VIII COLÓQUIO INTERNACIONAL
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ALEXANDRE, O INTÉRPRETE DIVINO Maria do Sameiro Barroso |
Fig.1 |
A figura de Alexandre, nascido a 6 de Agosto de 356, falecido a 10 de Junho de 323, está envolta em mito (Gerhard Wirth: 2001, p. 133). Conforme convém a todos, pois todas as figuras ilustres da Antiguidade procuravam demonstrar a sua ascendência divina, Plutarco, refere que Alexandre era Heráclida, descendente de Carano, por parte do pai e Eácida, descendente de Neoptólemo, por parte da mãe. Tendo Filipe da Macedónia sido iniciado na Samotrácia, juntamente com Olímpia, se enamorou desta que era ainda uma menina, tendo-a desposado. Na noite de núpcias, antes de se unirem, houve uma trovoada e um raio caiu sobre o ventre da jovem, que, de um golpe, se incendiou e cujas chamas se espalharam para, logo depois se dissiparem. Algum tempo depois do casamento, Filipe teve um sonho, segundo o qual colocava uma sela no ventre da sua mulher. Na sela, havia um leão gravado. Aristandro Telmisco interpretou este sonho como um sinal de gravidez de Olímpia, que trazia no ventre uma criança corajosa, com uma índole parecida com a de um leão. Viu-se também um dragão que se enrolou ao corpo de Olímpia, estando esta adormecida, o que provocou o afastamento de Filipe, cujo carinho passou a escassear e que passou evitar deitar-se junto dela. Talvez temesse que ela utilizasse encantamentos maléficos contra ele, ou talvez tivesse receio de se juntar a uma mulher que tinha concebido um ser superior. Segundo Plutarco, Olímpia, tal como as outras mulheres daquela terra, era iniciada nos mistérios órficos e nas orgias de Baco, nas quais ela, mais que as outras, se excedia, no seu entusiasmo e no seu fanatismo, levando para os cortejos grandes serpentes, que ela própria domesticava e que, fugindo, muitas vezes, das heras, durante a dança mística, se enroscavam nos tirsos e nas coroas, assustando os outros participantes. Filipe também tinha fama de ter perdido o olho por ter espreitado por uma porta e visto que o deus (Dioniso) unindo-se a Olímpia, sob a forma de um dragão (Plutarco II: Trad. Cast.: 1948, 251-253 . Esta versão é completamente fantasiosa, pois Filipe II da macedónia perdeu o olho esquerdo, durante o cerco de Metona, em 355-354. O rei tinha sido atingido por uma flecha que lhe atingiu a órbita direita e o cegou (Maria do Sameiro Barroso: 2008). Este acontecimento foi narrado de forma bastante realista por vários autores antigos, a saber, Demóstenes, Dídimo, Diodora de Sicília, Justino, Séneca e outros. Estrabão atribuiu a perda do olho a uma ferida por catapulta (Mirko Gremek, Danielle Gourevich: 1998, p. 365). Ainda segundo Plutarco, no sexto dia do mês a que os macedónios chamam do leão (Agosto), Filipe recebeu três notícias. A primeira foi que tinha vencido os Ilírios, numa batalha, travada por Parménio, seu general. A segunda foi que o seu cavalo tinha triunfado nos Jogos Olímpicos. A terceira foi que tinha nascido o seu filho Alexandre. Filipe regozijou-se com as notícias, ainda mais que os adivinhos previram que o jovem, nascido entre três vitórias seria invencível (Plutarco, II: 1948, p. 253). Quando o pai morreu, em 336, o jovem Alexandre tinha vinte anos. Aos treze anos, Filipe II chamara Aristóteles para o educar. A criança lera Píndaro, Heródoto, Eurípedes, recitava a Ilíada e Aquiles era o seu modelo. Aos dezasseis anos, durante uma expedição de Filipe, foi-lhe confiada a regência. Quando este foi apunhalado por Pausânias, Alexandre iniciou um reinado de doze anos, que iria mudar para sempre a face da Hélade e do mundo oriental. Segundo Pierre Lévêque, em Alexandre unem-se a prudência e a inspiração, a reflexão e a intuição, explicando-se esta natureza excepcional pela dupla hereditariedade de Filipe, realista, e de Olímpia, mística. Esta, uma mulher violenta que se entregava ao frenesim dos ritos dionisíacos, pertencia à família real dos Molossos, os Eácidas, que diziam ser descendentes de Pirro, filho de Aquiles, e que possuíam a impetuosidade e o arrebatamento do herói «com coração de leão» ( Pierre Lèvêque: 1987, p. 9.). Dentro do conhecimento histórico que temos das ménades, em Tebas, Delfos, Atenas e na Macedónia, diz-se que Olímpia, mãe de Alexandre, participava nos tiasoi (cortejos do culto de Dioniso). As mulheres conhecidas como Thyades juntavam-se anualmente, viajando de Atenas para se juntar às mulheres e Delfos, a fim de celebrarem os ritos de Dioniso, nas encostas do monte Parnaso (Pausanias 10.4.2) Estas executavam danças em pontos fixos, ao longo do percurso. Plutarco (Moralia 249) narra um episódio do século IV, segundo a qual um grupo de tíades délficas, ainda em êxtase dos seus festins, vaguearam até ao mercado de Amfisa (Amphissa) e adormeceram. As mulheres da cidade, temendo que os soldados as maltratassem, formaram um círculo, em volta delas, mantendo uma vigília silente, durante a noite (Joan Breton Connely: 2007, p. 42.) Crendo-se descendente de Héracles, por parte do pai e de Aquiles e de Príamo, pelo lado da mãe, Alexandre era apaixonado pelas tradições míticas, sentindo correr, dentro de si o sangue dos heróis, seus antepassados (Pierre Lèvêque: 1987, p. 10). Antes da sua partida para a Ásia, Alexandre quis consultar o oráculo de Delfos. os dias destinados à consulta dos oráculos eram estabelecidos pelas leis religiosas. Era considerado um mau presságio, consultar os oráculos fora desses dias. Ora Alexandre teve o azar de chagar a Delfos num desses dias (Plutarco, Alexandre 14.6-7). Tendo insistido, o seu pedido foi recusado por uma sacerdotisa e o jovem Alexandre tentou leva-la para o templo para a obrigar a fazer o seu trabalho. Impressionada com a sua determinação, a sacerdotisa exclamou: “Tu és invencível, meu filho.”. E Alexandre partiu, feliz por ter ouvido as palavras de que precisava (Joan Breton Connely: 2007, p. 42). Neste ambiente, sobrecarregado pelo sobrenatural, após a anexação do Egipto, país onde havia uma tradição milenária que fazia do faraó um deus, a visita que faz ao oráculo de Siwah, corrobora a ideia que traz dentro de si. Amon proclama-o o seu filho e promete-lhe o império universal. A esxpressão «Filho de Amon», corrente nos títulos faraónicos, dera-lhe a certeza de que não era apenas um rei, descendente de uma certa linhagem, mas o filho querido de uma divindade, logo, ele próprio deus (Pierre Lèvêque: 1987, p. 10). Alexandre deu ao culto real o seu pleno desenvolvimento, tirando partido das vantagens da sua divindade, ao possibilitar a unidade indispensável a um império que iria até ao Indo. Após a conquista da Pérsia, adoptara o cerimonial quase divino dos Aqueménidas. Os gregos não viam com bons olhos essa apoteose a um deus, sob a forma de um homem ainda vivo, obrigando-os à proscinese (genuflexão). Os imperadores anteriores, tal como Augusto, só tinham sido divinizados, após a sua morte. Assim, Clito foi levado à morte e Calígenes, sobrinho de Aristóteles, foi preso. Mas, a pouco e pouco, as oposições enfraqueceram e Atenas venerou-o como o Novo Dioniso. Em 324, as cidades gregas encarregaram os teores (os embaixadores que se enviam aos deuses) de o coroarem de ouro (Pierre Lèvêque: 1987, p. 16). Em Alexandria, Alexandre foi honrado, simultaneamente como deus e como herói, fundador da cidade. Esta atracção pelos cultos orientais fizera-se sentir nos soberanos que se sucederam a Alexandre, cujos nomes são característicos desta forma de pensamento. Ptolomeu Soter (Salvador), Ptolomeu Evergetes (Benfeitor), Epífanes (que aparece como uma deusa aparece numa epifania, Teos (deus). No final do período helenístico, António e Cleópatra levaram a cabo uma tentativa de construir um vasto estado teocrático. Se Cleópatra se encontrara com António em Tarso, era Afrodite que ia a uma festa, em casa de Dioniso. Marco António tomara oficialmente o cognome de Novo Dioniso e entrara em Alexandria, coroado de hera, empunhando um tirso e calçado com coturnos do próprio Baco. Nas vésperas da derrota, chegou-se a acreditar que se ouvia o tíaso divino que abandonava o imperator, deixando, na sua condição humana aquele que havia sido habitado por um deus ((Pierre Lèvêque: 1987, p. 146). A imitação divina tornara-se parte das cerimónias rituais. Entre outras fontes, a epigrafia dá-nos o testemunho evidente desta realidade. Uma inscrição do século I a. C., proveniente de Andania menciona um grupo de pessoas que “se devem vestir, à maneira dos deuses”. Estas pessoas eram instruídas a usarem os trajes dos oficiantes dos templos. Estas indicações parecem ter sido parte de um programa de reorganização mais vasto dos Mistérios de Deméter. O responsável pelas cerimónias dos Mistérios, Mnasistratos, dá indicações de que ele e a sua mulher presidirão a um banquete. Haveria uma grande procissão, em honra da deusa, na qual Deméter, Hermes,os grandes deuses, Apolo Carneio e Hagna (a deusa pura) desfilariam, possivelmente representados pelos membros do culto. Sabe-se também que um sacerdote e uma sacerdotisa se juntariam a Mnasistratos, à frente da procissão, seguidos pelo promotor dos festejos, os sacerdotes que faziam os sacrifícios e os tocadores de flauta (aulos). Atrás deles, seguiriam as virgens sagradas, puxando carros com arcas, contendo “as coisas sagradas dos mistérios”. As “mulheres sagradas ” e os “homens sagrados ” iriam no fim. A inscrição de Iobacchoi, encontrada no santuário de Dioniso em Limnai, perto de Atenas, dá igualmente indícios de que os mortais se vestiam como as divindades. Esta inscrição, datada do século II d. C., refere especificamente aqueles que “ falam ” e “actuam ” (linhas 65-66). O processo de selecção dos candidatos era cuidadosamente exposto. O elenco era constituído pelo sacerdote, o contra-sacerdote, o archibacchos (significando o chefe dos seguidores de Baco), o tamias (o tesoureiro), o Boukolicos (pastor), Dioniso, Core, Palaimon, Afrodite e Proteuritmo (linhas 122-125) Temos, portanto, claramente, uma encenação sagrada, na qual as personagens rituais tomavam a aparência das divindades que honravam. A representação de cenas sagradas é igualmente inferida numa inscrição do Éfeso, no templo de Adriano. O texto fornece uma longa lista de papéis a ser representados no teatro ritual: Brómio (Dioniso), Atena Sotera, Homonoia (Concórdia), as ninfas,mais velhas e mais novas, Hélio, Core, Pan, Asclépio, Deméter, o novo Dioniso (possivelmente, o próprio Adriano), e outras divindades menos conhecidas. O acto de envergar roupagem sagrada está bem salientado, no Éfeso. No já citado episódio de interpretação divina de Marco António, em 41 a. C., que teve lugar na festividade religiosa, que foi identificada como Katagogia. Plutarco conta: «Quando entrou no Éfeso, foi conduzido por homens e mulheres, disfarçadas de bacantes, por homens e rapazes, disfarçados de Sátiros e Pã e a cidade estava cheia de hera, tirsos, harpas, flautas e cantos e chamaram-lhe Dioniso, o que concede a Graça e a Gentileza”. Marco António tinha entrado, tanto em Atenas como em Alexandria, envergando os trajes de Dioniso (Joan Breton Connely: 2007, pp. 106-107). O mais famoso intérprete divino da Antiguidade foi Alexandre Magno. Arriano narra, com algum cepticismo, a marcha de Alexandre para Gedrósia, com flautas e grinaldas, num carro cerimonial, segundo esta história popular, o rei foi visto a imitar a orgia de Dioniso (Anábase, 6.28). Plutarco descreve a estridente procissão de carros, cobertos de púrpura, baldaquins bordados e ramos de árvores. Alexandre foi transportado por um conjunto de oito cavalos (Alexandre 67) enquanto soavam cânticos e música de flauta, misturados com os gritos das mulheres e grandes tonéis de vinho enchiam livremente as taças. O testemunho do seu contemporâneo, Éfipo (Ephippos, 1988, p. 278), dá notícia de que Alexandre também envergou as vestes de Amon, Hermes, Hércules e a própria deusa Artemisa. A devoção de Alexandre e a prática frequente de sacrifícios colocava-o numa posição de chefia que tinha implicações ao nível do culto ( Joan Breton Connely: 2007, p. 107). Alexandre acreditava profundamente na existência dos deuses, que honrava, levando a cabo sacrifícios, oferendas e presidindo a festejos, em sua honra, e acreditava profundamente nos oráculos (Gerhard Wirth: 2001, p. 123). Em dois tetradracmas de cerca de 300 a. C., Alexandre é representado como Hércules (Figura 1) e como Amon (Figura 2). Segundo Plutarco, Alexandre, estando convencido da sua geração divina, em geral, mostrava-se arrogante para com os bárbaros. No entanto, com os gregos, tinha mais cuidado em divinizar-se, tendo escrito uma vez aos atenienses, perto de Samos: “ Não sou eu quem vos entrega esta cidade, livre e gloriosa, mas daquele que então era meu senhor e meu pai”, referindo-se a Filipe II. Noutra ocasião, tendo caído ao chão, ferido por uma seta, sentindo uma profunda dor, teria dito: “ Isto que de aqui sai, é sangue, e não licor subtil, Como o que flui dos venerandos deuses”(Plutarco II: 1948, p. 282). |
Fig.2 |
Bibliografia |
— Gerhard Wirth, Alexander der Große, Reinbeck, Hamburg, 2001. — Joan Breton Connely, Women and ritual in Ancient Greece, Princeton University Press and Oxford, 2007, p. 42. — Maria do Sameiro Barroso, A Medicina no Período Helenístico ( 323 a 30 a. C.) , Boletim da Sociedade de Geografia, Lisboa, 2007 (no prelo). — Mirko Gremek, Danielle Gourevich, Les Maladies dans l’Art Antiqúe, Fayard, Lyon, 1998. — Pierre Lèvêque, O Mundo Helenístico (Le Monde Hellénistique), tradução, Teresa Meneses, Edições 70, Lisboa, 1987. — Plutarco, Vidas Paralelas, tradução do grego para o castelhano por D. António Ranz Romanillos, II Volumes, Libreria El Ateneo Editorial, Buenos Aires, 1948, II Volume. |
Índice de figuras |
Figura 1 – Alexandre como Hércules, tetradracma de prata de cerca de 300 a. C., in Gerhard Wirth, Alexander der Große, Reinbeck, Hamburg, 2001, p. 54. Figura 2 – Alexandre como Amon, tetradracma de Lisímaco de cerca de 300 a. C. (Museu Britânico de Londres), in Gerhard Wirth, Alexander der Große, p. 32. |
Lugar onde: Escola Prática de Infantaria, no Palácio Nacional de Mafra |
INICIATIVA: Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL) Instituto São Tomás de Aquino (ISTA) www.triplov.org |
CONTACTOS/Secretariado Maria Estela Guedes: estela@triplov.com |
PATROCINADORES Escola Prática de Infantaria (Palácio Nacional de Mafra) |
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