MARIA ESTELA GUEDES
A poesia na óptica da Óptica
Antologia
LUZ
Alberto Pimenta, Heterofonia (1979)

ELEGIA FRIA, V

(Paro perto do caixão do meu morto de
hoje. Cubro-o de lírios de roxo hipócrita.)

Os violadores do sexo das ruínas,
arqueólogos do silêncio,
nunca ouvirão este grito exacto
chorado agora mesmo diante do meu morto
que a imaginação dos lírios
desenha na lividez
do caixão roxo.
Os escavadores do sol com ferrugem
nunca sentirão a saliva desta raiva só minha,
sensação de que afinal o morto não é este,
escondeu-se não sei onde
com medo dos espantos da Fronteira
que tornaram de súbito a morte ilógica
-- interrupção da morte verdadeira.

José Gomes Ferreira, Elegia fria

AS MUSAS CEGAS, I

Bruxelas, um mês. De pé, sob as luzes encantadas.
Em noites assim eu extinguiria minha alma
cantando humildemente. Fecharia os olhos
sob os anéis dos astros, e entre os violinos
e os fortes poços da noite, descobriria
a ardente ideia da minha baixa
vida. Em noites assim amaria o fogo
da minha piedade. Cantaria como um louco este grande
silêncio do mundo, vendo queimarem-se nas trevas
as vísceras tensas e os ossos e as flores dos nervos
e a cândida e ligeira arquitectura
de uma vida.

Bruxelas com as traves da minha cabeça
e uma grinalda de carvões em torno dos testículos
de um homem
bêbado de piedade. Cantaria com esses testículos
cobertos de lágrimas - e o coração no meio do nevoeiro
derramando o seu baixo e aéreo sangue,
o seu pudor, a lírica
miséria, o fogo de porta entre os símbolos nocturnos.

Era tão pura a ideia de que o tempo começava,
depois do verde e estéril e exaltado
mês da carne. Vergada sobre o livro onde o meu rosto
ardia,
a minha vida esperava com suas torres
vibrantes, seus grandes lagos
límpidos. E eu adormecia
e sonhava um homem em voz
incandescente, uma fina flor
vermelha colocada sobre a mesa. Era tão violenta
a ideia de cantar sem fim,
até que a voz consumisse esta garganta sombreada
de estreitos vasos puros.
- Cantar fixa e fria e intensamente
sobre a minha suja
admirável vida, ou sobre os campos transparentes e negros
de bruxelas do mundo.

Herberto Helder, As musas cegas

KHAKHI

Khakhi

Zomba

Mofa

e range

a pandeireta fofa.

Pára o pulso no giro d'Ela solta.

Fluxo e refluxo dos boulevards acesos na pandeireta ruiva.

ÓPERA - 7 h. et 50: Thaïs

Jóias e brincos

Tantos e tontos

tintos de íman

toldam-se em lumes de pederneiras

Íris-brasa d'ARARA no engaste.

Pirilampos de baile às listas militares de trintanário

bric-à-brac.

Almada Negreiros, extracto de Mima-Fatáxa

A PORTUGAL

Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
a pouca sorte de nascido nela.

Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela,
saudosamente nela, mas amigos são
por serem meus amigos, e mais nada.

Torpe dejecto de romano império;
babugem de invasões; salsugem porca
de esgoto atlântico; irrisória face
de lama, de cobiça, e de vileza,
de mesquinhez, de fátua ignorância;
terra de escravos, cu pró ar ouvindo
ranger no nevoeiro a nau do Encoberto;
terra de funcionários e de prostitutas,
devotos todos do milagre, castos
nas horas vagas de doença oculta;
terra de heróis a peso de ouro e sangue,
e santos com balcão de secos e molhados
no fundo da virtude; terra triste
à luz do sol caiada, arrebicada, pulha,
cheia de afáveis para os estrangeiros
que deixam moedas e transportam pulgas,
oh pulgas lusitanas, pela Europa;
terra de monumentos em que o povo
assina a merda o seu anonimato;
terra-museu em que se vive ainda,
com porcos pela rua, em casas celtiberas;
terra de poetas tão sentimentais
que o cheiro de um sovaco os põe em transe;
terra de pedras esburgadas, secas
como esses sentimentos de oito séculos
de roubos e patrões, barões ou condes;
ó terra de ninguém, ninguém, ninguém:

eu te pertenço. És cabra, és badalhoca,
és mais que cachorra pelo cio,
és peste e fome e guerra e dor de coração.
Eu te pertenço: mas ser's minha, não.

Araraquara, 6/12/61
Jorge de Sena, Tempo de Peregrinatio ad loca infecta

ANTO

Caprichos de lilás, febres esguias,
Enlevos de Ópio - Íris-abandono...
Saudades de luar, timbre de Outono,
Cristal de essências langues, fugidias...

O pagem débil das ternuras de cetim,
O friorento das carícias magoadas;
O príncipe das Ilhas transtornadas -
Senhor feudal das Torres de marfim...

(Lisboa, 14 de Fevereiro de 1915)
Mário de Sá-Carneiro, Indícios de Oiro

AS SOFRIDAS AMORAS

As sofridas amoras
dos valados
os fogosos espinhos
que coroam os cardos

Saltam ao caminho
a sangrar-me a veia
do poema.


Luísa Neto Jorge, Par le Feu . A Lume

O ENCOBERTO


Que símbolo fecundo
Vem na aurora ansiosa?
Na Cruz Morta do Mundo
A Vida, que é a Rosa.
Que símbolo divino
Traz o dia já visto?
Na Cruz, que é o Destino,
A Rosa, que é o Cristo.
Que simbolo final
Mostra o sol já desperto?
Na Cruz morta e fatal
A Rosa do Encoberto.

Fernando Pessoa, Mensagem

ENTRE DUAS MEMÓRIAS, VI

Entre duas memórias;
já separadas como estratos,
mas recordando-se uma à outra;
subimos pelo frio:
paredes altas de água a condensar-se
no ar ainda azul; com a transparência
sem som a suavizá-lo;
perguntamos indecisamente:
neve mais silêncio
igual ao fim do azul?
ou a fórmula do esquecimento;
onde passam gelos vagarosos;
deduz-se doutro modo?
seja como for,
nenhuma sombra nos prolonga
por este chão de vidro;
e o ar boreal reflecte-nos os olhos,
tão limpos, que os extingue.

Carlos de Oliveira

CMYK

O bom amigo das cores

chora pérola e carmim

Não sabe nada do escuro

e nada sabe de mim.

Ideou uma catedral

a deuses policromados

dentro de custódias de âmbar

e graais de azul-sulfato.

Nada em chávenas turquesa

com peixes azul-de-Prússia

o corpo ondulante e opala

morre em branco de marquesa.

Cobre a cabeça aos deuses

com elmo cúpreo radioso.

Emite azul, amarelo e preto

tons da calda bordalesa.

O meu grande amor ansioso

chora lágrimas coralinas

e eu limpo-lhas com os dedos

leves de cochinilha.

Deus do azul, rubro e amarelo,

com que se pinta o arco-íris,

ele é cor por ser poeta.

Maria Estela Guedes, Estudos de cor

SONETO ECOLÓGICO
Fernando Aguiar (instalação de ar livre)
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