Estranha pergunta esta para se fazer a um poeta! Mas não desistamos já.
Aproveitemos a deixa para falar de poesia.
São conhecidas muitas tentativas no sentido de compreender o fenómeno
poético e lhe encontrar uma definição, desde Aristóteles até autores mais
próximos de nós como Benedeto Croce, Roman Jakobson, Jorge Riechmann, Maria
Zambrano, Octávio Paz, João Cabral de Melo Neto, Carlos de Oliveira, etc.,
embora alguns estejam mais preocupados com o acto da criação poética do que,
propriamente, com uma definição de poesia.
Uma coisa me parece óbvia: é que na hipótese, pouco provável, de alguma vez
ter sido possível encontrar uma definição para a poesia ela nunca poderia
abarcar toda a história da poesia ou seja uma definição que servisse a
poesia do século XIII (trovadores) nunca poderia servir a poesia barroca ou
a poesia dos finais do século XIX (simbolismo, decadentismo, etc). Ora isto
o disse com muito mais autoridade Roman Jakobson: “a noção de poesia é
instável e variável no curso do tempo” [1] Acrescenta o linguista russo,
introduzindo o conceito de poeticidade, [que se esta] aparece numa obra
literária, falaremos de poesia.
A segunda observação que gostaria de fazer é que, na minha opinião, a
literatura em geral e a poesia em particular deveriam ser consideradas como
artes (tais a arquitectura, a escultura, a pintura, o cinema, a fotografia,
a música, a dança), fugindo à clássica divisão em artes e letras, e então
podemos falar de linguagens diferenciadas a que correspondem variados
códigos para as diferentes artes, de gramáticas e em particular de sintaxes,
e com isso poderemos aproximar aspectos formais através de certas figuras de
estilo.
Tomando como premissa que a poesia é uma das várias artes, então poderemos
aplicar à sua actividade aquelas palavras de Pedro Barbosa [2] [...] a
actividade artística, [...] constitui um conhecimento empático do mundo,
expresso numa linguagem de dominância simbólica, através de uma mensagem
materializada pelo artista na “obra de arte” a qual alia um fazer (uma
técnica, um estilo) a um saber (gnosestasia).
E o que é o símbolo? O mesmo Pedro Barbosa no-lo diz a p. 39 da obra citada:
[...] o símbolo não é outra coisa senão uma espécie de ecrã, vidro fosco ou
lente transfiguradora, que nos permite apreender, mesmo que a nível
subconsciente, determinados conteúdos mentais excessivamente violentos para que o nosso ego os possa suportar directamente.
E eu creio que é mais ou menos isto que Carlos de Oliveira nos pretende
comunicar quando reflecte no poema Lavoisier [3][...] Na poesia [...] nada
se perde / ou cria, / tudo se transforma ou no poema Filtro: [4] O poema /
filtra / cada imagem / já destilada / pela distância, / deixa-a / mais
límpida.
Fique-nos para já esta ideia de que o poeta parte de uma certa realidade
(exterior a si ou não) e transforma-a, com a ajuda das palavras, no poema.
Para Sophia de Mello Breyner Andresen, [...] a poesia é a minha explicação
com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no
real, o meu encontro com as vozes e as imagens. [5]
Para outros, a poesia é uma forma de compensação. Eugénio Lisboa [6] em
Crónica dos Anos da Peste refere a p.199 que [...] O artista, dizia-o já o
eminente Valéry, compensa-se como pode daquilo que a vida lhe negou. A obra
é precisamente universal na medida em que o homem que a produz é
irremediavelmente particular. A arte é a tentativa de romper, noutro plano,
as limitações que a vida nos impõe ou citando ainda o mesmo autor na mesma
obra (p. 193): Enquanto falamos, vamos esquecendo que a morte nos espreita.
Mas, o que é, ao fim e ao cabo a poesia? O que é que a distingue da prosa?
Eu creio que a passagem entre uma e outra é tão discreta que se torna
impossível uma classificação rigorosa em muitos casos. Muitos textos de René
Char são poesia ou prosa? E os de Francis Ponge? E a mesma pergunta se
poderá fazer em relação a Jorge Luís Borges, a Herberto Helder, a Tonino
Guerra, etc., etc. Não me parece, contudo, que isso seja muito grave: estamos num tempo de mistura em que a noção clássica de géneros perdeu muito
do seu significado inicial.
Há uma observação curiosa de António Ramos Rosa em que ele nos diz [que] o
que distingue o poeta é a sua capacidade de relacionar livremente (isto é,
inventando) o que aparentemente não é relacionável. Se considerarmos poeta
como uma metonímia relativamente a poesia teremos aqui uma eventual proposta
de definição.
Por outro lado Massaud Moisés [7] refere-se ao problema nos seguintes termos
(p. 41):
O poema em versos pode conter poesia ou não, dependendo de por meio
dele o “eu” se revelar: se o “eu” se expressar por intermédio de palavras
polivalentes, o poema conterá poesia. Se não, o fenómeno poético estará
ausente, apesar de toda a aparência em contrário.
Seja como for, poderemos sempre tomar em atenção, a título fundamentalmente
didáctico, quatro aspectos que têm a ver com a poesia:
a) a palavra como
possuidora de significado,
b) a palavra como suporte físico desse
significado (o significante) não esquecendo que não é possível separar estes
dois aspectos,
c) o modo como as palavras se articulam umas com as outras
(quer em termos de significado, quer em termos de qualidade prosódica) e
ainda
d) o aspecto gráfico que o poema finalmente apresenta.
Quando o poeta emprega uma determinada palavra, ela é sempre ou quase sempre
portadora de vários significados e não de um só; neste caso, um discurso
feito com palavras monossignificativas seria um discurso denotativo, típico
da linguagem científica. O autor pode ter em mente um certo significado mais
do que outro mas o leitor é livre de descobrir outras pistas e aí começa a
desenhar-se aquilo a que Umberto Eco [8] chamou a obra aberta.
Quanto ao significante, é ele que condiciona certos aspectos formais quais
sejam a musicalidade e o ritmo. Como já se disse, não se pode isolar um do
outro embora algumas experiências ponham em evidência os aspectos fónicos
mais do que outros (exemplo: os Sonetos a Afrodite Anadiómena de Jorge de
Sena). Certos autores revelaram uma preocupação muito forte com a música do
poema (Eugénio de Andrade, Paul Verlaine para quem a poesia era de la
musique avant toute chose, Edgar Allan Poe, particularmente em Annabell Lee
e em The Bells, T. S. Eliot sobretudo em Four Quartets). Quem não se lembra
em Four Quartets destes versos: Words move, music moves / Only in time; but
that which is only living / Can only die. Words, after speech, reach / Into
the silence. [...]
Afonso Duarte, por seu lado, dizia que a música [era] a lógica do verso
enquanto Paul Valéry afirmava [que] a poesia é uma hesitação prolongada
entre o sentido e o som (citação de E. Lisboa) [9].
No que diz respeito ao modo como as palavras se articulam umas com as outras
esse é um aspecto fulcral pois qualquer poema tem sempre mais do que uma
palavra.
Quando duas palavras são colocadas lado a lado, o resultado em
termos de significação não é a mera soma dos significados das duas palavras
mas esse somatório vê-se aumentado por relações de proximidade, isto é, cada
uma comunica à outra um novo significado. Veja-se, a título de exemplo o
poema Coração do dia de Eugénio de Andrade [10] :
Olhas-me ainda, não sei se morta:
desprendida
de inumeráveis, melancólicos muros;
só lembrada
que fomos jovens e formosos,
alados e frescos e diurnos.
De que lado adormeces?
Alma: nada te dói?
Não te dói nada, eu sei;
agora o corpo é formosura
urgente de ser rio:
ao meu encontro voa.
Nada te fere, nada te ofende.
Numa paisagem de água,
tranquilamente,
estendes os teus ramos
que só a brisa afaga.
A brisa e os meus dedos
fragrantes do teu rosto.
Mãe, já nada nos separa.
Na tua mão me levas,
uma vez mais,
ao bosque onde me sento
à tua sombra.
--Como tu cresceste!—
suspiras.
Alma: como eu cresci.
E como tu és
Agora
Pequena, frágil, orvalhada.
É um poema em que o poeta fala da mãe. Atentemos no 3º verso: ora, é óbvio
que numa linguagem denotativa, não se pode falar de melancólicos muros; o
adjectivo melancólicos não se ajusta a muros. Melancólicos são os homens e
as mulheres, porventura, se possa dizer também de alguns animais. Portanto
os melancólicos muros têm um sentido acrescido que implica o seu
conhecimento por parte do homem. Esses muros têm qualquer coisa que
comunicam ao homem melancolia. Há aqui, pois, uma subversão, este não é o
discurso do homem da rua, não é um discurso do quotidiano, é um discurso
próprio de um poeta. Creio que este exemplo é suficientemente significativo
e torna mais claro aquilo que eu tinha em mente dizer.
É quando se estabelecem essas relações de proximidade e insuspeitadas
analogias surgem que se fala de metáforas, certamente, o principal operador
ao nível do significado. Diz Pedro Barbosa (op. cit., p.46) invocando Paul
Ricoeur [que] a metáfora é o procedimento linguístico [...] dentro do qual
se deposita o poder simbólico e mais adiante (p.56) acrescenta [que] o
símbolo literário [...] visa a riqueza plurissignificativa à custa da sua
própria ambiguidade.
Em relação ao aspecto gráfico, ele foi sempre importante, pois os versos
ajudam a marcar o ritmo e os versos raramente ultrapassam as 12 sílabas e
daí que o verso tenha normalmente um comprimento inferior a uma linha; então
o poema aparece geralmente alinhado à esquerda mas já no século XIX era
vulgar o poema ter um alinhamento central, coisa que hoje é muito fácil de
fazer com os computadores. Mas esta(s) regra(s) gera(is) encontram excepções
entre muitos poetas barrocos [11] tendo tido uma importância grande no
século XX, especialmente no Brasil com o movimento concretista ao qual
aderiram alguns poetas portugueses como Ana Hatherly, E. M. de Melo e Castro
Jaime Salazar Sampaio, Salette Tavares e outros. Os aspectos gráficos
ganham aí grande variedade: aparecem palavras escritas segundo círculos,
espirais, quadrados, versos escritos verticalmente como em Pluie de
Apollinaire [12].
Passámos em revista alguns aspectos que nos parecem relevantes para uma
definição de poesia mas o que acontece é que a poesia a partir da segunda
metade do século XX adquire características que levam poetas como Alexandre
O’Neill e João Cabral de Melo Neto a reflectirem sobre a efemeridade das
definições e o carácter cada vez mais subtraído a regras da arte, em geral,
e da poesia, em particular. O primeiro diz num certo poema: [13] [...] que a regra é não haver regra, // a não ser a de cada um, / com sua rima, seu
ritmo, / não fazer bom e bonito, / mas fazer bom e expressivo [...].
Quanto a João Cabral de Melo Neto, ele é autor de um ensaio [14] no qual a p.
7 adianta:
É evidente que numa literatura como a de hoje, que parece haver substituído
a preocupação de comunicar pela preocupação de exprimir-se, anulando, do
momento da composição, a contraparte do autor na relação literária, que é o
leitor e sua necessidade, a existência de uma teoria da composição é
inconcebível.
O autor de hoje trabalha à sua maneira, à maneira que ele
considera mais conveniente à sua expressão pessoal. E três linhas adiante: Cada poeta tem sua poética. Mas como ele próprio diz a p. 25 a propósito do
leitor, e ninguém escreve para a gaveta embora alguns digam que sim: Pois o
homem que lê quer ler-se no que lê, quer encontrar-se naquilo que ele é
incapaz de fazer.
É verdade que João Cabral de Melo Neto não tenta nunca estabelecer uma
definição para a poesia, a sua preocupação vai mais no sentido da criação
poética e dos objectivos da poesia mas de qualquer modo penso que as
citações que dele fiz têm pertinência neste debate.
Quanto a Massaud Moisés (op. cit) diz a p. 114: A poesia é a expressão do
“eu” por meio de metáforas, uma definição que tem, pelo menos, o mérito de
ser curta.
Finalmente, poderíamos tentar um esboço de conclusão e diríamos:
A poesia é uma arte que utiliza um código linguístico dando especial relevo
a um texto polissémico servido, ao nível do significado, fundamentalmente,
pela metáfora s.l. a que corresponde uma prosódia adequada à veiculação de
determinadas ideias; a sua unidade é o verso, reconhecendo embora as
dificuldades decorrentes das transições que se operam de forma contínua e
que tornam impossível a inexistência de excepções ou se preferirem, a
existência de limites mal definidos (ex: a chamada poesia em prosa ou prosa
poética). A poesia deve ser ainda uma expressão de total liberdade e ao
poeta cabe escolher e tratar os temas que muito bem entender, sejam de
natureza ideológica ou não. A poesia é o género privilegiado (não único) de
afirmação do eu pelo emprego sistemático da 1ª pessoa do singular ou se
quiserem, é na poesia que o sujeito é mais intenso.
Fiz-me entender? |
[1] Massaud Moisés, A Criação Poética, Ed. Un. S. Paulo, 1977 p. 35 ou
Qu’est-ce que la poésie?, Poétique, Paris, Seuil, 1971
[2] Pedro Barbosa, Metamorfoses do Real, ed. Afrontamento, 1995,p.219
[3] Carlos de Oliveira, Sobre o Lado Esquerdo
[4] Carlos de Oliveira, Micropaisagem
[5] Sophia de Mello Breyner Andresen, Arte Poética, 1967
[6] Eugénio Lisboa, Crónica dos Anos da Peste, IN-CM, 1996, p.199
[7] Massaud Moisés, A Criação Poética, Editora da Universidade de S. Paulo,
1977
[8] Umberto Eco, A Obra Aberta, Difel, 1990
[9] Eugénio Lisboa, Crónica dos Anos da Peste, IN-CM, 1996, p. 127
[10] Eugénio de Andrade, Coração do dia in Poesia e Prosa, I vol., Círculo
de Leitores, 1987
[11] Ana Hatherly, A Casa das Musas, Editorial Estampa, 1995
[12] Guillaume Apollinaire, Calligrammes
[13] Alexandre O’Neill, No Reino da Dinamarca, Guimarães Editores, 1967
[14] João Cabral de Melo Neto, Poesia e Composição – a inspiração e o trabalho de
arte, Angelus Novus Editora, 2003 |