A Alquimia, se resumida como a “química dos Árabes e da Idade Média” (Camacho, 29), dá-nos dois importantes pontos base para o tema desta dissertação, a Lenda da Princesa moura – Ardínia, lendária figura feminina, protagonista da estória que ainda hoje tem presença na memória dos lamecenses, em especial os mais antigos, e que se desenrola em pleno período medievo. Estamos, portanto, perante um cenário de ocupação árabe. Assim, e segundo Costa (1977; 75), a 29 de Novembro do corrente ano ter-se-ão passado 950 anos desde que Fernando, o Magno, libertou a cidade da posse dos mouros.
Apresentados que estão os pilares, propomos uma viagem pelas lendas, uma reflexão através da análise de uma das versões existentes da lenda (da princesa Ardínia) intentando algumas conclusões. Alguns dos “acrescentos” que ao longo dos tempos ganharam forma e conferem mais encanto a esta serão também superficialmente abordados.
De mencionar que esta lenda foi já, por algumas vezes, tema de obra de outros profissionais, desta forma, não é nosso objectivo abordá-la cientificamente, ou de modo a compreender quais os factos mais ou menos reais, mas antes a sua análise sob outros pontos de vista tentando aglomerar alguns dos contributos já dados por outros, principalmente por Alexandre Parafita, que ao estudar “A Mitologia dos Mouros” na região de Trás-os-Montes (considerando para tal os concelhos de Bragança e Vila Real), deu significativo contributo também a toda a região duriense, na medida em que as realidades não se apresentam em extremos tão díspares quanto à vista desarmada possam parecer, e é na plataforma deste seu contributo que apoiamos a nossa pesquisa.
Com o tema pretende-se exaltar uma cultura, um património característico e intrínseco que nos são muito próprios, quer ao nível regional quer nacional.
Trata-se de uma das lendas associadas ao Castelo de Lamego e Costa (1977; 593, 594) narra-a do seguinte modo:
“(…) Mais lendária é a romântica figura da princesa Ardinga, filha do emir de Lamego a qual, impressionada pela fama das façanhas do cavaleiro cristão D. Tedon, teria escapado do palácio, cerca de 995 (1), e acompanhada de uma colaça, chegou ao mosteiro de S. Pedro das Águias [em Tabuaço]. Era lá abade o monge Gelásio e ouvidas as pretensões da bela moura respondeu-lhe que, para ser esposa do cavaleiro, tinha primeiro de abraçar a fé de Cristo. Ela assim o fez e recebeu o baptismo. Ao dar fé da fuga da filha, o pai, de nome de Alboazan, foi-lhe na peugada, surpreendeu-a «abscondite et suffocavit illam» (2). Ao ser-lhe narrado o sucedido, por Paulo Rodrigues, D. Tedon renunciou ao casamento, mudou o mosteiro para outro lugar e pereceu heroicamente em combate contra os mouros no lugar de Paredes”(3).
Conhecida que está a trama essencial desta estória passamos aos contornos que o imaginário popular ao longo dos tempos lhe foi acrescentando, de modo a que nenhum pormenor ficasse por explicar e que elevam mais ou menos os distintos protagonistas.
Para explicar a paixão mútua entre uma moura e um cristão, pois tal relação seria como unir o Mal ao Bem, são lançadas algumas justificações, as quais, num cenário real, se poderiam verificar distinta ou cumulativamente, e que passamos a enunciar:
- Beleza sem igual da princesa; (4)
- Princesa fascinada pela bravura do cavaleiro; (5)
- Ardínia teria libertado D. Tedo das masmorras mouriscas após este se tornar prisioneiro de Alboazan, devido a traição de um de seus vassalos. (6)
Os anteriores pormenores evidenciam, também, alguns dos potenciais cenários que poderão ter propiciado o encontro entre os dois protagonistas. No entanto, Parafita (2006; 87), na sua “Mitologia dos Mouros” aprofunda muito mais a questão da relação amorosa impossível entre mouros e cristãos, referindo que (a relação amorosa) se revela, na maioria das incidências por ele estudadas, “uma verdadeira utopia”. E que “no conjunto de relatos identificados (…), combinam-se duas circunstâncias. Por um lado, a moura mantém-se fiel ao seu ideal étnico-religioso e uma relação construída nesse quadro. Por outro, [e no qual se enquadra a presente lenda], a moura começa por ceder ao desafio da relação amorosa com um cristão, para logo defrontar um obstáculo incontornável, geralmente simbolizado pela figura opressora (…) [e] intransigente do pai [mouro], [esta figura representação de] entidade anticristã, (…) [apresenta-se como] o principal obstáculo a uma relação amorosa” entre elementos destas distintas religiões.
No entanto e, por a sua história ter terminado em fase tão inicial e de modo abrupto, de Ardínia diz-se ter-se transmutado numa moura encantada, que em noites de lua cheia há-de chorar, e que em dias de nevoeiro se se avistar uma pomba branca a rondar o castelo de Lamego tratasse pois do espírito de Ardínia. Neste sentido, citamos, mais uma vez, Parafita (2006; 121) que ao fazer referência das mouras encantadas as evoca “como a alegoria de um ser que sobrevive, penosamente”.
Com certeza é uma lenda de contornos algo indefinidos e, se os protagonistas, sem qualquer dúvida foram figuras reais, já da estória difíceis são os detalhes que se sabem certos. Contudo esta observação não é de todo nova, uma vez que “a existência de uma lenda é, geralmente, uma consequência da fragilidade da história ou dos documentos que a fundamentam (7). Por isso, nasce [quase] sempre num espaço nebuloso da história, procurando complementá-la ou justificá-la, num quadro de representações do imaginário. [E] quanto mais ténues são as referências históricas sobre um determinado facto de contornos marcantes ou perversos, mais facilmente o imaginário lhe dá corpo. [Deste modo] se explica que no norte interior do País possa haver maior densidade de lendas de mouros do que no sul, onde os muçulmanos tiveram durante séculos, presença dominante, permanente e generalizada” (Parafita, 35).
Num dos espaços nebulosos da historiografia encontra-se indubitavelmente a denominada Invasão Muçulmana. Este “fenómeno persiste mal documentado, rodeado de grande controvérsia, ambiguidade e mistério, sobretudo pela incapacidade de ultrapassar a relação promíscua entre relatos históricos e relatos lendários que nele se intercruzam” (Parafita, 21).
À Invasão respondem os cristãos com a designada por Reconquista Cristã (8), sendo que para a conflitualidade entre este dois povos contribuíram ambos. Se por um lado os cristãos orquestravam uma intoxicação “visando criar condições favoráveis para a chamada Reconquista Cristã, não menos terá contribuído a radicalização das lutas e muitas atrocidades, historicamente fundamentadas, que alguns responsáveis militares muçulmanos protagonizaram ou fomentaram” (Parafita, 23).
Se de facto houve uma campanha cristã, de forma a descredibilizar ou a associar os mouros ao Mal, esta estaria, sem dúvida “facilitada pelo peso estratégico dos mosteiros, de onde irradiava toda a actividade intelectual da Idade Média” (Parafita, 93).
Esta possível (re)acção cristã ganha peso quando ao analisarmos algumas das versões da lenda encontramos quase sempre a indicação de uma vontade de reconversão da figura mourisca ao catolicismo. Esta indicação é plena quando analisada a narração da lenda por Almeida (1974; 73) (9). Portanto, verifica-se com assiduidade nos relatos de lendas de forte componente árabe que os mouros são considerados muito perversos, ao passo que a malvadez dos cristãos é frequentemente passível de justificação, uma vez que a intenção dos seus actos era nobre (10), ou seja, a reconversão dos infiéis.
Mas, voltemo-nos a centrar um pouco mais na figura feminina. Este elemento opera grande parte das vezes como figura da tentação, figura do diabo, componente de estórias que coloca à prova a resistência ou o carácter do herói, sendo que os tesouros ocultos a alcançar raras vezes terão outra natureza que não a de ordem moral e (ou) espiritual.
As lendas são, assim, uma “herança espiritual [que é] rica como nenhuma outra, porque tem o valor da eternidade, vive geralmente escondida nos meios mais humildes, longe das urbes e das bibliotecas, das multidões e da velocidade, do progresso e da confusão” (Marques citado in Marado, 8). Tratam-se de um dos muitos aspectos que compõem a nossa cultura e esta “é a expressão da própria vida dos homens (…), a história das relações do homem com o meio ambiente em que vive, com os materiais que encontrou e dominou para conquistar a sua sobrevivência e também o imaterial com que vai sonhando e suavizando as suas mágoas, as suas desilusões…” (Vaquero in Marado, 7). |