VII Colóquio Internacional
"Discursos e Práticas Alquímicas"
LAMEGO - SALÃO NOBRE DA CÂMARA MUNICIPAL
22-24 de Junho de 2007

Da exaltação à invisibilidade da mulher na Igreja
Maria Julieta Mendes Dias, rscm

 

Agradeço o convite com uma confissão: aceitei participar neste Colóquio muito inconscientemente, levada apenas pela minha dificuldade em dizer não ao Frei José Augusto Mourão. Espontaneamente, a minha resposta a um pedido seu é sim. Acordei, quando tive de apresentar um título. Aí, a primeira reacção foi desistir. Depois, olhei para o tema geral, Alquimias do Feminino, achei graça à “alquimia” e despertou o meu fascínio por esse campo enigmático, de feiticeiras e mágicos, onde tudo pode acontecer a partir do que temos à mão: cura, transmutação, “fazer” ouro de elementos fracos, grosseiros, vis… Fixei-me na noção de “transmutação” e escolhi: Da exaltação à invisibilidade das mulheres na Igreja. Obrigada!

Quando, finalmente, me confrontei com a necessidade de escrever – escrever é sempre, para mim, uma violência e que vou adiando até mais não poder – percebi que o título dado não correspondia, exactamente, ao que pretendia. Não queria “fazer ouro”. Esse tinha-o, só que estava escondido com as sucessivas camadas de poluição, acumuladas ao longo de dois mil anos. A operação a fazer teria de ser a contrária: desfazer, remover, retirar o que não pertence à essência do Cristianismo e que tornou invisível o “ouro feminino” que Jesus de Nazaré, o Cristo, ofereceu ao nosso mundo. Assim, talvez fosse mais correcto intitular esta minha comunicação: Da invisibilidade actual, na Igreja, à exaltação dada, por Jesus, às mulheres do seu tempo.

Hoje, na Igreja, basta olhar para poder constatar: mulheres? Sim: muitas; visibilidade? Nula!

Mesmo na era da imagem – que é a nossa – o que dá visibilidade é a palavra. Quem não for detentor da palavra não é visto, torna-se invisível.

A mulher não é detentora credenciada da missão da Igreja. É uma serviçal a quem compete, simplesmente, executar as tarefas que lhe forem pedidas, segundo os requisitos estipulados. Não detém o poder de falar, mas o de repetir o que ouve. Não lhe é reconhecido o poder de edificar e dirigir a comunidade cristã e, muito menos, o de representar, sacramentalmente, Cristo.

Tudo isto tem as suas vigorosas raízes no androcentrismo e é fruto da ignorância que não desapareceu, apesar do abundante cultivo – nos campos das ciências, das humanidades, das tecnologias e das artes – ter produzido frutos de excelente qualidade que, hoje, ninguém se atreve a contestar e que fez abalar, com bastante violência, o androcentrismo, pelo menos em algumas sociedades. Culpabilizemos, então, a história que transmitiu às sucessivas gerações a existência de uma hierarquia natural entre o homem e a mulher, na qual, o varão, o ser humano masculino, ocupa uma posição superior, tanto no pano social como no plano simbólico, devido à sua condição de “ser humano perfeito”, enquanto a mulher não passa de um “ser humano deficiente”.

No Ocidente, porém, este legado começou, progressivamente, a ser corroído a ponto de, hoje, nos orgulharmos de ter ultrapassado o tal androcentrismo, pelo menos juridicamente. Esta evolução em ordem à igualdade dos géneros não se deve à superioridade moral da sociedade ocidental em relação às outras sociedades, mas, fundamentalmente, aos avanços da ciência, sobretudo da medicina, e ao trabalho assalariado das mulheres nas sociedades pós-industriais.

A emancipação da mulher, o reconhecimento de iguais direitos, o acesso ao saber, não dão, automaticamente, a igualdade de facto, no concreto da vida. Todas sentimos isso sem precisar de apontar exemplos.

A Igreja católica estruturou-se na chamada sociedade ocidental. Desde muito cedo – podemos ver já nas Cartas de Paulo, primeiros escritos cristãos conhecidos – a reflexão cristã foi condicionada culturalmente pelo androcentrismo vigente (1Cor 11, 2-15), que contradiz o “credo baptismal” recebido e, fielmente, transmitido pelo mesmo Paulo: Vós todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus, pois todos vós que fostes baptizados em Cristo, vos vestistes de Cristo. Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus (Gal 3, 26-28). Na mesma Carta, explicita a nossa igualdade em Cristo (sois um só, isto é, iguais) dizendo: Foi para a liberdade que Cristo vos libertou. Permanecei firmes e não vos deixeis prender de novo ao jugo da escravidão (…) fostes chamados à liberdade para vos colocardes ao serviço uns dos outros (Gal 5, 1-15).

A exegese bíblica, cada vez mais e de forma cada vez mais consistente, tem vindo a confirmar que as mulheres desempenharam – não só no discipulado de Jesus, mas também no Cristianismo primitivo – um papel bastante mais importante do que o Novo Testamento dá a entender. Na verdade, deve ter sido muito forte, muito decisiva, a acção das mulheres para não serem esquecidas, quando era costume não contar mulheres e crianças (Mt 14, 21; 15, 38). Elas depressa compreenderam que a proposta de felicidade trazida pelo Nazareno não excluía ninguém, seguiram-no e foram acolhidas. Diria mesmo, foram exaltadas, amadas com predilecção.

Seguir Jesus Cristo é pôr a sua vida – mulheres e homens – ao serviço da alegria plena para todos (Jo 15, 11). O 4º Evangelho, na sua estrutura diferente da dos Sinópticos, pelo lugar que dá às mulheres, mostra que é testemunho de uma comunidade edificada (cf. Ef 4,12) pela acção delas. A estrutura da narrativa mostra o papel preponderante das mulheres nessa comunidade, como o de Marcos, por exemplo, mostra o de Pedro. O lugar ímpar que lhes concede reflecte a história, a teologia e os valores da comunidade do discípulo amado (1):

  1. A mãe de Jesus – a Mulher – no início (Jo 2,1-12) e no fim (Jo 19, 25-27) do Seu ministério público.
  2. Preponderância da mulher na evangelização (Jo 4).
  3. Preponderância da mulher no reconhecimento de Jesus como o Cristo de Deus (Jo 11, 1-44 e 12,1-8).
  4. Preponderância da mulher no anúncio da Ressurreição, primeiro momento do que, hoje, podemos chamar Igreja (Jo 20, 1-18).

Vejamos em detalhe:

1. É a mulher que provoca o início do ministério público de Jesus (Jo 2,1-12), embora Ele tivesse perfeita consciência da missão que Lhe fora confiada (Jo 2,4). A mãe de Jesus estava também nas bodas de Caná e, ao faltar o vinho durante as festas, interpela-o sobre o facto. Dá-se um diálogo inusitado. Tratando-a por “mulher”, responde-lhe com dureza e/ou perplexidade: Τί εμοι και σοί (literalmente: “que há entre tu e eu?”) que pode ser traduzido por: “que há de comum entre nós?” ou “o que é que tu sabes de mim?”. Nos Sinópticos, esta expressão é posta na boca dos “espíritos” dirigindo-se a Jesus que os quer expulsar (Mc 1, 24; 5, 7; Mt 8, 29; Lc 4, 34; 8, 28).

A continuação da resposta – pois a minha hora ainda não chegou – leva-me a pensar que há mais perplexidade que dureza: o que há entre nós para que tu saibas antes de começar?! Como é que conheces o meu segredo?!

A reacção de sua mãe – dizendo aos serventes, fazei tudo o que ele vos disser – e a acção de Jesus – ordenando: Enchei as talhas de água... Tirai agora um pouco de água e levai-a ao mestre sala – levam-me a pensar que a mulher tinha pressentido o “segredo” de Jesus e precipitou a Sua hora que ele julgava não ter chegado ainda.

Esta mulher (2) que apressara a hora de Jesus, no início, é a mesma mulher que, estando-se a esgotar a sua hora, recebe o mandato de acolher a Igreja, a nova família de Jesus (Jo 19, 25-27) que não assenta na atracção recíproca nem nos laços de sangue, mas na escuta da Palavra de Deus para a pôr em prática, isto é, a Igreja acolhida e edificada pelo amor, personificada no discípulo amado ou discípula amada. No caso concreto desta comunidade, discípula amada.

O texto é muito explícito: Perto da cruz de Jesus, permaneciam de pé sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Clopas, e Maria Madalena (não há nenhum homem neste grupo e o costume era não contar mulheres e crianças!). Jesus, então, vendo a sua mãe e, perto dela, o discípulo a quem amava, disse à sua mãe: “Mulher, eis o teu filho!” Depois disse ao discípulo: “Eis a tua mãe!” E a partir dessa hora, o discípulo recebeu-a em sua casa. Os “masculinos” na narrativa devem-se, tão só, ao uso da linguagem corrente, sem esquecer que, quem fala, é efectivamente um homem, o filho que essa mulher estava preste a perder, mas que tinha de o reencontrar naquela que Jesus amava. Pela posição que Maria Madalena toma na lista das presentes (último lugar e a mãe o primeiro, enquadrando todo o grupo), leva-me a ver nela o discípulo amado.

2. É também muito claro, neste evangelho, que a grande mensageira de Jesus, a grande evangelizadora, é uma mulher samaritana (Jo 4).

O final do capítulo 2 fala dos judeus que O rejeitam completamente (2,13-22). O capítulo 3 diz que um homem – Nicodemos – embora se sentisse atraído pela mensagem de Jesus, tinha muita dificuldade em entendê-la e vinha, na calada da noite, pedir esclarecimentos porque à luz do dia tinha medo. Foi um desentendimento completo: Jesus falava em “alhos” e Nicodemos entendia “bugalhos”. A noite terminou sem qualquer indício da reacção deste fariseu ilustre.

No capítulo seguinte, dá-se um encontro ocasional, junto ao poço de Jacob: Jesus e uma samaritana. De início, parece que vai acontecer o mesmo: não haverá entendimento porque as mesmas palavras têm sentidos diferentes para cada um dos interlocutores. No desenrolar da conversa, porém, a mulher percebe que aquele homem é diferente dos outros, deixa o tom irónico e pergunta o que verdadeiramente lhe interessa. As respostas que obtém abrem-lhe o espírito e não tem dúvidas: está perante aquele que há-de vir. Ouviu o suficiente para compreender que a vida seria muito mais vida se toda a gente conhecesse a mensagem daquele homem. Não perde tempo: deixa o cântaro e vai à cidade anunciar, chama todo o povo e congrega-o à volta de Jesus. Por causa dela – diz o texto – muitos samaritanos acreditaram (Jo 4,1-42).

3. Em Lucas, a “transgressora” dos costumes é Maria de Betânia e Marta escandaliza-se (Lc 10, 38ss). Aqui (Jo 11, 1-44), quem transgride é Marta. Ela ultrapassa, se assim se pode dizer, a irmã, não obedecendo aos costumes do luto (3). Sai de casa para ir ao encontro de Jesus, mal tem conhecimento de que estava a chegar.

Abandona o lugar da morte e vai ao encontro da vida. Neste momento, Maria verga-se, refugia-se na conversa de condolências, embrulha-se no luto, enquanto Marta reanima a esperança dos vivos.

Estiveram juntas, apenas, no acto de avisar Jesus de que o seu amigo Lázaro estava doente. O texto diz, exactamente: As duas irmãs mandaram dizer a Jesus... A partir daí, o comportamento não é o mesmo: cada uma toma atitudes diferentes.

De facto, Jesus viera, mas demasiado tarde. Já não havia nada a fazer. Sabiam que “ressuscitar” não era problema para o Amigo. Fizera-o várias vezes, mas imediatamente a seguir à morte. Neste momento – quatro dias depois – já não havia hipótese. Segundo a crença dos judeus, a alma do defunto pairava à volta do corpo até ao quarto dia. Depois desaparecia para sempre. A morte de Lázaro era, pois, irremediável.

Ao abandonar o lugar do luto (a casa ou o sepulcro), Marta viola, ao mesmo tempo, duas normas: a da hospitalidade (para com os judeus que estavam junto delas) e o rito fúnebre.

Neste episódio, é Marta que tem o dom da antecipação. Apesar da demora de Jesus parecer uma traição à sua amizade, falta de interesse por elas, ao saber da proximidade do amigo, não consegue ficar mais tempo junto dos que permanecem na morte. Levanta-se e sai ao seu encontro antes que ele pise os lugares do luto.

As primeiras palavras, como não podia deixar de ser, são de censura, de acusação, ainda que velada: Se estivesses aqui, meu irmão não teria morrido. Não lhe pergunta a razão da demora, bem sabe que foi porque não quis. E continua: mas mesmo agora, eu sei que tudo o que pedires a Deus, Ele te concederá.... Não é um pedido, é uma oração inacabada, uma oração impossível de ser formulada. Manifesta, no entanto, que acredita que Jesus está em Deus e Deus em Jesus (cf Jo 10, 38: ficai sabendo que o Pai está em mim e eu no Pai).

Teu irmão ressuscitará – diz-lhe Jesus.

Olha a novidade – responde-lhe Marta. Sei isso perfeitamente, desde a minha juventude. Aliás, estou farta de ouvir repetir essa frase a todos os que vêm fazer-nos companhia. Eu sei que ele ressuscitará no último dia.

Ao dizer eu sei, ela mostra que conhece, sem hesitações, a tradição judaica sobre a ressurreição dos mortos, mas não era esse tipo de consolação que esperava dele, pois para ela, neste contexto, não passava de uma banalidade. Da boca dos outros, aceitava; dele esperava mais, muito mais.

Jesus acrescenta: Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra viverá. E quem vive e crê em mim, jamais morrerá. Acreditas nisto?

Os olhos do coração de Marta abrem-se e descobre que o último dia está na sua frente: Jesus. A vida e Ele são a mesma verdade. O milagre aconteceu! Depende da fé de cada um abrir-se a ele. Basta passar da aceitação doutrinal impessoal à convicção profunda, emocionante, à adesão incondicional do crente.

Marta já não pensa em Lázaro. o Deus humanado à sua frente e não hesita: Sim, Senhor, eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus, aquele que devia vir ao mundo. O eu sei da tradição já ficou para trás. Agora, é Eu creio e esta fé move todo o seu ser para a novidade que vê: Tu és o eleito (o Cristo), o Filho, o Deus incarnado. Este é o âmago, o núcleo central da fé, da minha fé. Não preciso de mais.

De facto, parece não precisar porque ao confessar a sua fé, vai imediatamente anunciá-lo. Tem de ser dito a toda a gente. A partir de agora, para Marta, Maria é todo o povo.

Diz-lhe baixinho: o Senhor está aqui e chama-te. Ele não a chamou. Marta é que sente a urgência de tirar Maria do ambiente da morte e sabe que somente uma convocação pessoal a pode demover, a pode levar à vida. Quer que a sua irmã veja o que ela vira: a ressurreição e a vida, a eternidade do último dia e o hoje da salvação. Maria levanta-se e vai. Marta, movida pela fé, fez o que tinha a fazer: convocar. O resto pertencia ao eleito, ao Filho de Deus, ao Deus humanado.

Marta é a única a confessar a fé em Jesus numa tríplice dimensão. Nos sinópticos é Pedro, embora nunca use a dimensão tríplice pós-pascal (Mt 16, 13-20 e par). Por antecipação, ela confessa a fé da Igreja, ela proclama o Kerigma Pascal. A sua fé move mesmo montanhas (cf Lc 17, 6): a montanha do tempo, a montanha da tradição, a montanha a morte.

No capítulo seguinte (Jo 12, 1-11), é Maria de Betânia que actua. Testemunha, para mim, mais uma vez, a presença muito forte das mulheres na comunidade do Discípulo amado. Quem escreve o 4º Evangelho mostra-nos uma comunidade edificada (cf. Ef 4,12) pelas mulheres (Jo 2,1-11; 4; 11,27; 12,1-11; 20,11-18) e este texto, nomeadamente, é a confirmação disso mesmo.

Estamos no princípio do fim e, como no princípio do começo (Jo 2,1-11: bodas em Caná), é uma mulher que intervém, neste caso, com um gesto profético:

  • Enquanto os outros põem em dúvida a autenticidade de Jesus, ela confessa publicamente o seu amor e entrega incondicionais (serviço), derramando o perfume nos Seus pés e enxugando-os com os seus cabelos.
  • Enquanto os outros a criticam, Jesus interpreta o seu gesto: Deixai-a, ela pressente que não haverá tempo nem lugar para os unguentos habituais na minha sepultura; ela anuncia a minha ressurreição.

João Paulo II, na encíclica sobre a Eucaristia (4), ao evocar «a simplicidade e simultaneamente a dignidade com que Jesus, na noite da Última Ceia, instituiu este grande sacramento», lembra «um episódio que, de certo modo, lhe serve de prelúdio: é a unção de Betânia. Uma mulher, (...) derrama sobre a cabeça de Jesus um vaso de perfume precioso, suscitando nos discípulos (...) uma reacção de protesto contra tal gesto (...). Mas Jesus fez uma avaliação muito diferente: (...) Ele pensa no momento já próximo da sua morte e sepultura, considerando a unção que Lhe foi feita como uma antecipação daquelas honras de que continuará a ser digno o seu corpo mesmo depois da morte, porque indissoluvelmente ligado ao mistério da sua pessoa» (n. 49).

Para além deste aspecto fundamental do texto, é importante referir outros circunstanciais que ajudam à compreensão global:

  • É a 3ª Páscoa mencionada pelo 4º Evangelho, durante a vida pública de Jesus. Nas duas primeiras, apresenta a Páscoa como a festa dos Judeus (2,13; 6,4). Nesta última, apenas diz a Páscoa (12,1). Não se trata de mais uma festa dos Judeus, mas da Sua Páscoa, da Sua passagem. Chegou a Sua Hora (12,23; 13, 31-32; 17,1.5) e Maria de Betânia pressentiu isso.
  • A crítica dos discípulos (na pessoa de Judas) ao gasto material de Maria, como manifestação da sua entrega, da sua fé no Mestre, revela que nada tinham compreendido da abundância de vida que Jesus viera anunciar (cf. Jo 10,10) nem sabiam ler os sinais da sua própria cultura. Dizer que a casa inteira ficou cheia do perfume (v.3), significava, na literatura hebraica, que estavam em contacto com uma vida verdadeira, plena. Dizer que o perfume podia ter sido vendido para se dar o dinheiro aos pobres era o argumento de quem via nos pobres, unicamente, o pretexto para esconder a sua cobiça porque, quando de pobres se tratava efectivamente, 200 denários – quantia necessária – era demasiado e não quiseram gastá-la (Mc 6, 37); argumento para quem os únicos valores da vida são apenas os materiais (cf. Mt 6,19-21.24) e não entende nada da vida dada por amor.

4. Finalmente, é uma mulher que, em primeiro lugar, recebe o mandato de anunciar a Boa Nova da Ressurreição (Jo 20, 1-18): Vi o Senhor! A morte não teve poder sobre Ele e ela percebeu – ao ser chamada pelo próprio nome (cf. Jo 10, 3) – que a morte já ficou para trás, que à sua frente estava a Vida e à vida se converteu, à sua frente estava o Amor e ao amor se converteu.

Em jeito de conclusão diria o seguinte: segundo o 4º Evangelho, as mulheres assumem a liderança do início ao termo do ministério público do Nazareno. Testemunha que elas foram das primeiras a aceitar, sem reservas, a interpretação alternativa da Lei e do Templo trazida por Jesus. Elas foram constituídas, por Jesus, como sacerdotes (oferecem a sua vida a Deus, aos outros), como profetas (são agentes de evangelização) e entenderam que não podem deixar-se prender pelos critérios deste mundo porque estão a caminho de outro Reino que tentam edificar, aqui e agora.

Os tempos mudaram. A situação da Igreja mudou: de Igreja perseguida passou a Religião oficial do Império. Nesta passagem, também mudou o lugar da mulher na Igreja. Não foi sempre assim, como está hoje.

A cultura influenciou de tal modo a compreensão da mensagem evangélica que, na segunda geração, as mulheres já eram relegadas para o “seu” lugar de subalternas. É pena que, hoje, a Igreja não se apoie na cultura actual para se desfazer dos acidentais, acumulados ao longo dos tempos, e que escondem a verdadeira originalidade cristã: perante Deus, não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher.

O primeiro livro que li, de Carlos Mesters, Por detrás das palavras, é uma parábola interessantíssima sobre a Bíblia. Comparava-a a um grandioso monumento que a poluição, a erosão, as tempestades e a maldade de muitos, destruíram em parte e desfiguraram. É preciso o trabalho paciente, lúcido e instruído para fazer a reconstrução e restituir-lhe a beleza original. Diria o mesmo em relação às mulheres na Igreja: não precisamos de fazer ouro, mas mostrar o brilho que lhe é próprio, a exaltação dada por Jesus às mulheres do seu tempo.

Junho 2007
Maria Julieta, rscm

 

(1) R.E.Brown, A Comunidade do Discípulo Amado, EP, São Paulo, 1984, p. 193.

(2) Não a “sua” mãe. Jesus, segundo o 4º Evangelho, nunca a trata por mãe, mas sempre por mulher, isto é, não figura enquanto sua mãe biológica, mas como quem aderiu à sua mensagem.

(3) Durante um certo tempo, só podiam sair de casa para ir ao sepulcro.

(4) Ecclesia de Eucharistia, Quinta-feira Santa de 2003.

INICIATIVA:
Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL)
Instituto São Tomás de Aquino (ISTA)
www.triplov.org

Patrocinadores:
Câmara Municipal de Lamego
Junta de Freguesia de Britiande
Dominicanos de Lisboa

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