UNI /VERSO IN/VERSO:
A Poética da Alteridade e do Diálogo nas com/posições de Juan Gelman
Andityas Soares de Moura

Nascido em Buenos Aires no ano de 1930, Juan Gelman é hoje uma das vozes centrais da poesia latino-americana. Detentor dos principais prêmios literários da língua castelhana (1), Gelman recebeu recentemente, das mãos da rainha espanhola, o cobiçado XIV Premio Reina Sofía de Poesía Iberoamericana, sem dúvida a mais alta distinção que um poeta de fala hispânica pode almejar. Avesso às badalações e à detestável politicagem literária que impera entre os poetastros, Gelman aceitou o prêmio com a inconfundível serenidade que ultimamente vemos estampada em seu semblante. Todavia, é inegável que a premiação será bastante útil para a divulgação de sua obra poética, que somente agora começa a ser conhecida no Brasil (2).

De múltiplas faces, o inimitável lirismo de Juan Gelman vem sendo reinventado há décadas em mais de 30 poemários, raro amálgama de vida e poesia. Tramando o encontro entre a expressão exata e a mais radical das liberdades, Gelman confere densidade e verdade à memória histórica de todo um povo, privilégio reservado a pouquíssimos escritores. Todavia, seu discurso não se circunscreve ao particularismo pungente de sua querida Argentina, marcada pela criminosa ditadura militar que lhe assassinou um filho e a nora, além de seqüestrar-lhe a neta. Em seus poemas Gelman também celebra o maravilhoso que se esconde nos desvãos do cotidiano, construindo uma arte poética de esperança e beleza.

Ao lidar com as potências conflituosas da vida e da morte, a poesia de Gelman ofega e afaga, ri e chora, espera e desespera. Inventor consumando, o escritor argentino não se submete a classificações e regras paralisantes, inventado para si uma gramática poética toda nova: é assim que, às vezes, sua sintaxe se aproxima daquela da fala cotidiana. Em outras oportunidades, lembra a estrutura elíptica do próprio pensamento auto-raciocinante: il spantu dil pinser. Poeta de linguagem própria, rigorosa e inconfundivelmente criativa, Gelman se destaca sobretudo por duas instigantes características: a prática constante do neologismo e a renúncia quase completa ao uso de maiúsculas e à pontuação convencional, esta última substituída pelas barras (interrupciones) que, a um só tempo, fazem as vezes de ponto final, dois pontos, vírgula e pausa respiratória. Tais artifícios transformam suas peças não em respostas a sentimentos estéticos ou a comoções passionais, como sói ocorrer na obra de vários poetas contemporâneos, mas em intrincadas propostas lingüísticas, nem sempre fáceis de se transplantar para uma língua-irmã como a portuguesa.

com/posiciones é um dos seus mais belos livros. Gerado na dor do exílio, configura-se como mosaico de vozes alienígenas, já que nele Gelman recolhe a tradição poética dos compositores judeus e árabes que habitaram a Espanha – Sheparad ou Al-Andalus, o nome não importa – e que lá construíram uma lírica rica e fértil. Paradoxalmente, trata-se de uma de suas obras mais pessoais. O método utilizado por Gelman consistiu na re/leitura de peças selecionadas de antigos poetas de línguas semíticas que ocuparam a Espanha até a época da reconquista, enxertando nos textos de outrora as suas próprias idiossincrasias: interrupciones, sintaxe irregular, ausência de pontuação, referências pessoais – especialmente aquelas relacionadas ao exílio – e toda sorte de modificações que julgou adequadas para estabelecer um diálogo com os que já se foram, conforme nos confessa no exergo do livro.

Ao contrário do que se poderia supor, com/posiciones não se perde em citações ou em vazias demonstrações de intelectualidade. Os poemas florescem como se colhidos por vez primeira, e, em muitos casos, con/versam não apenas com os poetas judeus ou árabes escolhidos por Gelman, mas com outros de seus próprios poemários – escritos ou a escrever –, comprovando que as obsessões gelmanianas mudam de roupagem, mas jamais desaparecem por completo. C ompare-se, por exemplo, com/posiciones e dibaxu, este último escrito em sefardita, língua falada pelos judeus-espanhóis até a data de sua expulsão operada pelos reis católicos. Há correspondências de versos e até mesmo de imagens entre eles. Assim, a singela identificação entre amada /amor e macieiras:

como tus pechos blancos

bajo el manzano/

(“lo que vendrá”, vv. 13-14 , com/posiciones)

................................

mirandu il manzanu

vidi mi amor/

(Poema XXVII, vv. 1-2, dibaxu)

A referência ao exílio – não a qualquer exílio, mas a este exílio – parece ser significativa nos livros, como se com o demonstrativo Gelman pretendesse atualizar e enfatizar a sua situação, irrepetível e no entanto repetida mundo afora:

sol de este exilio/

(“decir,” v. 7, com/posiciones)

................................

la nochi es polvu dest’ixiliu/

(Poema XV, v. 4, dibaxu)

Outra construção bastante peculiar – dor de mim, dor de ti – encontra guarida nas páginas dos poemários, denunciando o estreito parentesco entre ambos:

mis versos doloridos de vos

(“dónde”, v. 6, com/posiciones)

................................

il mar cayi

duluridu

di mí/

(Poema XI, vv. 10-12, dibaxu)

Além da proximidade vocabular e cronológica – dibaxu foi escrito entre 1983 e 1985, mesma época de com/posição da obra aqui traduzida – percebe-se uma irmandade mais profunda entre os livros, de ordem espiritual. Tal pode ser verificado pela utilização de certos “termos fortes”, como, v.g., o ambíguo e raro qualificativo “separados”:

tu corazón/o dulce aviso/

pueblo de separados/[...]

(“la mano”, vv. 1-2, com/posiciones)

................................

un vienti di separadus/

di bezus qui no mus diéramus/

(Poema XVII, vv. 1-2, dibaxu)

E não só em dibaxu, mas em outras obras de Gelman vamos encontrar ecos de suas com/posiciones, como em eso:

[...]/palomita

que en el aire escribís adíos adíos/

(“Salmo” [III], vv. 13-14, com/posiciones)

................................

“adiósadiós” decía/sacudiendo su corazón como un pañuelo/

“adiósadiós” decía/

[...]

adiós al corazón que vuela y al vuelo del corazón/

(“Pañuelos”, vv. 1-2 e 13, eso)

Mais útil que comparar trechos de poemas – atividade que guarda muito do arbítrio e da (in)sensibilidade de quem a realiza – é notar o espírito geral que informa o conjunto ora traduzido. As peças de com/posiciones caminham de duas formas distintas: a primeira é cronológica, de 740 a.C. até 1775 da era cristã. A outra trilha é aquela inevitável, que assedia todos os homens, e vai do nascimento, dos ritos de passagem (v.g., a circuncisão) e do berço até o envelhecimento, a morte e o esquecimento. No intervalo entre esses dois momentos que separam as nossas trevas infinitas estão os desastres e os prazeres da vida humana: as guerras, as injustiças e as loucuras do poder. Mas também a alabança do vinho e o cântico à amada. com/posiciones é, antes de tudo, um livro de amor. Do amor carnal, do amor espiritual. Do amor que não se satisfaz e des/espera: amor de exilado. Amor é experiência última, claridade que queima e força que sustém. Amor começa tarde (Drummond dixit). É somente através dele que o poema – artifício da palavra – enxerga a luz: ínfima possibilidade de salvação do homem. E quando Gelman e seus com/positores escrevem, estão falando de uma única e irreprimível realidade. Todos os poemas são um só poema no qual a rima entre dor e amor deixa de ser intencional e monótona para ressurgir melancólica.

Daí o acerto da escolha afetivo-temporal realizada por Gelman. O leitor notará que a maioria dos com/positores elencados pelo escritor argentino são árabes ou judeus do Al-Andaluz, da época, portanto, em que a Espanha era dominada pelos mouros. Contudo, as datas que acompanham os textos (3) nos mostram que estamos testemunhando o fim de uma era. A reconquista cristã então já surgia no horizonte, sendo que o Califado de Córdoba se esmigalhara nas primeiras décadas do século XI, dando origem a variados principados rivais – os chamados “reinos de taifa” (4) – incapazes de manter a coesão político-jurídica islâmica na península. Rapidamente seriam anexados à nascente Coroa espanhola. As invasões dos povos berberes e a guerra civil que se instalou em Córdoba desde a morte de Almanzor em 1002 extinguiram o Califado em 1030. A conseqüência imediata foi a descentralização política e cultural, produtora da verdadeira poesia arábico-andaluza, finalmente livre dos rigorosos e opressivos modelos orientais (Elías de Molins, 2002, pp. 229-233).

Na verdade, não é de todo surpreendente que a grande poesia amorosa arábico-andaluza tenha se tornado independente e se desenvolvido em um momento de desagregação social. A situação de fraqueza política e de apreensão quanto ao futuro levou os poetas árabes do Al-Andaluz a se concentrarem em dois temas fundamentais, recorrentes em com/posiciones: a reflexão sobre os desmandos da fortuna e o amor. Assim, é por volta de 1022, durante a crise final do Califado, que surge o famoso tratado de erotologia árabe de Ibn Hazm de Córdoba, O colar da pomba, considerado por Ortega y Gasset como “el libro más ilustre sobre el tema del amor en la civilización musulmana”, palavras do seu elegante prólogo à edição de Emilio García Gómez, que traça um paralelo entre a idéia árabe de amor e o conceito provençal, radicado na cortezia (Hazm de Córdoba, 2002, pp. 25-27).

Contudo, ao lermos a palavra “amor” nas peças dos poetas árabes – e também naquelas com/postas por Gelman – é sempre bom lembrar que não se trata do sentimento contemporâneo que hoje conhecemos, mas de algo que o Ocidente ainda não consegue compreender bem. Trata-se de um amor espiritual, elevado, talvez vinculado às práticas ascéticas sufistas (5), mas que, ainda assim, não abre mão das felicidades da carne, como demonstra Carlos Varona Narvión em seus estudos sobre O intérprete dos desejos, coleção de poemas escritos pelo místico murciano Ibn Arabí nos primeiros anos do século XIII e que, ao lado da obra de Ibn Hazm, constitui a suma erótico-teológica da civilização árabe-andaluza, fonte da qual beberam muitos dos poetas presentes em com/posiciones. Ibn Arabí, à maneira do autor do Cântico dos cânticos, empreende uma busca abstrata e místico-alegórica pela Amada, errando por desertos, montanhas e acampamentos abandonados ao mesmo tempo em que louva sua habiba, nunca se esquecendo de cantar seus atributos físicos, entre os quais se destacam os olhos, a cabeleira e os peitos.

Mas e quanto aos poetas judeus? Não são eles a maioria dos com/positores recriados por Gelman? Como coadunar este fato com o escasso interesse da poesia hebraica pelo tema amoroso-sensual, se excetuarmos O cântico dos cânticos? Na verdade, os poetas judeus do Al-Andaluz se notabilizaram por seu interesse dedicado a temas seculares e até mesmo eróticos, com o que atualizaram a sóbria tradição sapiencial hebraica. Judá Halevi e Isaac Luria, entre outros, utilizaram formas e conteúdos já bastante desenvolvidos por seus primos árabes, o que só vem a confirmar uma irmandade milenar que a política e a ganância teimam em negar e destruir. Devido à multiplicidade cultural e à tolerância religiosa verificada no Al-Andaluz, os poetas hebraicos “espanhóis” puderam expressar-se sobre outros assuntos que não aqueles estritamente religiosos, lançando mão, para tanto, da erotologia árabe e de seus modos requintados de expressão poética (6), que em muito viriam a influenciar os trovadores dos séculos XII e XIII em terras de França e Portugal.

Em um tempo de incertezas – assim como este que nos toca viver –, os poetas árabes e judeus do Al-Andaluz se voltaram para a contemplação interior, a meditação metafísica e a vivência do amor. Suas composições são cânticos crepusculares que calham bem à atitude espiritual da poesia gelmaniana, mais de uma vez louvada por sua ternura e simplicidade quase impossíveis de se conceber, como bem notou Júlio Cortázar. Especialmente em com/posiciones – que, com maior ou menor acerto, ora entregamos traduzido ao leitor brasileiro –, a voz de Gelman se expande rumo a realidades que assediam todos os homens e, dialogando com a tradição, constrói um projeto de esperança que é seu, mas também é nosso.

 

[Belo Horizonte, 03 de fevereiro de 2006.]

Andityas Soares de Moura (Brasil). Contato: vergiliopublius@hotmail.co

Notas

(1) Entre as distinções e prêmios conferidos a Juan Gelman destacam-se os seguintes: Internacional de Poesía Mondello (Itália, 1980); Boris Vian (Argentina, 1986); Juan Bautista Alberdi (Argentina, 1992); Nacional de Poesía 1993-1996 (Argentina, 1997); Literatura Latinoamericana y del Caribe Juan Rulfo (México, 2000); Doctor Honoris Causa – Universidad Nacional General San Martín (Argentina, 2001); Rodolfo Walsh por trayectoria periodística – Facultad de Periodismo y Comunicación/Universidad Nacional de La Plata (Argentina, 2002); José Lezama Lima – Casa de las Américas (Cuba, 2003); Iberoamericano de Poesía Ramón López Velarde (México, 2004); LericiPEA (Itália, 2003); Pablo Neruda (Argentina, 2005); Feria del Libro de Buenos Aires (Argentina, 2005) e Nicolás Guillén (Itália, 2005).

(2) Há apenas dois livros de Gelman editados em nosso país: a antologia intitulada Amor que serena, termina?, preparada e traduzida por Eric Nepomuceno, e Isso, traduzido por mim e Leonardo Gonçalves.

(3) Para uma periodização simples, porém eficaz, da presença muçulmana em terras hoje de Espanha e de Portugal, cf. a obra de Adalberto Alves, onde o arabista português descreve as quatro épocas básicas do Al-Andaluz: O Emirado e o Califado (de 711 a 1020), os reinos de taifas (até 1095), o período Almorávida (de 1095 a 1149) e o período Almôada ( 1149 a 1249), quando a reconquista cristã ganha força (1999, p. 64).

(4) “Em 929, ‘Abd ar-Rahman III adopta o título de califa, e cedo as tensões internas, nomeadamente entre os partidos árabes e berberes, lançam as sementes da desagregação do califado, cujo corpo desmembrado dá lugar, em 1031, aos pequenos ‘reinos partidários’ ou taifas (Mulûk at-tawâ’if). Estava-se então no século XI, e já o ‘rolo compressor’ da impropriamente chamada reconquista cristã se tornara ameaçador” (Adalberto Alves, 1999, p. 32).

(5) “The love thus symbolised is the emotional element in religion, the rapture of the seer, the courage of the martyr, the faith of the saint, the only basis of moral perfection and spiritual knowledge. Practically, it is self renunciation and self-sacrifice, the giving up of all possessions – wealth, honor, will, life, and whatever else men value – for the Beloved’s sake without any thoutht of reward. I have already referred to love as the supreme principle in Sufi ethics [...]” (Nicholson, 1970, p. 107).

(6) “Houve [...] um florescer de poesia hebraica, tanto religiosa quanto secular, em Andalus, sob o estímulo das convenções e estilos poéticos árabes. [...] Quase pela primeira vez, a poesia em hebraico foi usada para outros fins além dos litúrgicos; sob o patronato de judeus ricos e poderosos, poetas adotaram formas de poesia árabe como a qasida e o muwashshah, e usaram-nas para fins tanto seculares quanto litúrgicos. O poeta que conquistou fama mais duradoura foi Judah Halevi (1075-1141)” (Hourani, 1994, pp. 196 e 203).

Agulha - Revista de Cultura
http://www.revista.agulha.nom.br/
Página principal - Agulha - Cibercultura - Naturalismo - Jardins - Teatro - Zoo - Poesia - Letras - Viagens
.