MARIA ESTELA GUEDES
A poesia na óptica da óptica

HENRIQUE DÓRIA,
as florestas de chumbo

 

E falou o Senhor a Moisés, dizendo:
Farás também uma pia de cobre com a sua base de cobre, para lavar;
e a porás entre a tenda da congregação e o altar; e nela deitarás água.
Êxodo 30:18

Quanto às duas colunas, ao mar, e aos doze bois de bronze que estavam debaixo das bases, que fizera o rei Salomão para a casa do Senhor, o peso do bronze de todos estes vasos era incalculável.
Jeremias 52:20

Henrique Dória apresenta várias cores neste livro, "Mar de Bronze" (1), e provavelmente em outros. Desde a charrete verde até ao vento amarelo, desde os lenços e véus vermelhos (a assinalarem uma poesia velada) até ao lindo cavalo turquesa, decerto todas as cores podem ser lidas - "lidas" e não "vistas", porque a poesia de Henrique Dória, e a poesia em geral, é mais conceptual do que perceptiva, apela para as emoções e para a inteligência mais do que permite as experiências sensoriais. Porém seleccionei o negro da obra ao negro por ser a cor dominante, a que abre este livro, ou este "Sonho escrito em papel negro" (ver o poema na íntegra, em baixo). Aceite-se o plúmbeo das estrelas de chumbo (pág. 32) e das florestas de chumbo (poema "Cedo", em baixo) como quase negro, e ficamos com o assunto cromático reduzido à sua expressão iniciática mais simples: o alquimista, reza a lenda, é aquele que transmuta o chumbo em ouro, passando por três fases de um trabalho, ou de um caminho, identificáveis por uma cor de preparado no forno, sobre o qual agiu o calor do fogo: obra ao negro, obra ao branco e obra ao rubro.

E cheguei com isto a dois problemas, um, fácil de resolver, o outro, nem por isso: o que é representado no ouro, em "Mar de Bronze"? Ou o que é que se transmuta de chumbo em ouro? Tradicionalmente, o chumbo é o nosso próprio "eu", que temos de civilizar, descendo às nossas deseducadas entranhas para delas sairmos cantantes como Orfeu. Alterando um pouco a rota da tradição, direi no entanto que, em Henrique Dória, tal Peregrinatio ad loca infecta, para recordar um título-programa de Jorge de Sena, só se concebe como ágape: é amando com elevação que se mortifica na obra poética-alquímica. É para ser amado que sofre as provações do aperfeiçoamento, com a inerente morte iniciática, tal como declara nos versos: "Despede-te de ti [...] / Se queres que o teu caminho / Seja um poema mais tarde" (texto na íntegra, em baixo).

O segundo problema é um osso muito duro de roer: como se distinguem os usos, profano e sagrado, não só das cores, como de outros símbolos, como os evocados no parágrafo anterior, nos diferentes poetas?

E tem algum interesse distinguir os utentes sagrados e profanos de um mesmo filão sagrado? Imaginem um membro de sociedade secreta a ser recriminado por revelar segredos do ritual (eu sei, muitos rituais no activo estão publicados, o que não elimina os recriminadores), quando, suprema ironia, esse membro censurado está apenas a parafrasear Herberto Helder ou o Livro dos Mortos egípcio.

Por exemplo, no texto sobre a obra ao branco de Fernando Botto Semedo (2), afirmei que não havia nenhuma intencionalidade alquímica por parte do poeta. E agora afianço que a obra ao negro de Henrique Dória é intencional, ele tem perfeita consciência do valor simbólico de certos signos. Mais ainda: ele recorre de forma programática a esses meios de expressão, alguns dos quais são razoavelmente desconhecidos, e já o título do livro aponta para um deles: o Mar de Bronze. Quem sabe o que é o Mar de Bronze se, para cúmulo, esta designação é substituída, nas diversas Bíblias, por "pia de cobre", "bacia de cobre", "piscina de cobre", e muito mais vezes aparece o cobre do que o bronze, e raríssimas essa grandiosa metáfora do "mar"? A relação entre o bronze e o cobre, para além do facto material de o bronze ser uma liga de cobre e chumbo (e zinco e estanho), e de o cobre substituir o ouro em circunstâncias várias, por ter a cor do ouro, é a de nos mergulhar as mãos nos metais pobres, os chamados vis, que é necessário depurar, limpar e decantar para ascenderem à perfeição do que tem nobre alma e nobre coração. Segundo a interpretação corrente, o mar de bronze é uma ferramenta de trabalho alquímico, serve, entre outras coisas, para as abluções, para purificar o corpo, antes de o crente entrar no templo para rezar a Deus.

O ENIGMÁTICO MAR DE BRONZE

Calculava-se que o mar de bronze continha uns 45.000 litros de água, e seu significado não tem nada a ver com a explicação que tradicionalmente vem sendo repetida desde os tempos de Flavio Josefo, isto é que era usado como pia para as abluções sacerdotais.

O mar de bronze era, nem mais nem menos, que uma representação do Cosmos sumério, segundo sua teoria do Eab-Zu, explicada no artigo dedicado a esta civilização na mesma obra, e presente, como difusão dela, em todas as culturas megalíticas do mundo.

O Eab-Zu era o "espírito sujeitador das ondas energéticas do caos", o princípio de todas as coisas visíveis e invisíveis, o "construtor" do "átomo primitivo" que entra em todas as matérias, isto é, do hidrogênio. Eab-Zu era o "criador do Universo", e o nome do Senhor, como já dissemos, não é mais que uma corrupção do antigo nome sumério, segundo a seguinte série de conversões fonéticas semíticas: Eab-Zu, Eav-Zu, Aau-Zú, Yau-Zú, Yahué, Yahvé (Senhor). Sua representação mitológica era, com referência a seu duplo aspecto de antepassado de todas as coisas, inclusive dos homens, associado ao macho cabra-peixe dos acádios e babilônios (o Oanes ou Ea, deus da água vital ou da água fértil) em sua manifestação masculina, e a sereia Dogón em seu complemento feminino. Sendo assim, depois de sua estância no Egito, o Yahú aquático dos seguidores de Abrahão voltou à Palestina revestido da imagem ofídica que os egípcios, como todas as culturas megalíticas e pós-megalíticas do mundo inteiro, atribuiam aos antepassados, segundo a crença que as serpentes eram as reencarnações dos mortos.

In: Esoterikha.com (4)

Voltando à minha pergunta inquietante: o que me permite garantir que certos poetas usam os símbolos de forma ingénua, não programática, e que outros o fazem por serem alquimistas ou praticantes de ritos sagrados? Resposta fácil é dizer que se conhece pessoalmente os poetas e alguma coisa da sua biografia. Tudo o mais é duvidoso, e algo estatístico: um poeta profano não escolhe tanto e tão criteriosamente. No caso de Henrique Dória, temos insistências e um grémio de símbolos que, com baixa probabilidade, se encontrariam todos juntos em poetas como Fernando Botto Semedo, Carlos de Oliveira, ou mesmo Herberto Helder, autor com uma grande capacidade mitificadora, que torna possível o seu encontro com o secreto, apesar da sua qualidade de paisano - ou profano, como se preferir. Vejamos alguns desses símbolos: o chumbo - na obra alquímica é necessário transmutar o chumbo em ouro, ou transmutar a madeira bruta da floresta em prancha polida; o triângulo; a morte sob o signo solar, isto é, a inexistente morte do neófito, de que fala Fernando Pessoa; a escada - símbolo da elevação de graus inferiores a superiores, até se atingir o posto mais alto de todos na linguagem simbólica, a exaltação; a vieira, o bordão, símbolos igualmente de passagem, mas numa vertente de peregrinatio, aqui explicitamente dirigida a Santiago de Compostela, patrono dos alquimistas.

Em resumo, em Henrique Dória encontramos as cores numa dimensão simbólica própria de ritual. Elas não são tintas para pintar, representam feixes de informação espiritual, identificável pela presença de símbolos complementares, os mais importantes dos quais são a escada e o triângulo. Tudo isto permite afirmar que o livro, ou o negro, entre as suas outras cores, se integra na simbologia maçónica.

Sonho escrito em papel negro

Sonho escrito em papel negro
Asa que um fio liga
A outra asa
Língua que um fio liga
Ao encontro de outra língua
À obscura palavra tempo
À foice que corta a sombra.

Sonho

Lua pousando no teu dorso
Envolta numa rede negra.

Música no centro vertiginoso
Da nebulosa
Única-eterna
Envolvendo a palavra amor.

Cedo

Cedo
Foste atirado
Para as florestas de chumbo
Onde todos nos iremos encontrar
Sem nos conhecermos.

Galerias de água negra
Se abriram nos teus olhos
Quando círculos e círculos
Te sorveram.

Não
Não era hoje o dia mais propício
Para morreres
Com um doce coágulo de sol
Na fronte.

Henrique Dória, Mar de Bronze, pág. 15

Que a escada te sirva  

Que a escada te sirva
Para alcançares o Monte Ararat.
Que a vieira te sirva
Para beberes o mar.
Todos somos o teu bordão.

Planta uma árvore
Sobre o mar vermelho
Planta-a dentro do triângulo
Planta-a
Para que cresça sobre o fel sufocado
Entre a lua e o sol.

Henrique Prior
Despede-te da casa

Despede-te da casa
Para ires ao encontro do bosque do mundo
Despede-te do espelho
Para ires ao teu encontro
Despede-te de ti
Para ires ao encontro do branco-nada.
Antes de partires tapa com lenços negros
Os orifícios do teu corpo
Tapa-os com lenços vermelhos

E envolve-te em argila marinha

Se queres que o teu caminho
Seja um poema mais tarde.


Poemas de Mar de Bronze

(1) Henrique Dória, Mar de Bronze, [Porto], Edições Xerazade, 2003

(2) http://www.triplov.com/Cor/optica-da-optica/Branco-negro/Botto-Semedo.htm

(3) http://www.esoterikha.com/grandes-misterios/templo-de-salomao/enigmatico-mar-bronze.php

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