A MEMÓRIA DO PAI*
Manuel Ferro

Estreita é a ligação do poeta brasileiro Álvaro Alves de Faria a Portugal e muito em particular a Coimbra. Em 1998, participou do Terceiro Encontro Internacional de Poetas e, desde então, esse elo nunca mais foi quebrado. Logo no ano seguinte, publica “20 poemas quase líricos e algumas canções para Coimbra” (A Mar Arte Editora, 1999). Em 2002, publica em nosso país “Poemas portugueses” (Editora Alma Azul) e, de seguida, “Sete Anos de Pastor” (Palimage, 2005) e agora “A memória do pai” (Palimage, 2006). Entre outras iniciativas, organiza uma antologia de Poesia Brasileira Contemporânea-Brasil 2000, em comemoração aos 500 Anos do Descobrimento, integra outros volumes dedicados à Poesia e colabora em numerosos eventos culturais, como nas comemorações dos 800 anos da cidade de Idanha-a-nova, ao lado de outros nomes grados das letras portuguesas. Gravou entretanto uma entrevista na Universidade Aberta de Lisboa, para o programa “Entre Nós”, da RTP.

Se bem que o livro hoje a ser apresentado seja “A memória do pai”, não poderei deixar de ter em conta “Sete anos de pastor”, pela afinidade existente entre ambas as obras, como pelo facto de a primeira apontada representar como que a continuidade natural da segunda.

Por outro lado, porque a presença de algumas imagens conferem uma certa unidade aos dois volumes, como é o caso da permanência da figura do pastor, recuperada, por sua vez, da tradição literária portuguesa da marca, primeiro, vicentina, depois, camoniana e pessoana, prolongando-se agora na poesia de Álvaro Alves de Faria. Consubstanciado este tipo de imagética, de algum modo, a tradição lírica do nosso país, ou, numa perspectiva mais ampla até, a cultura portuguesa, em geral, com a qual o poeta brasileiro dialoga, resulta desse profícuo contacto, como frutos, obras como “Sete anos de pastor” e “A memória do pai”, num percurso marcado pelo regresso às origens ancestrais, numa busca constante das suas raízes e, simultaneamente, da sua identidade humana e poética.

Nessa atitude, é bem sensível, e muito particularmente a nós, leitores, quando se aproxima da nossa maneira de ser quando aflora a saga dos Descobrimentos, revisita mitos da cultura portuguesa, como o drama de Inês de Castro, e presta tributo a Camões, nomeadamente quando se refere (no poema intitulado “Carta poema ao amigo Carlos Felipe Moisés”):

Fecharei a casa como se fosse viajar

apagarei a luz da sala

e lerei os poemas líricos de Camões

para não me afligir.

 

Não sei morrer

sem me debater entre os móveis.

Denunciando deste modo o início de uma nova fase da sua escrita, foi este livro composto em torno da lírica camoniana, que toma como subtexto, a ponto de o abrir com uma epígrafe da autoria do poeta português, que de algum modo remete para o processo sempre complexo da criação poética. Tem esta obra por base e como texto de partida o soneto de Camões “Sete anos de pastor Jacob servia”, que dá origem a um ciclo de poemas dedicados a Raquel, Lia, Labão e Jacob, antecedidos por outro mais pequeno, devotado inevitavelmente a Inês de Castro, que apenas conta com dois sonetos, e seguido ainda por outros 16 poemas para uma certa rainha. Todavia, não menos importante é a primeira parte chamada “Descobrimentos”, onde não só se anuncia o rumo da produção poética de Álvaro Alves de Faria, como aí se reflecte sobre os conceitos fundamentais da criação poética, sobre a escrita em si, a essência da poesia, o estatuto do poeta e sua função. Não é por acaso que o livro se inicia com uma composição intitulada “Poema”:

Há um momento certo

para se escrever um poema.

Uma hora certa.

 

Há um dia certo

para se escrever um poema.

 

Uma vida inteira. (p.9)

É a poética da vida que aí está presente, com a presença inalienável da morte, da memória e do esquecimento, fundada na observação minimalista, na percepção apurada do universo, na fusão da dita percepção com a reflexão, na revelação fenomenológica do observado, que preparam e antecedem a grande viagem da vida. Não admira, por isso, que o autor, em declarações paralelas afirme: “A poesia ocorre. Toda a poesia, seja ela de onde for, sempre terá uma correspondência. A poesia tem seus entrelaçamentos. Toda a poesia, desde que seja ligada à vida do homem, da mulher, das crianças, dos bichos, das plantas, das pedras, do desespero, do grito. Toda a poesia (está) ligada à vida”. Por isso, quando, no poema “Os Navios”, trata dos “oceanos perdidos na fúria das palavras” (p.33), confere-lhes um novo sentido quando “Partem daqui esses navios que cortam o poema/ com o gesto urgente de quem vai morrer”.

Nesse percurso, o poeta abre horizontes até então fechados no baú das memórias, rastreia o passado, conhecido apenas de forma esbatida e fragmentária através das fotografias descoradas, onde se perdem “os chapéus dos antepassados”, os rostos apagam palavras mudas”, e, entre eles, “O paletó de meu pai (que) era azul marinho”. (p. 35), reencontrando, desta maneira, a paisagem ancestral das ruas raízes, à qual confere uma certa feição bucólica: “Ovelhas cortam as montanhas/ e mastigam avencas junto às casas/ e às janelas do instante que pressente”. (p.34). Reencontra o Portugal das memórias e povoa a sua poesia com imagens que esconjura da herança genética presente no sangue que lhe corre nas veias:

Ao povoar o poema

com as imagens de Portugal

faço o caminho de minha volta

assim mergulhado

na pele de minha roupa

costurada debaixo de mim. (p.40)

Por esse motivo, o poeta torna-se o “Pastor à procura de caminhos/ sou assim/ entre a tarde e o fim de tudo” (p.41), um pastor de pessoana memória, ou então o “Faroleiro nos oceanos/ ilumino almas/ dessas que se perderam para sempre./.../ ilumino almas esquecidas/ como se a me salvar de mim” (p.43).

Ocorrem, então, imagens e situações que não podem deixar de se associar a leituras de Fernando Pessoa, especialmente Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro, onde Álvaro Alves de Faria busca a sinalização da sua poesia, que a par de Rilke, servira de referência para a Geração 60 de poetas brasileiros, especialmente de São Paulo. No entanto, procura noutros autores portugueses um reforço para seu discurso poético, como Almeida Garrett, Antero de Quental, Gomes Leal, Cesário Verde, António Nobre, Florbela Espanca, Mário de Sá-Carneiro, José Régio, José Gomes Ferreira, Mário Cesariny, Eugénio de Andrade, Sofia de Mello Breyner Andresen, Herbeto Hélder, Al Berto, Albano Martins, Nuno Júdice, Hélder Macedo, David Mourão Ferreira, Maria Teresa Horta, Luiz Neto Jorge, Ruy Belo, António Ramos Rosa, Vasco Graça Moura, Ana Marques Gastão, Egipto Gonçalves, que o poeta brasileiro tão bem conhece.

Formalmente muito rico, a organização do seu discurso poético oscila entre expressivos poemas em prosa e gêneros consagrados, como o soneto, que o poeta renova e revitaliza com uma inspiração intrinsecamente inovadora. Apesar da observância rigorosa de forma – metro, ritmo e rima -, a linguagem adquire, em contrapartida, uma musicalidade e leveza (Vejam os “Poemas à Rainha e os Sonetos a Inês de Castro”), verificando-se, no entanto, uma maior liberdade nas composições que, muito embora com a forma do soneto, se libertam da métrica tradicional e, noutros casos, da necessidade de rima. Além disso, verifica-se uma busca intensa e profunda de moldar o assunto ou os temas em causa em formas poéticas específicas, altamente cuidadas, daí resultando uma construção elaborada, poeticamente conseguida, distanciando-se, apesar de tudo, da via experimental seguida por poetas contemporâneos. Noutros casos, poemas há que se constroem com o som das palavras, num jogo fônico em que a musicalidade dos fonemas acentua e evidencia a mensagem, algo demiúrgico do discurso poético.

Deste modo, conduz-nos o poeta por um meandro de sentimentos e emoções, levando-nos a acompanhá-lo num labirinto de descobertas, num esmiuçar de afectos em que a memória tem um espaço privilegiado. É através dela que o passado se revisita e adquire uma dimensão mítica, que as paisagens se reconstituem, que as imagens se sobrepõem e justapõem, como se de uma montagem tratasse, de modo a resultar desse exercício poético um reencontro com recônditas e poéticas dimensões da interioridade do autor.

Não admira, por conseguinte, que o caminho apontado em “Sete anos de pastor” , o do reencontro com o passado dos seus avoengos seja retomado, inevitavelmente, na obra “A Memória do Pai”.

Numa linguagem quase de feição mediúnica, o transe lírico transporta o leitor a um mundo interior em que se revela uma realidade que não é de todo desconhecida do leitor, pela familiaridade que um povo de viajantes tem com o tema da partida, a ânsia do regresso, ou os temores da reconstituição do percurso, mesmo que essa operação se possa verificar apenas no plano onírico. A enumeração referencial, num fluxo lírico de forte teor emotivo, arrasta o leitor num trajecto que o poeta julga realizar como caminhante solitário, mas que, na realidade representa o desbravar pioneiro de caminhos, em que todos o acompanhamos. Por isso, as imagens que a memória reencontra e que o coração revitaliza, os espaços que evoca, os rostos e as sombras que refere com maior ou menor nitidez, brotam do subconsciente e reconstituem um universo poético peculiar, e, por isso mesmo, sedutor, que sobrevive numa dimensão que Álvaro Alves de Faria molda e revela através da magia da palavra e do rito iniciático da poesia.

Na recuperação do passado, o modo como domina e exprime o tempo, na escrita encantatória da História, contada de um prisma muito particular, descobre-se o viajante que deambula e interroga a cidade, o campo ou a aldeia, numa busca insatisfeita, à procura da mais tênue pista que denuncie algum vestígio de paragens familiares aos seus antepassados. Dando voz a todos quanto sonham reencontrar as suas raízes e, muito particularmente, aos filhos e descendentes de portugueses que sonham conhecer a terra onde os seus pais viram a luz do dia, é através das vozes, da palavra perdida, dos gestos repetidos, genialmente articulados na poesia de Álvaro Alves de Faria que se reconstitui esse processo sempre marcado pela intensidade emocional, que se cruza, por sua vez, com o reencontro de um passado mítico, na esteira de António Nobre, muito embora fiquem salvaguardadas as profundas diferenças entre ambos os poetas.

A poesia torna-se, pois, “uma coisa sentimental e existencial”, assumindo as palavras do autor, e “Portugal é uma porta. Uma paisagem existencial. Uma paisagem poética”. E o que o leva a Portugal? “Tenho ido em busca de mim, se é possível entender. Em busca da minha poesia ainda possível. Talvez em busca da vida que me resta”.

Filho de pais portugueses, busca, pois, dentro de si as suas próprias reminiscências. “Vou buscar-me onde me deixei. Vou em busca do ar para respirar./.../ Um poeta à procura da poesia. De Portugal pretendo apenas a poesia. Pretendo vestir-me de poesia. De Portugal pretendo-me apenas ser. Quem sabe renascer ?”

Este livro “A Memória do Pai” abre-se com a dedicatória ao próprio pai, figura presente e condutora de quase toda a obra, aos familiares, aos amigos e, de modo afectivo, àquelas pessoas de Idanha-a-Nova, que preservam as tradições e que, de algum modo, evocam as memórias do passado. Os momentos em que o presente livro foi iniciado, evocados num texto inserido numa das primeiras páginas, seguido de uma epígrafe, desta vez de Francisco de Sá de Miranda, poeta de algum modo representativo do Portugal de antanho, dão lugar, depois, a uma introdução da responsabilidade de Carlos Felipe Moisés.

Os 41 poemas que integram o volume iniciam-se, naturalmente, com a evocação da figura tutelar do pai. “Meu pai/ nunca soube/ que eu morri” (p.17), num poema construído de forma encaixada, com essa pequena estrofe a iniciar e a concluir a composição. E a essa imagem faz aderir a de um espaço mítico da terra das suas raízes, da aldeia com a sua igreja, das relações humanas nela estabelecidas (p. 19, 20, 21), das ruas incertas de pedra, calcorreadas por sapatos antigos, das cegonhas nos ninhos (p.46), ou dos campos, do verde das montanhas, onde, na figura do pastor a olhar a tarde a afagar as ovelhas, reconhece também a imagem omnipresente do pai. Noutros cenários, esconjurados pelo poder da memória (p. 24) surgem as oliveiras dos campos, os rebanhos brancos (p.30) ou outras memórias da História (p.28), assim como a reminiscência de um espaço algo incerto que persiste em impor-se:

Havia um rio

atrás de minha casa

e sempre que dormia

a sonhar

ia-me à margem lavar o rosto

como se ali houvesse de verdade

esse rio

a correr atrás de minha casa.

 

Até hoje não sei porque

sempre saía desse sonho

com o rosto molhado

da água desse rio

que me esperava adormecer

para existir. (p.33)

Outras vezes são, de novo, as fotografias que favorecem esse salto no tempo, recuperando a memória estilhaços do passado, a que a poesia dá forma (p.36), mas em que a figura do pai continua como motivo condutor, a dar unidade à obra (p.44). Nessa altura,

a poesia confere uma forma plástica ao pensamento

 

Reminiscências feridas sangram a memória

como as pombas a se aninhar nos alpendres das casas

que não seja este tempo da tarde esse navio que desaparece

nesse mar que termina sem avisar. (p.56)

ou , então, é a força que domina e conduz o poeta no acto da criação:

assim se faz o poema

na medida que não meço

 

sei-me inútil na poesia

na palavra que adormeço

 

quanto mais explico o verso

quase nada esclareço (p.41)

Nesse contexto, afirma-se o sabor da poesia popular, com a frescura dos jogos de palavras e da fluência do ritmo, como expressão de uma cultura que cunha a identidade da herança do passado reencontrado:

Não eternizo – eterneço

torno eterna a eternidade

mas nesse eterno me esqueço

por tão longa brevidade.

 

É assim que o tempo teço

a viver com brevidade

a memória desconheço

por tão curta eternidade. (p.53)

E para além dessa vertente popular, o espaço poético assim reconstituído é ainda povoado por algumas figuras, sombras emergentes, qual a figura de Inês de Castro (p.47-48), ou Eugénio de Andrade, num poema dedicado ao poeta por ocasião de sua morte ou ainda pela lembrança de uma canção que o fluir do tempo impossibilita de repetir:

Também queria recordar pai

uma canção que esqueci no meu passado

que falava não sei mais o quê

perdido que está em mim

esse verso inacabado

do poema nunca escrito

que me é sempre lembrado. (p.58)

Por tudo isso, o produto desse delicado processo de reconstituição da memória é naturalmente marcado pela imprecisão, pela incerteza de um universo, que só a poesia pode configurar e dar sentido:

Em instantes assim

ponho-me a lembrar de coisas

que nunca aconteceram

mas é como se tivessem acontecido

porque delas me lembro

com a nitidez de uma ave

que empreende o vôo para o fim.

/.../

Navegador que não sou pai

perco-me nos oceanos

e nos oceanos perdido

busco-me nas ostras e nas pérolas

com a alma à deriva.

 

Em instantes assim

em que me lembro de tudo

sem nunca lembrar de mim. (p.54)

E Portugal adquire aí um novo halo, uma imagem necessariamente idealizada (p.61), sem bem que moldada pelos estereótipos do viajante emigrado, que sonha com o porto de partida, com o ninho do torrão pátrio que o viu nascer, agora transfigurado pelo poder da fantasia, reforçada pela nostalgia e pela saudade sentidas. É a terra de poetas, de tardes pálidas, rios serenos e cenários pitorescos: (p.63-65).

Portugal está distante pai

como as gaivotas de que falavas

tão distantes como a vida

que por certo não viveste.

 

Mas sonhaste esse sonho

de ser sempre o que espera

a viver no frio das noites

o chegar da Primavera. (p.61)

Ou ainda:

Caminho noites antigas

e neste instante partem de mim aves noturnas

que não voltarão mais a este porto

as ruas de Lisboa

e esta igreja em que me deixo ficar

numa escada de Coimbra

onde dormem meus poucos segredos.

 

À mesa pai

conto as ovelhas no campo

como se a dizer-me um poema

de Antero de Quental

que tantas vezes me fez viver. (p.63)

Por conseguinte, como alguma vez afirmou, se Álvaro Alves de Faria recentemente se sente um poeta português a viver no Brasil, assumindo tal atitude um assinalável significado político, é uma honra e um privilégio para o leitor português, entre os quais eu me incluo, a ceder em primeira mão à sua obra e poder acompanhá-lo em momentos como este. Mais do que considerá-lo como um olhar simultaneamente íntimo e estrangeiro sobre a nossa cidade e a nossa realidade, Álvaro Alves de Faria se afirma como um poeta nosso, como alguém que tão bem capta a singularidade da nossa maneira de ser e melhor saber exprimir. Eis porque vos lanço o desafio de lerem, direi mais, de devorarem seus livros.

 
*Texto da apresentação do livro, no Teatro Gil Vicente, em Coimbra, onde o poeta fez uma leitura de poemas.
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