MARIA ESTELA GUEDES
A poesia na óptica da óptica



Fernando
Botto Semedo,
a obra ao branco


Fernando Botto Semedo
Poemas Simples
Lisboa, Edição do Autor, 2007

O branco tem de ser a cor mais clara numa imagem
Ludwig Wittgenstein, "Anotações sobre as cores"

A assinalar os seus vinte e cinco anos de carreira literária (veja em baixo os títulos publicados pelo poeta), Fernando Botto Semedo dá à estampa "Poemas simples". Título modesto, próprio da modéstia do autor, mas pouco descritivo da peculiaridade dos seus livros, todos eles igualmente densos e pouco simples.

Numa altura em que estudo a poesia na óptica da Óptica, procurando saber qual o comportamento da cor e da luz em obras de arte feitas com palavras e não com efeitos prismáticos nem com pigmentos coloridos, é produtivo pegar nos Poemas simples para indagar se reaparece neles a cor típica de Fernando Botto Semedo, o branco. Claro que sim, reaparece o branco, sob essa forma ou outras - brancura, claridade, dia, etc., - acompanhado por elementos que lhe modulam a tonalidade ou as propriedades, o que entra no perímetro das reflexões de Wittgenstein sobre o branco, que devia ser uma cor-limite: branco é branco, o branco é a mais clara das cores, não se concebe um branco avermelhado nem esverdeado. Sendo a mais clara das cores, não é inteligível sob modalizações como "branco sujo", "mais branco", etc.. Ora na obra ao branco de Fernando Botto Semedo, obra ao branco que não pretende ser alquímica, é apenas fruto das contingências da vida, o branco é sempre mais branco do que qualquer outra brancura.

Nos livros de Botto Semedo, e Poemas simples não constitui excepção, a brancura pode ser infinita ou eterna, significando isto que existem outros brancos, mais finitos e mais perecíveis. Mas é de facto uma cor-limite, no que respeita aos valores emocionais que transporta: branco, no poeta, é cor de drama, cor daquilo que não pode ser dito. Como diria Kandinsky, o branco produz sobre a nossa alma o mesmo efeito do silêncio absoluto.

A brancura, no autor dos Poemas simples, anda sempre de mãos dadas com a luz, as estrelas, as flores, os anjos e as crianças - todos eles elementos de um Paraíso primordial, anterior à expulsão, jardim de um conhecimento ainda por adquirir. É uma paisagem libidinal muito complexa, própria de um Galaaz que busca infinitamente o seu Graal. Neste jardim fantasmático, Galaaz vê os campos da sua própria bondade, relvados com a pureza da sua alma, ansiosa pela realização dos seus sonhos e potencialidades. Vários poemas se iniciam visionariamente com a declaração "Via", como documenta um dos três que citamos na íntegra, amplificando invariavelmente os limites do que já é limite, intensificando uma pureza que não podia ser mais pura. Estamos no reino dos absolutos, dos infinitos, daquilo que se desenvolveu progressivamente até alcançar o impossível, como nestes versos, pág. 40, capazes de enervarem Wittgenstein, por conceberem a imagem de um branco-sangue:

Beijo-te para sempre. Deste-me o
Teu alvo sangue que é um oceano
Na minha alma, abrindo todas
As trevas secretas.

É o conceito tradicional do branco nas culturas ocidentais, o branco do vestido da virgem que sobe ao altar para se casar, o branco do fato da comunhão, enfim, do começar, de uma iniciação em actividade a que cumpre algum grau de sacralidade.

LIVROS DE POESIA DE FERNANDO BOTTO SEMEDO
AGOAS LIVRES (1982)
OLHAR DE UM MAR... (1983)
OUTONO DAQUELE DIA (1984)
NULO-DE-ALGURES (1984)
PALCO DE SOMBRA (1989)
CAIS-DE-UMA-VEZ (1989)
ESTAÇÃO DE UMA LENDA (1992)
VAZIO ILUMINADO (1992)
NAVEGAÇÕES (1992)
DISTÂNCIA ÍNTIMA (1992)
MAR INFINITO (1992)
POEMAS DO MEU JARDIM SEM NOME (1993)
CARNAVAL DE ESPELHOS (1994)
POEMAS DE UM ROSTO SECRETO (1995)
POEMAS DO SILÊNCIO (1996)
A ETERNIDADE É VERMELHA (1997)
CIRCO DO NADA CEGO (1998)
POEMAS COM ADESIVOS (1999)
SANGUE DE INVISÍVEL (2000)
CANTO PERTURBADO (2000)
CANTO INICIAL (2001)
VINTÉM DAS ESCOLAS (2002)
CANTO DESCALÇO (2002)
POEMAS DA MÁGOA (2003)
CAMPO DE ESTRELAS (2003)
HARMONIA BRANCA (2004)
PRIMAVERA DE CINZA (2004)
O LIVRO DA PRIMEIRA CLASSE (2005)
TRANSPARÊNCIAS (2006)
POEMAS SIMPLES (2007)

Crepita o Natal eterno das
Crianças puras de Deus. Alastra
A cor branca por todos os mares
Onde passam os veleiros do sonho
Indestrutível de todos os santos vegetais
Que iniciaram a construção do tempo
Inicial, do novo tempo onde tudo será
Pleno de inocência e da mais pura
Verdade, resplandecentes ao sol eterno
(Que são estes pássaros que passaram
Agora para o seu natural paraíso).

Fernando Botto Semedo, Poemas simples, pág. 38

Via os campos plenos de papoilas
Até ao infinito do Deus vegetal
Que tudo cria para a beleza do mundo,
Secreto sol que jamais renunciará
A propagação dos anjos da guarda
Da verdade e do sonho de todos os
Seres sagrados que existirão para sempre.
Nas nossas almas brancas, alargadas
Infinitamente.

Fernando Botto Semedo, Poemas simples, pág. 39

Aqui é o início de todos os caminhos.
Aqui é o poema frágil, que surgiu,
Incandescente, nesta tarde de um dia do
Tempo, de um dia da eternidade branca,
Inesperadamente, e a minha alma é apenas
Um vaso de barro que se encheu com
As lágrimas da comoção do milagre dos
Poemas singelos e grátis.

Fernando Botto Semedo, Poemas simples, pág. 42

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