António Ramos Rosa, como outros poetas que começaram a publicar antes do 25 de Abril, manifesta na sua poesia linhas temáticas que, apesar do regime de censura, são politicamente muito claras. Esses temas dizem respeito, como não podia deixar de ser, e tendo ele a experiência da tesoura, à falta de liberdade, e por isso à prisão da vida mesquinha de todos os funcionários cansados, sob a ditadura de Salazar. É ao desejo de liberdade que se aspira quando nos poemas aparecem gaiolas, prisões e pássaros, como acontece precisamente no conhecido Poema dum funcionário cansado, que remata com "palavras soterradas na prisão" da vida (11). Essa reclamação aparece com grande veemência no redundante título da colectânea de ensaios, "Poesia, liberdade livre".
Parece que no meio das muitas correspondências poéticas, a poesia é o mesmo que liberdade. Mas se a liberdade da poesia é uma liberdade livre, quer dizer que fora dela o não é. Admitindo-se assim que há uma liberdade que não é livre, verificamos que entre os termos "liberdade" e "livre" não existe total correspondência. Ou então só existe na poesia.
A falta de liberdade não se limita à prisão do corpo, e por isso o poeta não a perde como linha de força em mudanças de regime político, nem nos confins dos primeiros poemas. É um tema permanente, ontológico, ele atravessa toda a obra, unindo linguagem e ser numa só natureza ou estado de correspondência. Declara António Ramos Rosa, numa entrevista: "A minha poesia é cognitiva e metapoética. Se a metafísica é uma forma de conhecimento do universo, das coisas, da linguagem, então sim, tenho essa inquietação. Os meus textos não se reduzem a um âmbito circunstancial. Mas quando escrevo um poema, o tema que se me impõe imediatamente é o da palavra, da linguagem. Desde sempre." (12).
A liberdade que o poeta reclama para a palavra ultrapassa a liberdade de expressão, porque o ser e a palavra não se distinguem na sua perspectiva ontológica: o poeta escreve sol (13) da mesma maneira que as árvores falam, isto é, o poeta cria mundo com as palavras. Dos diversos mundos ou diversas categorias de realidade, entre elas a criada pela linguagem, ocupou-se Karl Popper. Há de facto uma dimensão cognitiva na poesia de António Ramos Rosa, que decorre da perspectiva filosófica com que vê a comunicação, e não só humana, pois também admite os códigos da Natureza.
Porque a Natureza fala, o poeta escreve: "Conheço as palavras das árvores" (14). O homem é um ser de linguagem, todo o seu afecto, saber e história residem nela. Por isso, ao interrogar a palavra, é o mundo e a vida que questiona. E também por isso a liberdade reclamada para a palavra é a liberdade de ser, e não apenas a de ser proferida ou impressa. Porque o universo é sentido como linguagem, a poesia tem nele um referente e um interlocutor, e ao poeta, o primeiro tema que se lhe impõe é o da palavra. É assim que se estabelece, entre a Natureza e a palavra, e entre a linguagem e o homem, a maior de todas as correspondências.
Mas deixemos a porta aberta, neste domínio das correspondências, em que verde é a letra "u", como escreve Rimbaud, a transmutações mais fáceis do que as alquímicas: quando num poema falamos desse assunto, nós, que escrevemos em português, temos também em mente e no plano de significação imediata dos termos, a correspondência amorosa, o estabelecimento de elos afectivos entre leitor e autor. O poeta assinou um pacto consigo mesmo e com o público, tem um compromisso ao qual sente que deve responder. E a liberdade faz parte dessa relação de intersubjectividade, em que de um lado existe uma expectativa e do outro o desejo de correspondência. Eis o que lemos em "Génese" (1), o mais recente livro de António Ramos Rosa, no qual não havia razão para estar presente o tema da liberdade, se essa liberdade fosse apenas aquela que nos garante a democracia:
Escrever é procurar corresponder
Ainda que não se saiba a quê ou se esse quê existe
A nossa liberdade nasce de uma incerteza radical
E a sua metamorfose é a invenção de um espaço
De correspondências que visam uma esfera inviolável
Vivemos num mundo prático, utilitário, economicista. O nosso cérebro, mesmo poeta, só se satisfaz com argumentos contabilizáveis. Por isso, ainda o poeta vivia no Algarve, fez contas à vida, interrogou-se sobre o sentido da sua e do que escrevia. Olhando para o resultado das contas, tomou a decisão que lhe pareceu mais justa. Sabemos qual foi a opção de António Ramos Rosa: a liberdade do franciscanismo poético. Não uso sem critério a imagem de S. Francisco: na Natureza dos poemas não faltam pássaros com os quais o poeta comunica. E apesar de não transparecer na obra nenhum tema católico, a verdade é que esvoaçam anjos nela. Por muito que sejam Anjos de terra (15), e o poeta esclareça que os anjos que conhece são de erva e de silêncio (16), anjos são anjos, e vivem na cor da esperança.
Sem emprego, sem cargos públicos, a vida, dedicada apenas à arte, só podia oferecer-lhe dificuldades materiais. No entanto, essa marginalidade franciscana não impediu Ramos Rosa de ter voz activa nas convulsões políticas e sociais em geral, e em particular nas anteriores à revolução portuguesa do 25 de Abril. Pertenceu ao MUD juvenil, embora nunca tivesse militado em nenhum partido político. Por ter ido receber Maria Lamas a Portimão, com outros intelectuais, foi preso pela PIDE, a Polícia política de então (17).
Entende-se assim que o desprendimento por empregos ou cargos públicos, e mesmo a recusa em receber um prémio do SNI, correspondeu à rejeição de um sistema político anti-democrático. Se S. Francisco falava às aves e Santo António aos peixes, é porque com os homens não era possível o diálogo.
Insisto porém em que o tema da liberdade, embora vinculado a estas experiências de vida, não está preso a elas - é mais amplo e mais profundo. Eduardo Pitta considera os ensaios "emblemáticos de uma obra centrada na noção de liberdade" (18). Essa centralidade constitui uma rede que põe todos os poemas em comunicação, não apenas próprios como alheios. Tal como a linguagem, também a liberdade é interpelada quanto ao que de facto é e quanto aos seus limites. No seu último livro, "Constelações", a liberdade é condicional, depende do desaparecimento do sujeito na brancura, isto é, da anulação do ser na inexistência de cor:
Talvez a condição da liberdade seja esta abolição no branco
Que tornará possível a nudez de um começo o esplendor do novo (19)
A liberdade, em Ramos Rosa, é a possibilidade de sermos o que queremos ser. Resultado da soma de querer e poder, a liberdade é tão difícil de alcançar que se projecta no plano da utopia. Nos versos que acabei de citar, a abolição no branco não é absoluta: ela abre a porta à renovação, e por conseguinte ao esplendor cromático da vegetação. Esta brancura é o lugar de onde fala o sujeito poético, o vazio de sentido e de valores que José Augusto Mourão, em ensaio sobre Ramos Rosa publicado agora pela primeira vez, no TriploV, diz ser insuportável ao pensamento ocidental (20). A nossa natureza tem horror ao vazio, por isso lança sementes em todos os buracos.
Se não podemos dizer que António Ramos Rosa seja um poeta católico, apesar dos seus anjos, também não poderemos dizer que seja um poeta hermético. Mas que há na sua poesia uma obra ao verde, bem primaveril, lá isso, há, como vamos ver. |