FRANCISCO TEIXEIRA

O BEM E O MAL NO O SENHOR DOS ANÉIS

Para S. Agostinho, como, depois, para S. Tomás de Aquino, o Mal não passa de uma privação do Bem. Assim sendo, o Mal não deteria verdadeira força ontológica, i.e., não existiria de per si, mas só dependentemente de uma relação negativa com o Bem que, esse sim, teria autêntica existência real. Assim se explicaria a relação, ancestralmente problemática, da relação entre o Mal e Deus, resolvendo a controvertida equação segundo a qual a existência de Deus e o do Mal é mutuamente excludente. Agostinho e Tomás de Aquino respondem, então, que assim é: que Deus não pode existir, positivamente, no mesmo mundo do Mal e que a sua suposta existência, do Mal, pode ser explicada não pela sua natureza positiva mas como uma ausência de Bem.

A trilogia fílmica O Senhor dos Anéis , de Peter Jackson, sobre os livros de Tolkien, mostra-nos uma alternativa a este modo expedito, na verdade demasiado expedito, de resolver o problema. O que a trilogia fílmica, e Tolkien, claro, nos mostra, é que o Mal existe no coração do Bem, ou seja, de que a diferença entre o Mal e o Bem não é ontológica mas modal, no sentido em que ambos constituem um contínuo de acção e linguagem que se mescla indistintamente, até ao momento em que ocorrem as divisões ou modos de pensamentos e acções que nos permitem heterorreferir-nos e autorreferir-nos. E isto é assim, porque as distinções são tanto actos próprios como alheios, numa intricada e grosseira ou subtil teia de co-determinações sociais e pessoais.

O Mal e o Bem ocorrerão, então, como distinções semânticas e pragmáticas, como conjuntos de significados que se vão tornando, ou não, cada vez mais claros. A fonte de significação e de acção maléfica ou bondosa é, no entanto, a mesma: a nossa linguagem, os nossos hábitos e os nossos corações, entendidos estes últimos no sentido de emoções dominantes. Assim sendo, o Bem o Mal não têm, na verdade, e ontologicamente, duas origens mas uma só, quer dizer, um único composto de acções e palavras, que se condensam de uma ou outra forma, conforme os actratores em presença. Ora, esses actratores estão tanto dentro como fora de nós e, como é fácil de ver, não constituem naturezas puras mas antes naturezas sincréticas e oscilantes.

Claro que, e nisso S. Tomás e S. Agostinho tinham razão, o Mal só existe por referência ao Bem. Mas o contrário também é verdade. Ou seja, ambos existem numa mútua determinação que, no limite, pode pensar-se, na verdade, como indeterminação. No entanto, os Doutores da Igreja não poderiam aceitar tal evidência . Ou seja, para eles, o Bem não existe jamais por referência ao Mal mas antes por si mesmo e independentemente deste. O que me parece é que, pelo contrário, é visível que a distinção semântica e pragmática que faz emergir a ideia de Bem implica, sistemicamente, a determinação daquilo que por necessidade lógica lhe é exterior, sem o que não seria possível ao Bem constituir-se como um sistema, ou seja, uma determinada ordem semântica capaz de estabelecer uma fronteira entre aquilo que lhe pertence e aquilo que não lhe pertence. Assim sendo, o Bem só existe em função daquilo que lhe é exterior sistemicamente, o Mal e, correlativamente, o Mal só existe em função daquilo que lhe é exterior, o Bem. Acontece que esta condensação sistémica/semântica da linguagem e da acção em Bem e em Mal, parte, sempre, da linguagem circulante e das emoções, ou do coração, em jogo, que, antes de se condensarem neste ou naquele sistema, constituem uma única energia semântica/emocional que ocorre no corpo e na sociedade.

Frodo e a sua contraparte dramática, Sméagol-Gollum, mostram com clareza como dentro deles se debatem dois sistemas de significado e emoção, duas ordens de condensação sistémica/semântica, o Bem e o Mal. O ponto de partida é um só corpo e um só sistema de linguagem (mesmo que com as suas variantes). No entanto, neles debatem-se várias possibilidades de acção e significado, a partir, exactamente, dos mesmos corpos e da mesma linguagem que neles circula e que os perturba. Uma mesma origem, um mesmo corpo e um mesmo horizonte linguística produzem, no entanto, sistemas alternados e em combate pela sua rigidificação, ou seja, pela sua sobrevivência, mutuamente ameaçados pelo outro. Na verdade, Frodo é tão esquizofrénico como Sméagol-Gollum , embora neste seja mais explícita essa dualidade sistémica, que o domina a partir do mesmo corpo e da mesma linguagem.

O que isto quer dizer é que quer Frodo quer Sméagol-Gollum são, simultaneamente, bons e maus. Ou alternadamente. E que neles habita tanto o Mal como o Bem, a partir da mesma fonte, i.e., a partir do mesmo corpo e do mesmo horizonte linguístico. Também quer dizer que num venceu o modo ou o sistema do Bem e noutro o modo ou o sistema do Mal. Mas quer dizer, ainda, que, antes da sua diferenciação, o Mal como o Bem co-existiam como existências potenciais, ou virtuais, como uma indistinção.

Claro que se poderá dizer que esta interpretação da natureza do Mal e do Bem é meramente naturalista e que, portanto, não contende com a de S. Agostinho e S. Tomás. Acontece que, mesmo no domínio religioso, é possível pensar-se um Deus assim indistinto como aquele Pré-Mundo de onde o Mal e o Bem partem. Um Deus que seja todas as coisas possíveis, que só vêm a si através de auto-distinções do Divino, quer sejam elas operações sistémicas ontologicamente duras ou puras distinções semântico/naturais. Claro que, neste caso, teríamos um Deus e uma ontologia completamente diferentes das de S. Agostinho e S. Tomás. Uma ontologia e um divino em que já não o absoluto do Poder e da Verdade mas antes o relativo da vontade e liberdade nos guiariam na existência.