões (Geração), Contos Cruéis: as narrativas mais violentas da literatura brasileira (Geração), Quartas Histórias: contos inspirados em narrativas de Guimarães Rosa (Garamond).
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A ARTE TÃO SUTIL DE IDENTIFICAR UM PERDEDOR
(Do livro Afinal você escreve para quê?)
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Com exceção das almas que estão bastante próximas da santidade, as vítimas são tão maculadas pela força quanto os carrascos . Simone Weil
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1.
Sou uma mulher pequena. Meus olhos são da cor das folhas secas. Meu corpo, sinuoso e resistente. Minha paixão é destruir convicções, inclusive as minhas. É disso que eu me alimento. Penso por necessidade, vício e esporte. Se eu estiver por perto, cuidado com as suas crenças. Eu passo como tantas todas as manhãs por este viaduto e estranho que tantas passem e tão poucas se joguem daqui. Talvez as impeça a vaidade, tem coisa mais antiestética que um corpo espatifado com as tripas rolando no asfalto? Talvez a delicadeza, a gente não quer incomodar.
2.
Ela é gorda e baixa. Seu corpo, desarmonioso. Cabelo desgrenhado, roupas em farrapos, chinelo de dedo, bolsa que várias temporadas e proprietárias atrás foi branca. Eu passo pelo viaduto como tantas quando seus olhos se incrustam nos meus. Seus olhos são da cor das folhas secas. Ela tem certeza e precisão do salto. Meus olhos se incrustam nos dela. Ela então vacila, instintiva. Seguro-a pela mão.
– Me larga, me deixa em paz – protesta sem se esforçar para soltar-se.
– Pelo menos me diga por que quer se jogar.
– O que é que você tem com isso?
– Está doente? Quer que eu chame uma ambulância?
– Tô com dor, mas ambulância não adianta.
– Quer comer alguma coisa?
– Não, comer não adianta.
– Por que você não fala com alguém?
– Falar não adianta.
– Você acredita em Deus?
– Não, Deus não adianta.
– Então grita, pô.
– Gritar não adianta. Gente como você não ouve.
– Como assim? Eu estou aqui, tentando te salvar.
– Engano seu. Você está aí, tentando se salvar. Mas não adianta.
– Eu passo como tantas todas as manhãs por este viaduto e nunca tentei me jogar.
– Só porque é vaidosa e delicada. Fica com vergonha de pensar no corpinho espatifado lá em baixo e não quer incomodar. Já eu não tenho vaidade nem incomodo ninguém. – Abre um sorriso de dentes estragados. – Viva ou morta, eu sou paisagem.
3.
Era uma mulher pequena. Seus olhos eram da cor das folhas secas. Seu corpo era todo pensamento. Passava como tantas todas as manhãs por aquele viaduto e achava estranho que tão poucas se jogassem. Ela não se jogou. Exerceu seu ofício e morreu sozinha. Deixou textos filosóficos e o romance A arte sutil de identificar um perdedor no qual disse:
todos os desejos são contraditórios como o do alimento. Não temos outro remédio a não ser pensar;
e
tudo se paga. Conta só contigo.
4.
Sou uma mulher pequena. Meus olhos são da cor das folhas secas. Olhos de paisagem depois que os olhos dela se incrustaram nos meus. Meu corpo sou eu entre nós. Eu me alimento de tudo aquilo que encobre no jornal de anteontem o corpo destripado ali embaixo. Pode parecer que eu estou com vocês neste bar, nesta festa. Engano seu. Se me perguntassem afinal você escreve para quê? eu responderia que se trata apenas de uma arte.
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UMA COISA QUE EU PRECISO LHE DIZER
Bem que ele podia ter falado.
Eu tentei.
Ela não ia ouvir mesmo.
Não foi culpa minha.
Acontece.
Não foi bem isto o que aconteceu.
Ela era louca.
Nestas coisas nunca se sabe.
Ele não tinha razão.
Eu só sei que não deu certo.
Faz tempo.
Eu lembro daquela camisa azul.
Ninguém lembra de tudo.
Só das coisas importantes.
Ele esqueceu.
Ninguém esquece tudo.
Desde quando isso é importante?
Para mim era.
Ninguém liga para isto.
Ele não percebeu.
Ela não viu.
Eu percebi que tinha alguma coisa com aquela fotografia.
Assim, sem nenhuma explicação.
Não foi culpa minha.
Foi tão rápido.
Eu tentei.
Não deu tempo.
Eu disse que a gente devia ir para algum lugar.
Ele não entendeu nada.
Eu entendi que ela não queria ir.
Eu é que não ia insistir.
Foi ela que não quis.
Não era bem o que eu queria.
Eu só queria que ele soubesse o que eu sentia.
Eu sentia tanto tesão.
Tem gente que não sabe o que sente.
Podia ter dado uma explicação.
Podia ter falado.
Ela não ia entender.
Não foi como eu pensava.
Eu só queria que ele soubesse.
Tem gente que não sabe o que quer.
Eu sei que foi ele que não quis.
Acho que foi por causa do que eu não disse.
Ela esqueceu tudo.
Ninguém esquece tudo.
Eu lembro que uma vez de madrugada nós achamos uma coisa perdida.
Alguém devia ter guardado.
Eu guardei que ela estava com uma sainha naquela noite.
Ela guardou aquele meu disco, depois perdeu.
Não dá pra esquecer.
Fazer o que fez, sem nenhuma explicação.
Eu bem que tentei explicar.
Ele nem tentou.
Esqueceu da camisa azul.
Eu fui louco de deixar aquele disco com ela.
Não foi bem assim.
Deve ter sido por causa das coisas que ele fez.
Eu não fiz nada.
Isso é o que ela diz.
Acho que foi por causa do que eu disse.
Tem gente que não sabe o que diz. |
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