A. de Almeida Fernandes é um dos mais importantes - tão importante quanto esquecido - historiadores portugueses. Dotado duma sólida formação intelectual e religiosa, enveredeou pelo curso de Engenharia Geográfica, que acabou por abandonar. Tendo obtido diploma do curso de Geografia da Universidade do Porto, leccionou no Liceu Nacional de Viana do Castelo (Escola Secundária de Santa Maria Maior).
Renovou em grande parte os nossos conhecimentos acerca da nobreza fundadora da Nacionalidade. Radicado em Viana do Castelo, deve-se-lhe também o estudo das origens de Viana, de Ponte de Lima, e bem assim estudos fundamentais sobre o Paroquial Suevo e a presúria de Paio Bermúdez.
A. de Almeida Fernandes deve à sua dupla formação - teológica e geo-matemática - sem dúvida, a grande versatilidade do seu espírito. Tocava órgão excelentemente e dedicou-se mesmo à composição, sendo da sua autoria o hino das comemorações do VIII Centenário da Batalha de S. Mamede. A investigação histórica levou-o, como a Herculano, a acrescentar aos seus estudos a reconstituição de cenas, vivências e cor local. A. de Almeida Fernandes escreveu, por isso, dois romances históricos.
Uma e outro - o pendor religioso e literário e a historiografia - levaram-no a colaborar com a paróquia em que vivia, para no seu mensário - Ecos da Meadela - com um conjunto de sonetos de temática religiosa e histórica. A escolha da forma soneto, decerto radicada no pendor classicista da formação do autor, serviu-lhe também pelo conceptismo, que lhe permitiu nos tercetos, colocar como "chave" um paradoxo, uma exclamação, uma lição de moral, à laia de conclusão dum raciocínio. Nos "sonetos evangélicos", que constituem comentários a parábolas jesuânicas, a "chave" do soneto presta-se admiravelmente à respectiva conclusão moral.
0 moralismo, que uma vez se exprime através dum ditado popular ("quem ri por fim...", p. 24), coincide habitualmente com a crítica clássica à desordem dos costumes. A poesia é, por isso, além de oração (p. 81), uma ascese: cada verso é "um fustigo - duro e cheio" para desconto dos seus pecados. Por isso, preferia morrer a fazer versos "à 'andrades', 'torgas' - ou 'pessoas'" (p. 71).
À evangélica, seguem-se duas outras partes como num anticlinal: sobe-se a colina da Paixão de Cristo, para a descer contemplando as de santas mártires (3a parte), cuja paixão é assimilada à de Jesus (p. 92,146,195). A Paixão do Senhor, por sua vez, é apresentada a partir das Escrituras, segundo um método que parece simétrico do dos evangelistas, derivado do midrash pesher em voga no seu tempo.
Do ponto de vista filosófico, A. de Almeida Fernandes mostra-se convicto da existência objectiva do mal. Por isso, identifica com Jesus padecente todos os que são perseguidos pelos maus (p. 9). Muitos destes sonetos são diatribes contra os racionalistas, os ímpios e os ateus. Similarmente, os pobres e estropiados, cegos e coxos da parábola evangélica, são metonímias de todos os bem-aventurados, isto é, dos que trocaram "cuidados / de um mundo efémero pelo paraíso" (p. 10).
A atitude do verdadeiro "fiel" é a de se instruir com ânsia e praticar na luta. A ânsia manifesta-se na "sede" de sabedoria.
Para alcançá-la tem de subir-se uma "montanha írrígua", escarpada e espinhosa. E no cimo dela o que nos espera é a "aborrida" cruz, para tal "ensanguinhando mesmo um níveo amicto" (p. 53). Este pendor epideíctico fê-lo inçar o texto de sinais de pontuação como travessões para realçar uma afirmação, aspas para indicar um sentido figurado, itálicos para acentuar uma palavra ou uma frase (normalmente parentética). E até se formula uma equação (embora a métrica não permita a leitura dos sinais, p. 40). O didactismo desta escrita é mesmo servido por didascálias prévias e notas explicativas no fim do soneto.
Estas peças enfermam, pelo seu género didáctico, dum pendular prosaísmo, acentuado pelo predomínio da hipotaxe e do enjambement. Encerrar um texto sentencioso no espartilho dum soneto foi operação que Almeida Fernandes realizou com mestria, mas também com sérias dificuldades. Recorreu, por isso, a todos os artifícios fonéticos: aféreses, síncopes, apócopes, ectlipses, mas também paragoges fonéticas em infinitos verbais e até epênteses, fazendo sílabas com consoantes a que fez juntar um [9] de mera leitura. Por isso, numa atitude tão recorrente, que ultrapassa os parâmetros da modéstia, o autor qualifica o soneto que vai escrevendo de "prosaico poema" (p. 91n), "prosa franca" (p. 102), "prosa versificada" (p. 155,156), "poesia quase prosa" (p. 172), "falta de poesia" (p. 181) e diz preferir uma poesia não cerebral (p. 114).
A rima também raras vezes é rica e recorre-se à rima toante. O esquema rimático oscila entre uma solução de 5 rimas (nos primeiros sonetos) e uma outra de 4: ABBA ABBA CCD EED e ABBA ABBA CCD CCD. Excepcionalmente, há um soneto seguido duma quadra de rima também interpolada. As dificuldades rimáticas obrigaram mesmo uma vez a violentar o sentido da parábola que servia de tema: o servo a quem foram, segundo o texto evangélico, confiados mais talentos no "servo fiel de encargos mais pequenos" (p. 14). Por outro lado, o poeta, por dificuldades de métrica viu-se obrigado a utilizar de vez em quando o verso sáfico em vez do habitual heróico e a recorrer ao metro alexandrino (mais próximo da longa frase da prosa).
A linguagem usada, difícil, baseia-se, além da sintaxe, num léxico classicizante, com termos como "pulcro, mendace, cinto, aculeados, aspar, cinerar, punícea, hastil, exsical, atro, deífico cibório, deletreio", etc. Os símbolos são florais e bíblicos. As flores mais referidas são a cecém, que retrata as virgens tanto como a "nívea cordeirinha" (p. 80),os lírios (i.e, íris) brancos e roxos e a rosa branca e rósea (p. 99).
As metáforas são raras e algumas tão explícitas como as que os manuais clássicos denominam de símiles (cf. p. 127). Mas também encontramos a prosopopeia das oliveiras do Getsémani "comovidas, em prantivo rogo" (p. 56). E o estilo é animado de quando em vez por exclamações, apóstrofes e alguns trocadilhos. E nalguns trechos deparamos com uma adjectivação mais rica, decadentista (p. 137,143,192). O mesmo se diga de alguns contrastes.
Mas o poeta faz do exercício literário, além da referida ascese, um exercício de desvelamento do ser em que toda a sua pessoa está envolvida. Ele empenha-se pessoalmente nas narrativas (p. 83), colocando-se em paralelo com as biografadas (p. 93,131, l60,174, etc.), emparelha a sua vida com o dies natalis duma santa (p. 95). E, na maior parte das poesias o que Almeida Fernandes põe - a propósito de uma virgem mártir, decerto - são os seus problemas e história pessoal, numa aproximação à poesia mística, que ajunta de Freguesia da Meadela edita, associando-se, desta forma, ao Grande Jubileu do Ano 2000.
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