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Maria Seizette Lourenço |
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Barroco de Corvos (excerto, parte final) |
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Márcia voltou para a cama a pensar
na gravidez da Luzia. Também ficara grávida. Ou de Marco ou do
engenheiro Galvão. Mas não dissera nada a ninguém. Procurara a
parteira conhecida e, combinado o dia e a hora, fez o desmancho.
Viera para casa de táxi e toda a cidade girava à sua volta numa
dança que jamais acabava. Quando chegou a casa sangrava
abundantemente e todo o algodão estava ensopado. Atirou-se para
cima da cama esquecida de si própria e das dores que sentia.
Como se tivesse uma faca espetada no ventre e subisse pelo corpo
acima até lhe tocar no cérebro. Desmaiou. Quando acordou no dia
seguinte teve a sensação dum regresso doutro mundo. Apenas lhe
doía a cabeça e o sangue coalhado colava-lhe as pernas e as
roupas. Levantou-se a cambalear e foi para a casa de banho.
Sentiu uma vontade imensa de urinar e apenas deixou cair uns
pingos de urina misturados com sangue. Lavou-se com água fria e
voltou novamente para a cama com o corpo a ser amparado pelas
paredes do corredor .Tornou um comprimido que a parteira lhe
dera e adormeceu.
- Mal sabes tu o que te espera - pensou
Márcia - mas não te direi nada para não te assustar.
Márcia fizera vários desmanchos mas nenhum
lhe custara tanto como o último. Pouco lhe faltara para endoidecer.
- Para se endoidecer, apenas falta o que
não se sabe bem quando se está lúcida, ou o que não se sabe depois de já
não o estar - pensou Márcia. - A vida é apenas um cambalear entre a
lucidez e a loucura.
Márcia sentira momentos em que perdera o domínio de si própria e
estivera sem o conhecimento das realidades. Depois regressara a uma vida
normal, idêntica à vida de todas as pessoas, com a neçessidade de
trabalhar, de comer e de se vestir. Tentando esquecer os sofrimentos
passados num presente que vivia sem ligação com o futuro. Sentia-se bem
a dormir, pois assim esquecia tudo, o mundo ficava ausente e ela, às
vezes, sonhava com o seu «barroco de corvos», refúgio de dores que ainda
não sabia sentir e solidão sem corvos que voavam para outras paragens.
Mas a vida dera-lhe tantas dores que, quando pensava em pessoas, sentia
que os corvos andavam à sua volta para tornar ainda maior uma solidão
sem barroco.
- Como é difícil e penoso viver quando se
pensa! - pensou. - Os corvos da minha infância voaram todos para a minha
vida de mulher que teve sonhos e os viu destruídos, que sorriu com nós
de sofrimento a apertarem-lhe a garganta em prantos sufocados, vida de
mulher que teve homens a seu lado para a tornarem mais impura e mais só,
vida de mulher que nunca teve a certeza de encontrar em alguém um pouco
de segurança, vida...
E Márcia chorou, sem pensar em prantos,
regando a almofada com pedaços da sua alma, transformados em lágrimas.
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Adormeceu num sono profundo, como se o
mundo à sua volta tivesse morrido, ou como se a alma atormentada de
tanto pensar tivesse saído para longe, para o «barroco dos corvos» da
sua infância.
Márcia só acordou às sete horas da
manhã de segunda feira. Sentiu vontade de continuar na cama mas
era dia de trabalho e, se se descuidasse, chegaria atrasada ao
emprego. Os patrões estavam a ficar cada vez mais impertinentes,
pois o desemprego aumentava todos os dias, e desejosos de motivo
que servissem de justa causa para substituirem os trabalhadores
mais antigos por outros mais novos e sem direitos a regalias
adquiridas. Levantou-se e acendeu o esquentador para tomar o
duche matinal. Fez a toilete, tentando disfarçar os sinais de
cansaço estampados na sua cara, onde as primeiras rugas
começavam a aparecer. Como não tinha nada em casa que pudesse
servir de pequeno almoço foi ao Café e pediu um croissant e uma
chávena de café com leite.
Quando se dirigiu para a paragem do autocarro viu Aurélio a
correr, tentando agarrar-se a um eléctrico, sem dar sequer pela
presença dela. |
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- Os poetas que andam nas estrelas são, afinal, os homens que
correm atrás dos eléctricos - pensou.
E Márcia entrou, também, para o autocarro
apinhado, juntando o seu destino a toda aquela gente que, como ela,
talvez pouco soubesse da vida, da felicidade, ou do destino que junta e
separa pessoas, que as faz sofrer e a empurra, inconscientemente, para
um dia a dia sempre igual. Mas, teimosamente, diferente.
Lisboa, (Outubro) de 1976 |
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MARIA SEIZETTE
Barroco de Corvos
Pequena estória de uma solidão grande
Capa de Ulisses Duarte
Lisboa, 1976 |
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