Prêmio ABCA (Associação Brasileira de Críticos de Arte), 2007, como melhor veículo de comunicação de cultura do país

UMA ENTREVISTA COM CLAUDE HAGÈGE

Betty Milan

 Desde os anos 1960, Claude Hagège, francês de origem tunisiana, nascido em 1936 e formado em árabe, chinês, hebraico e russo, percorre o mundo estudando diferentes idiomas. Interessou-se pelo chinês, pelas línguas da África, Oceania e América, bem como pelas da Europa. Além dos seus trabalhos especializados, Hagège escreveu livros para o grande público: La structure des langues (“A estrutura das línguas”), Le français et les siècles (“O francês e os séculos”), A criança de duas línguas, O homem dialogal e Não à morte das línguas – os três últimos traduzidos e publicados em Portugal. Em 1977, foi eleito professor do Collège de France. [BM]

BM O senhor visitou o Brasil. Qual é a língua do país, o português ou o brasileiro?

CH O Método Assimile publicou Português sem dificuldade e Brasileiro sem dificuldade. Quando se analisa uma língua, é preciso procurar muito para encontrar diferenças morfológicas e sintáticas. As diferenças lexicais existem por causa da influência do tupi-guarani no Brasil. Mas, do ponto de vista morfossintático, não existem diferenças, salvo o lugar do pronome pessoal átono, antes ou depois do verbo. Não há diferenças em quantidade suficiente para se falar do português e do brasileiro. Verdade que do ponto de vista fonético as diferenças são consideráveis.

BM Mas será que no longo prazo essas diferenças não podem se tornar significativas? Pergunto isso porque estive recentemente em Portugal e fiquei sabendo que eles lá já não compreendem Camões. No longo prazo, as línguas não vão se separar?

CH Não sou profeta. A evolução das línguas se faz de maneira bastante imprevisível, mas até agora tivemos razão de pensar que a evolução não chegará a uma incompreensão. As diferenças existem há séculos e isso não impediu a comunicação. Verdade que o português do Brasil é mais fiel ao português antigo, porque as vogais continuaram abertas.

BM O Brasil é também um país de imigração, os casamentos entre pessoas de diferentes origens são habituais. Como devem agir os pais que desejam transmitir a sua língua aos seus filhos?

CH Você está falando dos imigrantes?

BM Sim.

CH Quando a gente emigra, a primeira coisa a fazer é pôr os filhos na escola do novo país para que eles aprendam a nova língua. O problema que se coloca é o da conservação da língua de origem. Como linguista, fico desesperado quando esta desaparece por causa da pressão do país de chegada. É uma alegria quando isso não acontece. Tudo depende da força da pressão. Nos Estados Unidos, a pressão é muito forte e este país, que podia ser um dos maiores melting pots – como já o foi no passado –, é um país onde as pessoas de origem vietnamita, lituana, ucraniana, tailandesa perderam a sua língua. As de origem europeia também foram completamente americanizadas. O Brasil é um país de imigração mais recente, e o português do Brasil é uma língua mais tolerante do que o inglês dos Estados Unidos. Isso significa que a língua dos imigrantes pode durar mais no Brasil.

BM Os brasileiros aprendem primeiro o inglês, mas pertencem hoje ao Mercosul. Gostaria de saber se é perigoso para um lusófono aprender verdadeiramente o espanhol. Pergunto isso porque as duas línguas são intercomunicantes e tão próximas que o risco de contaminação existe. Não seria melhor cada grupo se comunicar com o outro na sua própria língua?

CH Sempre preconizei isso. Tomei o exemplo das línguas dos países nórdicos. O sueco, o dinamarquês e o norueguês são tão próximos que são quase a mesma língua. As pessoas de Copenhague falam em dinamarquês com as pessoas de Oslo, que, por sua vez, falam em norueguês com as pessoas de Copenhague. Ou então com as pessoas de Estocolmo, que respondem em sueco. A proximidade entre o português e o espanhol não é tão grande. Mas a sua ideia é boa. Agora, nada impede que um brasileiro aprenda o espanhol e vice-versa. O aprendizado do espanhol é mais importante para um brasileiro do que o do inglês, língua de um povo bem mais distante. A americanização dos brasileiros é um insulto à latinidade.

BM Qual é a importância do português na França?

CH Pequena. Se o português não desapareceu completamente na França, foi porque o governo português ameaçou o francês, dizendo que, se o ensino da sua língua não aumentasse, o inglês passaria a ser mais ensinado em Portugal do que o francês. A ameaça teve algumas conseqüências positivas. Seja como for, o português é ainda uma língua pouquíssimo ensinada na França. Também pelo fato de não termos fronteira com Portugal.

BM O senhor acha que é por causa disso que a língua e a literatura espanholas tiveram maior penetração na França?

CH É uma das razões. Há pouco tempo, fiz para a editora Hachette um mapa das línguas da Europa e procurei mostrar, nesse mapa, o que se passa com as línguas românicas. A gente vê que, além do basco, a proximidade geográfica explica muita coisa. As pessoas que aprendem mais espanhol na escola são as que vivem em Bordeaux, em Perpignan... Infelizmente, nós não temos uma fronteira com Portugal. Para que exista um progresso no ensino do português, é preciso convencer os governantes na França de que o mundo lusófono é imenso, de que não existe só Portugal, mas também o Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Macau... Depois, será necessário convencer os pais de que, ao escolher o português, as crianças estão escolhendo a quinta língua mais falada no mundo.

BM A gente se dá conta de que é pela pressão política que as coisas se resolvem...

CH A pressão política e a econômica.

BM Sete países lusófonos se reuniram e assinaram em 1997 um tratado criando uma comunidade dos Estados lusófonos. O que o senhor acha dessa iniciativa?

CH Trata-se de uma iniciativa excelente. Há um problema, que pode surgir em decorrência da diferença de normas ortográficas. Mas a reunião dos sete países é composta por pessoas conscientes da necessidade de alguns ajustes ortográficos e talvez fonéticos.

BM Algumas universidades americanas dão cursos de inglês falado na Ásia. Isso significa que existem variantes importantes. A preponderância da língua inglesa seria um perigo para a sua unidade? Em outros termos, existe um risco de fragmentação do inglês como aconteceu com o latim, por exemplo?

CH As variantes não-autóctones do inglês são muitas: o inglês da Índia, da Tailândia, Birmânia, Tanzânia, de Uganda... Na África, os intelectuais e a Constituição reconhecem o inglês como língua oficial. A apropriação do inglês por povos que o adotaram na sua Constituição e falam a língua de uma maneira diferente pode constituir um perigo para a sua permanência como língua internacional, mas não é um perigo para a comunicação do dia-a-dia. Ademais, se o inglês tivesse a vocação de se alterar muito, o da Inglaterra e o dos Estados Unidos seriam muito diferentes, e isso não ocorreu. A comunicação entre americanos e ingleses é imediata, como entre portugueses e brasileiros. As relações comerciais e culturais entre os Estados Unidos e a Inglaterra são tão importantes que o inglês é o mesmo e assim será enquanto o comércio perdurar.

BM A globalização é acompanhada pela difusão do inglês. Apesar disso, o senhor sugere que o aprendizado de uma língua, que não o inglês, se dê no ensino fundamental e o estudo do inglês só se faça depois, no ensino médio. Por quê?

CH Verdade que a globalização vai acentuar a presença internacional do inglês... Um dia, nos Estados Unidos, eu estava numa reunião de universitários muito conhecidos e um deles disse: "A globalização somos nós”. Ele não sabia que havia um europeu na sala. O fato é que, sob o pretexto da igualdade democrática, o que se quer é a dominação americana. Minha posição não é a de alguém que é contrário aos Estados Unidos. A segunda língua não deve ser o inglês, desde que tenhamos aceitado a ideia do ensinamento bilíngue precoce. O inglês seria então a terceira língua.

BM Os franceses se esforçam muito para falar uma língua precisa. Trata-se de um mito ou o francês é mesmo mais preciso do que as outras línguas?

CH Lamento, mas a precisão do francês é um mito absoluto. Nenhum linguista dirá que o francês é mais preciso do que as outras línguas. Um dos meus livros se chama O mito da clareza francesa. É óbvio que os grandes escritores franceses são muito claros. Voltaire é claro, Descartes também é. Molière, Racine... são claros precisamente porque o francês não o é. A literatura é uma coisa e a língua é outra. Seja como for, a língua mais clara para qualquer locutor é sempre a língua materna – por definição.

BM Quantas línguas existem no mundo e quantas vão desaparecer?

CH Existem hoje entre 6 mil e 7 mil línguas no mundo. Todo ano desaparecem centenas. Sob a pressão do inglês, mas também de outras línguas, como o francês e o espanhol. É possível que em 2100 só haja uma centena de línguas.

BM E o senhor acha que o século XXI será bilíngue?

CH Na Europa, provavelmente sim. No resto do mundo, eu não sei.

BM E ele será também bicultural?

CH Quem diz bilíngue, diz bicultural.

Entrevista publicada na Folha de S. Paulo em 2/05/1999 sob o título “Geopolítica das línguas”. Figura como “Claude Hagège: As línguas” no livro O século, Editora Record, 1999.

Betty Milan (Brasil, 1944). Romancista, ensaísta e dramaturga. Colaborou nos principais jornais brasileiros e atualmente é colunista da revista Veja. Sua bibliografia inclui títulos como O papagaio e o doutor (1991), Paris não acaba nunca (1996), e Fale com ela (2007). Seus 25 anos de colaboração com o jornal Folha de S. Paulo foram reunidos em dois volumes de entrevistas, A força da palavra (1996) e O século (1999). Contato: bettymilan@free.fr.

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