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II BIENAL DE POESIA
SILVES. 2005
MARIA DO SAMEIRO BARROSO
As portas que Abril abriu - Mesa Redonda
A PALAVRA APRISIONADA

A poesia está dentro do silêncio, está em cada gesto, em cada olhar, está nas cidades, nos campos e no coração dos homens. Esteve nas ruas e na resistência à repressão, levada a cabo pelo antigo regime. Nesse tempo, as palavras límpidas acoitavam-se na bruma, os olhos desfaleciam e as centelhas da revolta pairavam.

Pela voz dos poetas, sabíamos que os pássaros sempre tinham sido livres, junto aos ribeiros, onde corriam águas cristalinas. Nesse tempo, quando os
plátanos rebentavam, na Primavera, o frio invadia-nos, um grito ecoava e as
cidades uivavam. O medo, a guerra, o exílio, as manifestações nas ruas, são
algumas vivências que recordo.

Os espectros rondavam o ar. Por vezes, os abutres eram visíveis, no lado escuro das prisões, e o negro tomava conta de nós. Num poema que se reporta à minha vivência, em 1974, imediatamente antes do 25 de Abril, recordo esse tempo. Era então estudante do 1º Ano de Medicina. À noite, era professora de Português.

UMA ROSA DE SCHUBERT
Extensas paisagens, uma rosa de Schubert, o sol corroendo
as nuvens, o líquen espesso defrontando os cadáveres
que apodreciam, num fulgor secreto de âmbar, açafrão,
o vazio invadindo o coração liquefeito,
impregnado de lírios e formol.
Estávamos em 1974. Respirava o céu cinzento e estudava
os cadáveres, no teatro anatómico.
À noite, colhia o fulgor das palavras mortas e lia,
porque era preciso ler José Gomes Ferreira.

Nesse tempo, as armadilhas da morte rondavam,
em paradas invisíveis, a respiração quebrava-se,
a minha vida era uma espécie de grito expressionista,
entretecido contra o céu supurado,
os cadáveres e os ninhos de ratazanas,
o cérebro incandescente bebendo a sede inexplicável,
o sangue, o soro, as resinas do éter.

Buscava o sopro, o infinito, o instinto, material paisagem
que refazia a noite e os bisturis do silêncio.
Ainda não lera os poemas de Gottfried Benn,
apenas palpava o oiro, o marfim, uma sela turca,
seguindo a luz, o liquor, as borboletas.
Escutando Schubert, memorizava ossos, músculos,
as veias cindidas.
Pela violeta central do osso esfenóide visionava
o corpo, o universo,
revolvendo a murta e os malmequeres.

Pelo fim da tarde, dava José Gomes Ferreira,
nas aulas de Português.
Misturavam-se os prados cobertos de azedas com o crânio
aberto, o céu cinzento, um grito, um rumor,
uma rosa de Schubert.

Estávamos em 1974.

— Era preciso subverter todas as coisas.
 

Nessa altura, identificávamo-nos com outros poetas, vítimas também da opressão. Nelly Sachs [1], que como é sabido, era de origem judaica e teve que emigrar para a Suécia, a fim de escapar ao holocausto nazi. A Nelly Sachs foi atribuído o Prémio Nobel, em 1966. Os seus poemas espelham todo o terror e a angústia que se abateu sobre o seu povo, erguendo-se, no
entanto, como hinos de fraternidade e paz.

AQUI VOS TOMO APRISIONADAS [2]

vós palavras
tal como soletrando-me até ao sangue
aprisionadas me tomais
sois as pulsações do meu coração
escrutai o meu tempo
este vazio designado pelos nomes

Deixai-me ver o pássaro
que canta
senão acreditarei que o amor se assemelha à morte -

OS CUMES DAS MONTANHAS[3]
beijar-se-ão
quando os homens abandonarem
as suas casernas de morte
e de arco íris
se coroar
o bálsamo de sete cores
da terra exangue –
ASSIM SAÍ
da palavra: [4]

Um pedaço da noite
alargada com braços
só uma balança
para pesar as fugas
este tempo de estrelas
afundado no pó
com trilhos marcados.

Agora é tarde.
O que é leve de mim se vai
e o que pesa também
os ombros carregam já
como nuvens distantes
braços e mãos
sem sinais de ajuda.

Negra continua a ser a cor do sofrimento em casa

então a noite
uma vez mais estende sobre mim o seu domínio.

 
Queríamos fugir para longe, muito longe e inventar apenas uma palavra: liberdade, que é como os poetas, não se deixa nunca aprisionar. O tema da
liberdade é caro a António Ramos Rosa, que traduziu recentemente um poema do poeta belga Maurice Carême[5].
O PÁSSARO
Quando ele apanhou o pássaro
cortou-lhe as asas.
O pássaro voou mais alto.

Quando voltou a apanhar o pássaro
cortou-lhe as patas.
O pássaro deslizou como uma barca.
Furioso, cortou-lhe o bico.
O pássaro cantou com o seu coração,
como canta uma harpa.

Então cortou-lhe o pescoço.
E de cada gota de sangue
Saiu um pássaro mais brilhante.

Nada continua a ser mais caro, ao Poeta, que a liberdade.
LIBERDADE É O TEU NOME [6]

Liberdade é o teu nome
eu não poderia conceber-te
se fosse um homem só
no meu deserto
se não desse um passo para um outro
se não o ouvisse no meu silêncio
respirar
se eu não quisesse ser o outro
entre os meus ombros
se não pudesse reconhecer
que o outro era eu o outro
que falava com este e com aquele
o outro com todos os outros
o outro que eram todos como um só
que não estava só em todos
e eras tu na liberdade de outra vida
a liberdade que respirava em todos nós
eras tu era por ti sob a asfixia

que eu e todos te reconhecíamos
nos reconhecíamos
eras tu ainda sem podermos hastear a tua bandeira
sem pudermos gritar o teu nome
abertamente na alegria da vitória
eras tu em nós através das fronteiras e dos muros
que respiravas em nós?
era por ti por todos nós que nós lutávamos

O grande dia que foi o 25 de Abril de 1974 foi evocado, 31 anos depois, por
altura desta Bienal.

NA LUZ DE UMA MANHÃ MAIS AZUL [7]
Vivíamos nas terras úmbrias da noite e da morte,
onde, por vezes, as aves morriam desgastadas,
na treva inglória das quimeras exaustas.
Vivíamos. Porque outra coisa não podíamos fazer.
De manhã, algumas pinchagens nas paredes
(logo apagadas), lembravam-nos que a vida era possível,
como uma primavera longínqua.
Na luz mortiça, o medo era profundo, devassava a alma,
o coração.

Até que a luz de uma manhã mais azul nos acordou
e, dos corredores soturnos, das grades de gelo,
do frio das prisões, um grito de liberdade ecoou.
e vida regressou, inesperada e autêntica.

Nas ruas, os homens exultaram, deram as mãos,
as ruas encheram-se de cor, as prisões esvaziaram-se,
o júbilo espalhou-se às árvores, aos pássaros,
os madrigais ecoaram,
e os amantes voltaram a amar, nessa primavera,

orvalhada de cravos, alegria e lágrimas..

Das portas que Abril abriu, muitos foram os ecos poéticos que nos chegaram.
Um deles é o de Maria Teresa Dias Furtado.
ABRIL ABRIU [8]
Abril abriu caminhos mil ,
Perfumados pela cor da liberdade.
Foi a flor em explosão de uma cidade
De artérias vibrantes de alegria:

A luz por fim surgia
E apagava medos e ciladas
E acendia as mais belas alvoradas,
Depois de um tempo de chumbo que doía.

Abril abriu os mares da verdade,
A vida quotidiana sem barreiras;
E assinalou como únicas fronteiras
Amar nos outros também a liberdade.
A liberdade foi amplamente vivida, amplamente sentida. Após o êxtase e as manifestações de júbilo, as convulsões políticas sucederam-se. Aos cânticos de liberdade sucederam-se as reflexões.
OS CRAVOS E A NEBLINA [9]
Também eu sonhei com cravos a ornamentar os olhos,
os capacetes e os canos das espingardas.
Trémula era então a luz dos dias, onde a seiva,
de súbito, fermentava, de súbito explodia.
Também eu sonhei com os cravos e o silêncio,
nas ruas da alegria.
Também eu sonhei com o 25 de Abril,
e com os seus dias coroados de um ébrio triunfo.
A poesia estava nas ruas, nas canções de Zeca Afonso,
nos murais de Vieira da Silva, nos poemas
de Sophia de Mello Breyner Andresen,
ou nas jornadas inéditas de vida, liberdade e luta.
Era tudo novo, as gentes, as cores, os partidos.
Gostava dos dias assim, da sua frescura turbulenta,
mas por vezes perigosa, quase explosiva.
Mas eram ainda dias cheios de cravos, fulgor.
Uma nova realidade instalava-se.
Podia-se fazer tudo, pôr em prática teorias, sonhos,
experimentar as fórmulas, no passado reprimidas.
E as tentativas sucederam-se, os golpes,
os contragolpes.
Com eles vieram os desvios, os tumultos, os excessos,
e as canções desvirtuaram-se.
Nas ruas, à deriva, andavam as canções da utopia,
entre cravos já murchos, cobertos de neblinas gastas.
São assim as utopias, nascem, crescem,
desenvolvem-se.
Depois gastam-se, desfazem-se,
deixando, atrás de si, uma aura de triunfo,
magia, descoberta.
e uma mecânica fantástica, que se desenvolve
e floresce ainda, dentro dos nossos olhos.
Delas restam os cravos, os cheiros e a intensidade
das cores.
Foi assim o 25 de Abril, há 30 anos.
São assim as revoluções, os cravos, as utopias.
Criam expectativa, deixam um travo doce-amargo,
e deixem saudades, muitas saudades,
sobretudo daquilo que, verdadeiramente,
nunca chegaram a ser.

E, entre o sonho e a utopia, passamos para Gabriela Mistral, chilena, Prémio
Nobel da Literatura , em 1945.
SOB O SOL DA PALAVRA [10]
Gabriela Mistral. Dela se dizia que o sangue
era uma concha e os lírios eram divinos,
grávidos de pranto.
À noite, as crianças bebiam tisanas, fantasmas.
Dos barcos, na tempestade, restavam sombras,
viveiros rosados.
Gritava então as açucenas, as ceifas trágicas,
por entre os astros, o sonho amado
— o sonho arado por Deus.

No mar, havia relâmpagos — o iodo nos olhos
e algas criando jasmim, romãs, aromas.
Na lua, havia vinho e alfazema.
Nos campos antigos de Deméter, grávidos de lua,
de Selene era o nácar, o orvalho, as nuvens silentes,
as sombras de veludo.

Sobre as colheitas bíblicas, o olhar implícito,
o peito em flor,
nas travessias do céu, o silêncio quebrava-se
e no gelo das montanhas derramava-se,
no rosto, nas cascatas, no peito encoberto,
e o ventre da luz descobria-se,
sob o sol da palavra, enraizada,

nas entranhas sonâmbulas.
 
Queremos felicitar a Dr.ª Isabel Soares, Presidente da Câmara Municipal de Silves, bem como a toda a sua equipa, que trabalhou, nesta iniciativa exemplar de apoio e divulgação da cultura. Felicitamos também o Poeta, Rui Mendes, autor da Palavra Ardente, pelo cunho pessoal que imprimiu a este evento.
 

[1] In Di Versos, Nº 8, Edições Sempre-em-pé, Vila da Feira, 2004.

[2] HIER NEHME ICH EUCH GEFANGENEN
ihr Worte
wie ihr mich buchstabieren bis aufs Blut
gefangen nehmt
ihr seid meine Herzschläge
zählt meine Zeit
diese mit Namen bezeichnete Leere

Laßt mich den Vogel sehen
der singt
sonst glaube ich die Liebe gleicht dem Tod –

Nelly Sachs, Gedichte, organização e posfácio de Hilde Domin, Suhrkampf Verlag, Frankfurt am Main, 1977, p. 13.

[3] Die Gipfel der Berge
werden sih küssen
wenn dis Menschen ihre Sterbehütten
verlassen
und mit den Regenbögen
sich bekränzen
dem siebenfarbigen Labsal
der verblutenden Erde –

Nelly Sachs, op. cit., p. 14.

[4] SO RANN ICH aus dem Wort:
Ein Stück der Nacht
mit Armen ausgebreitet
nur eine Waage
Fluchten abzuwiegen
diese Sternenzeit
versenkt in Staub
mit den gesetzten Spuren.

Jetzt ist es spät.
Das Leichte geht aus mir
und auch das Schwere
die Schultern fahren schon
wie Wolken fort
Arme und Hände
ohne Traggebärde.

Tiefdunkel ist des Heimwehs Farbe immer

so nimmt die Nacht
mich wieder in Besitz.

Nelly Sachs, op. cit., p. 103.

[5] «L’oiseau

Quand il eut pris l’oiseau,
Le lui coupa les ailes.
L’oiseau vola encore plus haut.

Quand il reprit l’oiseau,
Illui coupa les pattes,
L’oiseau glissa tel une barque.

Ragueur, il lui coupa le bec,
L’oiseau chanta avec
Son coær comme chante une harpe.»

Maurice Carême, Liliane Wouters, Panorame de la Poèsie Francaise de Belgique. Editions Jacques Antoine, Bruxelas, 1976, p. 94 (tradução inédita de António Ramos Rosa).

[6] António Ramos Rosa, in Na Liberdade, Antologia Poética, 30 Anos – 25 de
Abril, Coordenação de Jorge Velhote, Nicolau Saião e Nuno Rebocho, Garça Editores, Peso da Régua, 2004, p. 45.

[7] Maria do Sameiro Barroso, in II Bienal de Poesia I Silves Capital da Palabra Ardente, Organização Câmara Municipal de Silves, Silves, 2005, p. 62.

[8] In Palavra em Mutação, nº 5, Os 30 Anos do 25 de Abril, Primavera & Verão, 2004, Porto, p. 93.

[9] Maria do Sameiro Barroso, in Palavra em Mutação, op. cit. pg. 85 e II Bienal de Poesia I Silves, p. 63.

[10] Maria do Sameiro Barroso, in II Bienal de Poesia I Silves, p. 62.

 

Maria do Sameiro Barroso é licenciada em Filologia Germânica e em Medicina e Cirurgia, pela Universidade Clássica de Lisboa. Exerce a sua actividade profissional como médica, Especialista em Medicina Geral e Familiar. Em 1987 iniciou a sua actividade literária, tendo publicado livros de poesia e colaborado em antologias e revistas literárias. A partir de 2001, a sua actividade estendeu-se à tradução e ensaio, tendo publicado, em revistas literárias e académicas.

Em 2002 iniciou a sua actividade de investigadora, na área da História da Medicina, tendo apresentado e publicado trabalhos, nesta área.

SILVES, CAPITAL DA PALAVRA ARDENTE