Esta lenda existe também em Cárquere. Sem tirar nem pôr: uma mulher, aflita com um gigantesco sardão que a pretende devorar, atira-lhe à boca os novelos de linha com que fiava. Em lembrança, pende da parede de uma escura sala da igreja de Santa Maria de Cárquere a pele curtida do tal sardão, como mostramos nas fotos. O que as fotos demonstram é que o animal, atendendo às enormes dimensões e ao facto de ter o dorso coberto por escamas ósseas, só pode ser um crocodilo ou um jacaré. Ora os Emydosauria não fazem parte da fauna europeia actual. Já fizeram, já tivemos tartarugas marinhas e crocodilos no Tejo. Parece incrível, não é verdade? Porém alguns achados fósseis hão-de ter sido encontrados para a ciência o afirmar. Aconteceu isso in illo tempore, quando a Terra ocupava uma outra posição, e pelo território correspondente àquele em que hoje Portugal se situa passava o Equador. Porém aquele boneco pendurado no tecto da Senhora da Lapa e o resto da pele na igreja de Santa Maria de Cárquere, por muito que sejam relíquias de religiões antigas ocultas no cristianismo, não remontam a eras anteriores ao Quaternário. São objectos com umas centenas de anos, se tanto.

À margem da lenda aparecem informações segundo as quais certo emigrante, no Amazonas, ou algures, em África, vendo-se na iminência de ser abocanhado por um crocodilo, pediu socorro a Nossa Senhora da Lapa, ou a Santa Maria de Cárquere. Tendo sido ouvidos, embalsamaram os animais e ofereceram-nos às respectivas igrejas. Eu já escrevi sobre este assunto, no Diário de Notícias, a respeito do Paleosuchus (jacaré) da Senhora da Lapa. Receio que essas histórias de emigrantes sejam outras tantas lendas. E no entanto há quem se dê ao trabalho de mandar embalsamar crocodilos para enganar o bom povo que em tudo crê, mesmo em sardões gigantes. Para quê? Uma vantagem no entanto apresenta a aldrabice: os sardões são o mesmo que as serpentes e os dragões no que toca ao imaginário, e nos cultos antigos da nossa terra, outrora chamada Ofiúsa (terra da serpente), desempenhavam o papel de deuses. As relíquias herpetológicas devem ter por objectivo não o deixarem esquecer.