Qual o significado de sua vida na Romênia, de sua infância?
A Romênia foi um paraíso terrestre, isolado de tudo e cercado de escravos. Só ia para casa para comer e dormir, senão passava o tempo todo fora, ao ar livre, muito simples. A metade do povoado vivia nas montanhas, nos Cárpados. Eu tinha amizade com os pastores e gostava muito deles. Era um outro mundo, além da civilização. Talvez porque viviam em um país de ninguém, sempre de bom humor, como se todos os dias fossem dias de festa. O começo da Humanidade não deve ter sido tão ruim, segundo eles.
Quando isso acabou?
Em 1920, aos dez anos de idade, quando tive que abandonar meu povoado e mudar-me para Hermannstadt, para estudar na escola média. Jamais esqueci essa catástrofe, essa tragédia, meu desespero naquele dia. Parecia o meu fim. Na época não havia carros, de modo que um camponês levou meu pai e eu a cavalo. O primitivo, que vivi ali, parecia-me a única vida possível. O que conta é a pré-história, isto é, o tempo anterior à entrada na consciência, na história, a vida inconsciente. A Humanidade deve seguir sendo o que é (risos), porque a História é apenas um equívoco; a consciência, um pecado; e o ser humano, uma aventura sem igual.
Uma reflexão religiosa?
Eu não sou ateu, ainda que não creia em Deus e não reze. Mas há em mim uma dimensão religiosa indefinível, para além de toda fé. O crente se identifica com Deus, o que pode compreender, mas eu mesmo me sinto distante de tudo isso. Eu me movo na linha divisória. A grande idéia do pecado original do ser humano é compartilhada por mim, mas não no modo como se pensa oficialmente sobre o assunto. Tanto a História como também o homem são, queiramos ou não, produtos de uma catástrofe. A idéia do desvio do ser humano é imprescindível para se entender o desenvolvimento da História. Segundo essa idéia, o ser humano é culpado, não no sentido moral, mas por ter se envolvido nessa aventura. Quando abandonei minha aldeia, deixei de ser primitivo. Antes, havia pertencido à Criação, como os animais, com aqueles que tinham uma relação pessoal comigo; agora me encontrava fora, à distância.
Você discorreu sobre os santos, sobre a "Criação fracassada", e viu-se metido em dificuldades?
Sim. Minha mãe era presidenta da Igreja Ortodoxa em Hermannstadt e meu pai - bom sacerdote, além de sincero, mas de modo algum um homem de profunda religiosidade - queria na verdade ser advogado. Ficou muito triste quando leu o texto Sobre lágrimas e santos, no final de 1937, pouco antes de minha mudança para Paris. Quando enviei o manuscrito ao meu editor romeno, este me telefonou um mês depois para dizer-me que não poderia imprimi-lo. Ele mesmo não havia lido, mas sim um de seus linotipistas, e disse que devia seu patrimônio à ajuda de Deus e que não poderia publicar um livro assim por nada nesse mundo. De minha parte, em plenos preparativos de viagem à França, perguntei-me desesperado o que fazer. Na ocasião, encontrei-me com um romeno que havia colaborado com a revolução Russa e tinha conhecido Lênin. Perguntou-me o que acontecia, contei-lhe a história e ele era dono de uma gráfica. Assim, meu livro foi lançado sem um selo editorial, pouco depois de ter-me mudado para Paris. Alguns meses depois, recebi uma carta de minha mãe, na qual falava sobre a desgraça que meu livro havia provocado. Ainda que não fosse em verdade uma religiosa, sentia-se sob fortes pressões e rogou-me que retirasse o livro de circulação. Respondi que era a única obra religiosa escrita nos Bálcãs, porque era uma confrontação balcânica com Deus. Quase todos meus amigos reagiram mal, sobretudo Mircea Eliade, que escreveu uma crítica extraordinariamente dura, enquanto que uma garota que eu conhecia me disse que era o livro mais triste que havia lido. Evidente que se tratava de uma experiência religiosa equivocada. Eu havia mergulhado de tal modo na vida dos santos que, na verdade, deveria ter rezado. Mas para isso me faltavam os dotes necessários, ainda que me sentisse atraído pelos grandes místicos. Porém, a fé religiosa não é nunca resultado da reflexão, mas algo muito complicado. A religiosidade pode ser tola, mas tem raízes muito profundas (risos).
Em sua obra transparece um elogio da vida primitiva.
Nesse povoado romeno em que vivia, tínhamos uma horta ao lado do cemitério e, por essa razão, desde pequeno fiquei muito amigo de um coveiro de cinqüenta anos. Era um homem que agia alegremente quando tinha que cavar uma tumba e jogava futebol com as caveiras. Tenho me perguntado sempre como podia sentir-se tão feliz dia após dia. Eu mesmo não era como Hamlet, não era suficientemente trágico. Mais tarde, nossa estreita amizade sofreu uma mudança e se converteu num problema. Eu me pergunto por que razão temos que experimentar tudo isso na vida. Somente para acabar como um cadáver? Essas impressões ficaram gravadas indelevelmente. Aquele homem - enfrentando a morte diariamente - se comportava como se nunca tivesse visto um morto. Gostava muito dele. Estava sempre sorrindo.
A morte é um tema ao qual você tem sido fiel.
Desde cedo. É uma postura com que se vincula outro tipo de intensidade. Tenho convivido com a morte, desde muito jovem. Ainda que agora tenha mais motivos para pensar nela, não associo com a morte nenhuma idéia compulsiva. Em minha juventude, a idéia que tinha da morte era uma obsessão que se apoderava de mim de manhã até a noite. Como núcleo da realidade, possuía uma presença opressora, muito distante de todas as influências literárias. Tudo girava em torno dela, para além da repugnância e do medo, ainda que de forma patológica. Isto, naturalmente, era também conseqüência de que não dormi bem durante sete anos de minha juventude, de que estava extenuado. Naquele tempo, escrevi No cume do desespero. Essa insônia persistente transformou minha perspectiva do mundo e minha atitude diante dele. O momento pior desta situação aconteceu em Hermannstadt, quando vivia com meus pais. Caminhava sem destino, pela cidade, à noite. Minha mãe chorava de desespero, e eu mesmo, que acabara de completar 21 anos, estava a ponto de me suicidar. Até hoje não sei porque não o fiz. É possível que tenha aplacado a vontade de suicídio por força de escrever. Eu não tinha a menor idéia concreta do que era minha vida.
Você mudou sua idéia da morte?
Não é possível mudar a opinião que se tem sobre a morte. Constitui de per si um problema, o problema da existência. Em comparação com ele, todo o restante se evidencia como carente de importância. Curiosamente, há muitas pessoas que não conhecem o sentimento da morte, não querem ou não podem pensar nela. Os que compreendem o que significa a morte são minoria. Aos demais falta valor e mesmo os filósofos evitam o problema.
Mas se filosofa sobre a morte.
Claro que a morte é um tema na história da filosofia (risos), mas não como vivência íntima. Em Baudelaire existe a morte, em Sartre não. Os filósofos têm se esquivado da morte fazendo dela uma questão, ao invés de experimentá-la como algo existente. Não a consideram como algo absoluto, mas entre os poetas é diferente. Eles adentram profundamente o fenômeno, rastreando-o. Um poeta sem sentimento de morte não é um grande poeta. Parece exagerado, mas é assim.
Numa série de ensaios sobre amigos, você escreveu sobre Samuel Beckett. O que o agrada na obra dele?
O fato de não necessitar de heróis, de ter criado um tipo humano incomum e, com ele, ter apresentado outro gênero de humanidade. Sua obra, assim, não está vinculada a um tempo determinado. É a obra singular de um sujeito singular.
Não os aproxima também a fascinação pelo fenômeno do tédio?
A experiência do tédio, não do vulgar, por falta de companhia, mas o absoluto, é muito importante. Quando alguém se sente abandonado pelos amigos, não é nada. O tédio em si advém sem motivo, sem causas externas. Com ele vem a sensação de tempo vazio, algo assim como a vacuidade, coisa que conheço desde sempre. Posso recordar muito bem da primeira vez, quando tinha cinco anos. Vivia, então, na Romênia, com toda minha família. Então, tive de repente a consciência clara do que era o aborrecimento, o tédio. Foi por volta das três da tarde, quando fui tomado pela sensação do nada, da absoluta carência de substância. Foi como se, de súbito, tudo tivesse desaparecido, tudo mergulhasse na nulidade e fosse o começo de minha reflexão filosófica. Esse estado intenso de solidão me afetou de maneira tão profunda que me perguntei o que significava realmente. Não poder defender-se, nem poder se livrar dele com a reflexão, assim como o pressentimento de que voltaria outras vezes, me desconcertou tanto que o aceitei como ponto de orientação. No auge do tédio se experimenta o sentido do Nada, e neste sentido não se trata de uma situação deprimente, já que para uma pessoa não crente representa a possibilidade de experimentar o absoluto, algo como o instante derradeiro.
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In: Wikipédia, a enciclopédia livre: http://pt.wikipedia.org/wiki/Emil_Cioran.
Emil Cioran (Raşinari, 8 de abril de 1911 — Paris, 20 de junho de 1995) foi um escritor e filósofo romeno radicado na França. Em 1949, ao publicar "précis de decomposition", passa a assinar E.M. Cioran, influenciado por E.M. Forster - esse "M" não tem nenhuma relação com outros nomes do filósofo (como Michel, Mihai, etc.)
Um dos melhores conhecedores da obra de Cioran é o filósofo espanhol Fernando Savater.
Emil Cioran nasceu em Răşinari, Condado de Sibiu (na Transilvânia, parte do território Austro-Húngaro na época). Seu pai, Emilian Cioran era um padre Romeno Ortodoxo e a mãe, Elvira Cioran (sobrenome Comaniciu) era originária de Veneţia de Jos, um povoado próximo a Făgăraş. O pai de Elvira, Gheorghe Comaniciu, era tabelião e ganhou o título de barão pelas autoridades imperiais. Assim, pode-se dizer que Emil Cioran, em virtude da linhagem materna pertencia a uma pequena família de nobres na Transilvânia.
Após estudar Ciências Humanas no colégio Gheorghe Lazăr em Sibiu, Cioran começou a estudar Pedagogia na Universidade de Bucareste aos 17 anos. Ao ingressar na Universidade, aproximou-se de Eugène Ionesco e Mircea Eliade, os três permaneceriam amigos por muitos anos. Fez amizade com os futuros filósofos romenos Constantin Noica e Petre Ţuţea durante o período em que receberam ensinamentos de Tudor Vianu e Nae Ionescu. Cioran, Eliade e Ţuţea tornaram-se adeptos das idéias de seu mestre Nae Ionescu – ou seja, uma corrente denominada Trăirism, que mesclava o Existencialismo com idéias comuns às várias formas do Fascismo.
Absorvendo influências Germânicas, seus primeiros estudos centralizaram-se em Emmanuel Kant, Arthur Schopenhauer, e principalmente Friedrich Nietzsche. Tornou-se um agnóstico, tomando por axioma “a inconveniência da existência”. Durante seus estudos na Universidade, Cioran também foi influenciado pelas obras de Georg Simmel, Ludwig Klages e Martin Heidegger, e também pelo filósofo russo Lev Shestov, que aliou a crença na arbitrariedade da vida à base de seu pensamento. Cioran graduou-se com uma tese sobre Henri Bergson; mais tarde, porém, renegaria Bergson, alegando que este não compreendera a tragédia da vida.
Algumas obras:
Mon pays/Ţara mea ("My country”, written in French, the book was first published in Romania in a bilingual volume), Humanitas, Bucharest, 1996
Précis de décomposition ("A Short History of Decay"), Gallimard 1949
Syllogismes de l'amertume (tr. "All Gall Is Divided"), Gallimard 1952
La tentation d'exister ("The Temptation to Exist"), Gallimard 1956 English edition: ISBN 0-226-10675-6
Histoire et utopie ("History and Utopia"), Gallimard 1960
La chute dans le temps ("The Fall into Time"), Gallimard 1964
Le mauvais démiurge (literally The Poor Demiurge; tr. "The New Gods"), Gallimard 1969
De l'inconvénient d'être né ("The Trouble With Being Born"), Gallimard 1973
Écartelèment (tr. "Drawn and Quartered"), Gallimard 1979
Exercices d'admiration 1986, and Aveux et anathèmes 1987 (tr. and grouped as "Anathemas and Admirations")
Cahiers ("Notebooks"), Gallimard 1997
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