Para entrarmos de chofre no tema da obra ao verde, dou como exemplo o "Telegrama sem classificação especial" (26), em que aparece um sujeito de enunciação plural, o nós, todos os que partilhavam com o poeta as mesmas contrariedades. Vejamos os primeiros versos:
Estamos nus e gramamos.
Na grama secular um passarinho verde
canta para um poema lírico, para um poeta lírico,
que se nasceu
é certo que não cantou .
Gramamos, temos de gramar, nada de mais disfórico do que as emoções contidas na palavra, no sentido habitual do termo "gramar", calão, ou langue verte, como diriam os franceses. "Gramar" é vocábulo da língua verde , o calão dos adivinhos, e neste poema é verde de forma redundante, pois que o termo "grama" também indica a relva, e além destas duas verduras ainda temos terceira, a do pássaro que canta. Ora como se chama a língua dos pássaros, além de se chamar linguagem das aves, como sabem todos os que leram Fulcanelli e outros alquimistas? Língua diplomática, diva garrafa, argótica, língua das gralhas, etc.. A língua verde é a dos alquimistas e de escritores como Rabelais, Rimbaud ou André Breton. É a língua falada pelos deuses, pelos anjos, pelos elementos da Natureza, aquela que recorre aos símbolos, aos anagramas, aos códigos destinados a iludir os inquisidores, os polícias e os curiosos que não fazem parte das confrarias do segredo.
Nada de mais afastado de Ramos Rosa, um poeta do concreto e do material, sem tendências esotéricas, crípticas nem religiosas, não é verdade? Mas não é ele quem diz que o poeta não escreve o poema, o poema é que cria o poeta? Pois então, aí está: seja o que for que o poema escreva, fá-lo com a língua verde, a falada pelo rumorejar do vento no arvoredo.
A verdura pode ter valor satírico, como aliás tem neste poema em que gramamos, ou podem ser subversivas as nossas verduras, aliás em certas circunstâncias de esoterismo, pode o verde ser maléfico, mas está sempre do lado oposto do suicídio invocado no poema que citei, "Telegrama sem classificação especial". Em António Ramos Rosa, a obra ao verde é a alquimia da esperança, o verde é metonímia da floresta, da vegetação, de toda a Natureza. É nesse espaço vegetal que o poeta se renova, renasce alquimicamente, como ele escreve, nesse livro intitulado à medida do movimento cíclico, que propicia o renovo primaveril, "Volante verde":
É uma corrente de ar brilhante, é um lugar que emerge
De obscuras veias. Que leveza no vento! Estou no meio do espaço.
Oiço os murmúrios do sol. Saboreio o que sou.
Sou renovado pelo espaço, nasço num espaço verde.
O que eu amo está perto entre a terra e o ar . (27)
Na obra ao verde, a liberdade de ser o que se quer ser passa por um renascimento idêntico ao das plantas, em que a língua verde (28) cria a própria liberdade. Para que a liberdade exista, é preciso que o poeta a escreva, tal como lemos em "Constelações": "Escrevo para que a liberdade respire com os seus veios de nada" (29). Para a escrever, precisa da língua verde, a linguagem divina, falada pelas aves e pelas árvores. A respeito da capacidade transmutatória da palavra e das sílabas, escreve Ramos Rosa, mais alquimista do que o próprio Hermes Trismegisto:
A sua inteligência porosa está na sua língua verde
que não procura os frutos mas a fábula que os transforma
num sabor obscuramente lúcido
que tem a frescura obscura da noite constelada
e a leve densidade de um silêncio de adorável surpresa
que pulsa como uma pálpebra na virgindade da página (28)
Esta aparição do hermetismo na forma da língua verde, a diva garrafa de Rabelais, poder inebriante que inspira e obriga a dizer a verdade, no caso dos ritos dionisíacos, não é de agora. Já em 1977, em "Boca incompleta", o poeta se referia à "língua áspera e verde", e ao seu oposto, o "silêncio verde" (30). Se a boca está incompleta, poderá ser por falta da língua como órgão, mas não por falta da linguagem verde.
Parece banal esta ideia de associar o verde à vegetação, mas nem por isso. Só numa primeira análise é verista pintar folhas de verde, quando, de modo geral, as cores estão desvinculadas do objecto a que em princípio pertencem, na realidade. E é útil anotar que a folha, em Ramos Rosa, tanto é folha de papel como de planta, na maior parte dos casos não há hipótese de seleccionar o valor. Verdade se diga também que a Física nega que os elementos da physis tenham cor, o que os não-daltónicos vêem como vermelho ou violeta não passa de vibrações de corpúsculos sob as ondas luminosas. Para o provar, dizem os físicos, basta apagar a luz. Não discuto, aponto apenas que em Ramos Rosa o colorido das paisagens não visa concordar com as ciências naturais, à excepção talvez do verde.
Talvez. Repare-se que o verde parece tão verista na pintura e metonímia da folhagem que é frequente anteceder elementos vegetais como a erva, a relva, as folhas. Quase sempre isto acontece, por isso faço uma única citação:
Tudo é calado alento,
Tudo é sombra verde
De um pensar sobre o sono
Das relvas espalhadas . (31)
A sombra é verde, escreve o poeta. Isto é espantoso, porque a sombra é a ausência de luz e por isso de cor. Neste poema o verde é propriedade da sombra e não das relvas, palavra de que está algo afastado. Sendo propriedade do obscuro, o verde remete para a magia, em que é considerada a mais misteriosa cor da paleta. Seria caso para voltarmos aos anjos verdes, em especial ao anjo portador da esmeralda na qual se talhou um famoso vaso, mas António Ramos Rosa, a despeito de toda esta obra ao verde, não é um poeta hermético.
E no entanto estamos mergulhados em plena obra alquímica, a que que visa a transmutação do chumbo em Leão verde, o ouro dos filósofos. É a própria cor, o verde, que tem dons transmutatórios. Tudo aquilo em que cai pincelada verde muda de natureza. E assim a Natureza tem "geometria verde", as mulheres são verdes ou de musgo, os anjos são de erva e de silêncio, os animais transformam-se em vegetais numa frase como "Alto caule de cavalo aceso", o poema tem "lábio verde" e "verde chifre", e o poeta lamenta: "A saudade torna-me verde".
Vamos ficar por aqui, nada existe que não possa ser verde na poesia rosiana. Não há que ter medo das palavras nem dos sentimentos: quando o poeta diz que a saudade o faz verde, quer dizer que a poesia é uma barragem contra a morte. Face a esta encantada Primavera da esperança, só temos de ficar contentes. |