Prêmio ABCA (Associação Brasileira de Críticos de Arte), 2008, como melhor veículo de comunicação de cultura do país

A América Latina como ficção e a ficção latino-americana

Wilson Alves-Bezerra

 

O que é América Latina? Talvez pudéssemos começar esta conversa falando das dificuldades de nomeação inerentes a este continente. Cesar Fernández Moreno já o fez, nos anos setenta, num volume sobre literatura de uma coleção sob os auspícios da UNESCO, que tratava justamente de discutir a literatura, a arquitetura e a arte do continente. Contava-nos ele de sua dificuldade, pois para ele o termo não poderia ser considerado lingüístico, geográfico nem cultural, pois havia sempre algo que excedia ao critério: fossem os hispânicos nos Estados Unidos, os falantes de inglês, holandês, em meio aos países ditos latinos.

Mapear as origens do termo é outra possibilidade que poderemos perseguir aqui. Tal procedimento tem a vantagem da desnaturalização. Pois se hoje se vai a qualquer enciclopédia ou dicionário, a definição é cabal e o adjetivo latino não é questionado ou sequer historicizado. Vejamos o exemplo da Enciclopédia Larrouse:

“Parte do continente americano colonizada por populações de origem latina (principalmente espanhóis e portugueses). 20.500.000km2, 451 milhões de hab, (latino-americanos)” (Enciclopédia Larousse, 1995: Livro II:254)

A definição do Longman Dictionary é ainda mais simplista: “The countries of South America and Central America, where Spanish and Portuguese are spoken”. Curiosamente o dicionário anglófilo exclui da definição os países e departamentos do Caribe de complexa situação política e lingüística. A definição lingüística mesclada à geográfica, assim naturalizada, tem o efeito de resguardar o próprio território dos Estados Unidos onde, sabe-se, o espanhol é falado.

Um dicionário brasileiro contemporâneo, como o Houaiss, curiosamente, feito a imensa maioria dos brasileiros – exceto os que estão nesta sala – ignora celebremente o que seja América Latina. Não há um verbete dedicado ao tema. Resta-nos apenas a saborosíssima definição, de certa “américa”, com letra minúscula:

“S.f. B 1 qualquer coisa grande, desmedida, fora do comum 2 negócio altamente compensador e lucrativo. ETIM top. América por meton.” (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2004:187)

O Diccionario de la Real Academia Española, embora também não traga o verbete Latinoamérica, traz o verbete “latinoamericano”, que diz o seguinte: “1. adj. Dícese del conjunto de los países de América colonizados por naciones latinas: España, Portugal o Francia.”. Ou seja, diferentemente do Longman, inclui a França. Mas, sejamos justos, traz também seu verbete definindo América. Vejamos:

“América.1. n. p. V. avestruz, piña, tifo de América.

hacer alguien las Américas.

1. fr. fig. Enriquecerse un extranjero en América.” (Diccionario de la Real Academia Española, edição eletrônica)

Nenhuma novidade, América como a terra do avestruz, do abacaxi e do tifo, onde se pode enriquecer. Passemos adiante. Talvez o melhor seja continuar perseguindo o termo, agora não mais entre os dicionários, mas em sua origens históricas, como forma de topar com algo que permita conferir-lhe outra espessura. Alguns mais ansiosos poderiam dizer que seria a única forma de que a América Latina encontrasse sua identidade, como se pudéssemos alcançar o mítico manancial de onde verte nossa verdade.

Entretanto, nada mais distante da realidade. A origem do termo nós a encontramos na segunda metade do século XIX, em uma língua imprevista. Batizou-se esta porção indefinida de terras como Amerique Latine, e tal nomeação deveria incluir México, América Central e América do Sul (cf. Phelan, p. 19). O autor desta nomeação é provavelmente o visionário ideólogo da política exterior francesa, Michel Chevalier (1806-1879), que vislumbrou também um canal transoceânico que atravessaria o Panamá. Seu projeto convergiu com o de Napoleão III, à frente da segunda nação mais rica do mundo na década de 1850, que havendo atingido o máximo de seu desenvolvimento econômico, lança um olhar para além mar e vê, no México, um território propício para a expansão francesa. Chevalier prepara o que John Phelan chama de “programa geoideológico” francês, o qual “podía servir como uma racionalización para la expansión económica de Francia, tanto em América com en el Extremo Oriente.” (Phelan, p. 6).

Para Chevalier, a Europa separava-se em três sub-grupos raciais, os germânicos e anglo-saxões ao norte; os latinos ao sul; e os eslavos na porção oriental. Tais grupos eram liderados por Inglaterra, França e Rússia. Como nos aponta Phelan, não é difícil perceber que tal divisão se reproduziria na América: anglo-saxões ao Norte, Latinos ao Sul. Estavam postos os inimigos a ser combatidos, estava posto o quadro:

“En la lucha triple por participar en la expansión de mercados mundiales, los anglosajones y los eslavos amenazaban expulsar a Francia tanto de Oriente como de América. (...) Para impedir este funesto prospecto, Chevalier tenía una respuesta categórica. Francia debía reafirmar de una manera vigorosa que la hegemonía sobre el mundo latino le pertenecía desde los tiempos de Luiz XIV” (John Phelan, 1979, p. 7)

O plano de Chevalier incluía a construção de uma muralha no Rio Grande para impedir o avanço dos norte-americanos. A carta de instrução de Napoleão III ao General Forey, de 3 de julho de 1862, expõe claramente a visão francesa da situação:

“Es de nuestro interés que la república de los Estados Unidos permanezca poderosa y próspera, pero no es en nuestra ventaja dejarla que se convierta em el amo del Golfo de México, para de ahí dominar Antillas y Sudamérica y de esa manera convertirse en el único administrador de los productos del nuevo mundo. (...) Si, por el contrario, México mantiene su independencia y mantiene su integridad territorial y si se establece un gobierno estable con la asistencia de Francia, nosotros habremos restituido a la raza latina del otro lado del océano, tanto su poder como su prestigio. Habremos garantizado la seguridad de nuestras colonias en las Antillas tanto como las de España. Habremos establecido nuestra poderosa influencia en el centro de América; y esta influencia nos ayudará para crear inmensos mercados y para procurarnos materias primas esenciales para nuestra industria.” (Napoleón III, carta al General Forey, 3 de Julio de 1862 apud Phelan, 1979, p. 10)

Se o projeto napoleônico econômica, política e militarmente malogra no México, o mesmo não se pode dizer do Oriente. O Canal de Suez é inaugurado em 1869, unindo Mar Mediterrâneo, o Golfo de Suez e o Mar Vermelho.

Entretanto, sabemos, a América herda o legado de “América Latina”, e com ele o anti-(norte)americanismo. Não que se não tenha havido e que não haja ainda por parte dos Estados Unidos motivações políticas e econômicas para fomentar este anti-americanismo dos povos do sul. Mas é preciso também notar como este é o momento histórico de seu nascimento, ideologicamente sustentado pelos franceses. Não é difícil para qualquer um de nós admitir também que, no plano da cultura, como sabemos, historicamente foi-nos sempre simpática a idéia da influência francesa, mesmo que para nós ela já não esteja mais diretamente ligada à idéia da latinidade.

Para levar um pouco mais adiante este relato, poderíamos ir ao outro extremo do continente onde, exatamente por esta época, um país que há pouco se tornara independente do jugo espanhol, a Argentina, pela pluma do intelectual que se tornaria presidente, Domingos Faustino Sarmiento, clamava que a cultura européia jorrasse como um manancial sobre deserto e bárbaro solo argentino:

“De eso se trata: de ser o no ser salvaje. (...) Después de la Europa, ¿hay otro mundo cristiano y civilizable y desierto que la América? ¿Hay en la América muchos pueblos que estén, como el argentino, llamados por lo pronto a recibir la población europea que desborda como el líquido en un vaso?” (Sarmiento, 1845:31)

Richard Morse (1998 apud Perrone-Moisés, 2007) observa que os latino-americanos são os únicos a auto-denominar-se bárbaros, termo que etimologicamente designa o estrangeiro, o outro.

Eis aqui as duas dimensões das quais gostaria de partir, ao tratar da dita América Latina, a dimensão de um olhar estrangeiro que projeta sobre a grande porção de terras a sua expectativa – desde o olhar míope-imaginativo de Colombo que acreditava haver chegado às Índias, e vê maravilhas a cada palmo, ao olhar de Napoleão III, que vê uma possibilidade de expansão de um império e que nos nomeia América Latina. Refiro-me a essa dimensão da alteridade que os intelectuais e escritores contingencialmente vão tomando como sua, pois nos constituímos como nações e como sujeitos nesta língua.

Ver como a noção de ser americano vai avançando ao longo do tempo surpreende-nos como este olhar europeu nos constitui, de modo radical, como em Sarmiento, através desta identificação irrestrita à cultura francesa. E também no seu contrário, como na busca essencialista de uma identidade latino-americana, tipicamente local, que redunda, ao longo do século XIX, no folclórico.

Outras visões há, certamente, como a de Borges, ainda na primeira metade do século XX, a burlar-se do culto do tipicamente nacional na literatura: “El culto argentino del color local es un reciente culto europeo que los nacionalista deberían rechazar por foráneo” (Borges, 1932:270). Curiosa contradição, pois é este mesmo Borges que numa conferência no College de France, em Paris, em janeiro 1983, dirá “Sou um europeu nascido no exílio.” (Borges, 1983 apud Perrone-Moisés, 2007:31)

Seria possível percorrer as teorias que ao longo do século XX dito latino-americano tem buscado dar conta desta dimensão da alteridade no intelectual e na literatura locais. Talvez a que mais tenha circulado seja a do uruguaio Ángel Rama, com sua noção de transculturação, mais propositiva que descritiva, que buscava constituir literária e culturamente uma América Latina para além das divisões lingüísticas. O mérito de seu projeto não é pequeno; suas limitações tampouco o são. Das quais talvez a que nos toca mais diretamente é um certo empobrecimento do literário, que fica submetido a uma visão que é mais ideológica que crítica. Que limita a literatura a um ponto de culminação de um projeto que é na verdade político. Dito por um admirador seu, num congresso dedicado a ele, estas palavras de Lenhardt talvez sejam mais eloqüentes e precisas que quaisquer outras:

“O estatuto da noção de América Latina no discurso de Rama pode ser analisado, portanto, sob três aspectos: a América Latina é uma tarefa; uma tarefa de vanguarda; e fundamentalmente ligada ao trabalho dos intelectuais.” (Lenhardt, 2001: 258)

América como tarefa intelectual de vanguarda, esta é mesmo a missão que Angel Rama parece ter assumido para si, ao circular pelo continente proferindo palestras, correspondendo-se com outros intelectuais, como brasileiro Antonio Candido.

“La misma América Latina sigue siendo um proyecto intelectual vanguardista que espera su realización concreta.” (Rama, Ángel apud Lenhardt, 2001:258)

Essa visão que é a de Rama, nós a encontramos também no escritor mexicano Octavio Paz, em um livro fundamental sobre o México, El laberinto de la soledad::

“América no es tanto una tradición que continuar como un futuro que realizar. Proyecto y utopía son inseparables en el pensamiento hispanoamericano, desde fines del siglo XVIII hasta nuestros días.” (Paz, Octavio. El laberinto de la soledad, 261-2)

Talvez eu mereça a fogueira pelo que vou dizer, mas é preciso admitir o quanto as palavras de Angel Rama e Octavio Paz, tão coincidentes em seu afã idealista, romântico, realizador, nos soam tão napoleônicas neste começo de século XXI. Este grande projeto chamado América que vai se cumprir, nas mãos hábeis de intelectuais como eles, revela sua faceta menos nobre em nossos tempos tão cínicos.

América Latina como projeto intelectual. América Latina como uma ficção francesa. A estes dois pólos chegamos pelo trajeto proposto. Certamente não estou aqui defendendo a idéia de que a América Latina não existe, embora tal idéia seja algo sedutora, neste momento histórico em que as nacionalidades passaram a significar tão pouco. O que quero interrogar é de que forma a literatura produzida no século XX nestas terras inomináveis, lida com este processo de impossibilidade de existência essencial. Quero dizer, em que medida, a narrativa melhor lograda do continente pode ser tomada como resposta a esta pergunta que no plano das ideias articuladas nas ciências humanas tem historicamente oscilado entre o adesismo irrestrito à Europa, o culto ao que é local, e o projeto idealizador de uma cultura homogênea que seria o resultado feliz do encontro entre os elementos europeu, indígena e africano.

Certamente, nos últimos tempos, novas respostas têm sido ensaiadas no plano teórico, que consideram a alteridade como constitutiva, como as noções de hibridismo (Cornejo Polar, 1999), pensamento liminar (Mignolo, 2000), entre outras. Entretanto, não é meu propósito aqui discuti-las, inclusive pela complexidade que isso implicaria, que excede ao tempo desta pequena fala. O que proponho é pensar, como já disse, se a literatura produzida nestas inomináveis terras, ou mesmo produzida no ultramar ao longo do século XX chegam a constituir uma certa América. No que toca a esta América que se mostra toda coquete ao continente europeu, não é fácil perceber que, como fenômeno editorial, mercadológica e estrangeiramente nomeado boom de la narrativa latinoamericana dos anos 50 e 60 é que coloca finalmente a narrativa deste continente em circulação pela Europa e, ironicamente, no próprio Continente.

Ángel Rama – embora não se refira explicitamente ao boom – aponta tal momento como sendo de florescimento da narrativa latino-americana, na qual a grande narrativa européia é lida pelos americanos, encontrando este um modo de narrar – em primeira pessoa – que estabelece um lugar para o elemento local numa forma esteticamente interessante.

Creio que limitar-nos à noção de boom seria empobrecedor, pois o que este termo inglês revela é justamente um fenômeno editorial, altas tiragens, sucesso de público, que inclui autores como Juan Rulfo, Juan Carlos Onetti, Gabriel García Márquez, Jorge Luis Borges, Mario Vargas Llosa, José Donoso, entre outros. Talvez o mais correto seja considerar o boom como o fenômeno comercial, que é ao mesmo tempo causa e efeito de colocar uma narrativa vigorosa em circulação. Sem a grande produção narrativa, que já existia, não haveria boom nenhum. Mas tampouco sem o boom, sem a empreitada comercial, talvez tantos bons autores não tivessem entrado em massiva circulação. Pois, como brasileiros, precisamos admitir, que são estes os autores que, até hoje, estão em nossas livrarias, sendo poucas e meritórias as exceções cronologicamente anteriores aos anos 50.

Já a noção de transculturação de Rama peca por excluir do processo que se dá por esta época, autores urbanos como Julio Cortázar, cujo vigor narrativo, para quem o elemento americano não é certamente o principal, muito embora em sua releitura dos contos de Quiroga tenha restado algo da selva americana. De igual maneira, o critério de Rama exclui narradores do começo do século, para os quais questões interculturais são fundantes de grande filão de suas obras, como é o caso do próprio uruguaio Horacio Quiroga, cujos contos de Los desterrados, livro de 1926, passam-se na tríplice fronteira Brasil-Argentina-Paraguai, e mostram a tensa relação entre guarani, espanhol e português. Ou mesmo o brasileiro Mário de Andrade, em seu fundamental Macunaíma.

O boom e a transculturação são certamente conceitos válidos, que dão conta de realidades distintas. E embora toquem em pontos convergentes destas realidades, terminam por deixar escapar algo. Algo de que eu gostaria de tratar.

É preciso explicitar que não se trata somente de que os escritores americanos lêem os europeus e fazem em sua literatura, a partir de um elemento cultural autóctone, um compósito literário sui generis. Ou tampouco se trata de que a literatura latino-americana passa a existir porque os europeus passam a lê-la traduzida e a reconhecê-la, embora isso também tenha sua importância, o reconhecimento.

 Certamente a literatura de Joyce e Kafka está presente na escrita de García Márquez, e de Juan Rulfo. Mas é preciso dizer que os americanos lêem os norte-americanos, como Ernest Hemingway, Edgar Allan Poe – ao menos desde Quiroga; Faulkner, a partir de García Márquez, Juan Rulfo e Juan Carlos Onetti. E, o principal, que os americanos lêem-se a si mesmos: Há menções a autores brasileiros como Clarice Lispector, Osman Lins e Haroldo de Campos na obra narrativa de Julio Cortázar, [1] além de um conto dedicado a Bioy Casares. E, como o diz claramente o chileno José Donoso, a partir do fenômeno do boom, os escritores de todo o continente passam a se freqüentar e a se encontrar, em territórios diversos, o que possibilita um maior intercâmbio cultural.

Um exemplo disso é que, diferentemente do que em qualquer outra época anterior da história das letras deste continente inominável, vemos nos diários do peruano José María Arguedas, desfilarem seus ódios e amores literários: Entre os ódios, o mexicano Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez, entre os amores, Guimarães Rosa e Ángel Rama. O que é absolutamente diverso do que se vê no caso de um autor de uma geração anterior, como o argentino Adolfo Bioy Casares. Em seus diários íntimos– recolhidos postumamente em Descanso de Caminantes – nos assombramos ao perceber que tanto seus amores (Borges) quanto ódios (Quiroga, Roberto Arlt) são do âmbito da paróquia. Caso curioso para um autor cosmopolita como Bioy Casares, que termina ignorando seus contemporâneos.

Assim, ainda numa aproximação extraliterária, seria preciso reconhecer que literariamente, o território americano vai ganhando espessura e existência, em termos de produção narrativa, a partir do momento em que os autores passam a conhecer-se. Não estou aderindo à idéia de sistema literário de Antonio Candido, a qual tem por objetivo último a confirmação de uma literatura nacional. A circulação internacional entre autores, livros, contos serve, na presente reflexão, justamente para mostrar como se supera o nacional, e passa-se a escrever grande literatura. E note-se, escrever literatura nestas ou em outras terras mas, em grande medida, nas línguas destas terras. Pois não se pode desviar do fato que a grande obra narrativa de Julio Cortázar é escrita em Paris, onde o autor escolheu morar a partir dos anos 50 – estando ambientada ou não em Buenos Aires, mas que esta estabelece um vínculo com a obra de seus precursores, como o uruguaio Quiroga, o norte-americano Edgar Allan Poe etc.

É deste movimento que tem seu início no começo do século XX, para datá-lo de alguma forma, com a circulação de autores como os uruguaios Felisberto Hernández, Horacio Quiroga pela Argentina e Brasil, e logo Monteiro Lobato pela Argentina, que vai permitindo que esta literatura dê-se noutros pólos para além dos eixos Argentina-França, Brasil-França, e se criem outros nexos. Não podemos nos esquecer como o primeiro mandamento do decálogo de Quiroga nomeia entre seus deuses literários “Poe, Kipling, Maupassant, Tchékhov”, um contista norte-americano, um inglês nascido na Índia, um francês e um russo. A superação do nacionalismo cultural, que permite a leitura de autores de línguas e culturas diversas, como no caso de Quiroga, resulta numa produção narrativa que não está de modo alguma comprometida com a realização intelectual do projeto latino-americano, mas que traz, ainda assim, discussões riquíssimas sobre os encontros culturais no Cone Sul do continente, além de seus não pouco logros estéticos.

Finalmente, gostaria de dizer que se cria um continente, mas que esta criação não é deliberada, planejada, como a Amerique Latine, de Napoleão III, ou a Latinoamérica de Octavio Paz e Angel Rama. Cabe-me dizer que a América Latina, se ela existe literariamente, não é como fruto de um manifesto, ou de uma teoria, e sim, ela é resultado de uma poética. Ela é efeito de criação artística coletiva, contingencial, da circulação de poemas, contos, romances, que puderam ir criando quase silenciosamente um vínculo entre os habitantes destas terras ainda grandemente iletradas.

Defendo que não se trata mais de propagandear um grande projeto coletivo, de uma identidade nacional ou continental. Qualquer identidade se ampara na diferença extrema, o que em nosso caso seria pueril, pois nossa cultura é também européia, além de indígena, africana, norte-americana; tampouco somos a soma homogênea destas influências. De modo que nos dissolveríamos a nos mirar em espelhos partidos, buscando alguma unidade. Tampouco se pode cair na mistificação borgiana de que no debemos temer y que debemos pensar que nuestro patrimonio es el universo (Borges, “El escritor argentino y la tradición” (p. 273)). Está-se no mundo, nas terras inomináveis de América, com uma tradição interrompida por uma contingência históricas, por colonizações sucessivas, políticas, econômicas, culturais.

Nosso patrimônio é a arte que se pode criar a partir deste lugar, em nossa conjunção histórica peculiar, em nosso limite e em nossa contingência. Não há porque idealizar qualquer América possível, futura ou pretérita. Esta ficção não tem cabida. Entre a América Latina como ficção e a ficção latino-americana, eu sem dúvida fico com a segunda. Pois foi só nesta que me coube acreditar.

NOTA

1. Em Un tal Lucas, Haroldo de Campos aparece como personagem de Cortázar; a epígrafe do conto “Anillo de Moebius” do livro Queremos tanto a Glenda é de Perto do Coração Selvagem, de Clarice Lispector; no livro Los autonautas de la cosmopista, há uma citação, à maneira de epígrafe, de Avalovara de Osman Lins.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BORGES, Jorge Luis (1932). “El escritor argentino y la tradición” in Obras Completas [Discusión]. Buenos Aires: 1996

CHIAPPINI, L. & AGUIAR, F (1993). (orgs.) Literatura e história na América Latina. São Paulo: EDUSP/ Centro Angel Rama, 2001 (1993).

PAZ, Octavio. El laberinto de la soledad. Madrid: Cátedra,

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

PHELAN, John (1979). La origen de la idea de Latinoamérica (Trad. Josefina Z. Vásquez). México: UNAM, 1979.

SARMIENTO, D. F. Facundo o civilización y barbarie en las pampas argentinas (1845). Buenos Aires.

Wilson Alves-Bezerra é professor da área de espanhol da Universidade Federal de São Carlos, autor de Reverberações da fronteira em Horacio Quiroga Humanitas/FAPESP) e tradutor. Texto da palestra de encerramento do Fórum de Debates – Série América Latina, ocorrido entre os dias 18 e 25 de setembro de 2008, no campus de São Carlos da UFSCar. Contato: wilson_alves@yahoo.com.

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