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II BIENAL DE POESIA
SILVES. 2005
LUÍS SERRANO
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O QUE É A POESIA
 

Estranha pergunta esta para se fazer a um poeta! Mas não desistamos já. Aproveitemos a deixa para falar de poesia.

São conhecidas muitas tentativas no sentido de compreender o fenómeno poético e lhe encontrar uma definição, desde Aristóteles até autores mais próximos de nós como Benedeto Croce, Roman Jakobson, Jorge Riechmann, Maria Zambrano, Octávio Paz, João Cabral de Melo Neto, Carlos de Oliveira, etc., embora alguns estejam mais preocupados com o acto da criação poética do que, propriamente, com uma definição de poesia.
Uma coisa me parece óbvia: é que na hipótese, pouco provável, de alguma vez ter sido possível encontrar uma definição para a poesia ela nunca poderia abarcar toda a história da poesia ou seja uma definição que servisse a poesia do século XIII (trovadores) nunca poderia servir a poesia barroca ou a poesia dos finais do século XIX (simbolismo, decadentismo, etc). Ora isto o disse com muito mais autoridade Roman Jakobson: “a noção de poesia é instável e variável no curso do tempo” [1] Acrescenta o linguista russo, introduzindo o conceito de poeticidade, [que se esta] aparece numa obra literária, falaremos de poesia.

A segunda observação que gostaria de fazer é que, na minha opinião, a literatura em geral e a poesia em particular deveriam ser consideradas como artes (tais a arquitectura, a escultura, a pintura, o cinema, a fotografia, a música, a dança), fugindo à clássica divisão em artes e letras, e então podemos falar de linguagens diferenciadas a que correspondem variados códigos para as diferentes artes, de gramáticas e em particular de sintaxes, e com isso poderemos aproximar aspectos formais através de certas figuras de estilo.

Tomando como premissa que a poesia é uma das várias artes, então poderemos aplicar à sua actividade aquelas palavras de Pedro Barbosa [2] [...] a actividade artística, [...] constitui um conhecimento empático do mundo, expresso numa linguagem de dominância simbólica, através de uma mensagem materializada pelo artista na “obra de arte” a qual alia um fazer (uma técnica, um estilo) a um saber (gnosestasia).

E o que é o símbolo? O mesmo Pedro Barbosa no-lo diz a p. 39 da obra citada:

[...] o símbolo não é outra coisa senão uma espécie de ecrã, vidro fosco ou lente transfiguradora, que nos permite apreender, mesmo que a nível subconsciente, determinados conteúdos mentais excessivamente violentos para que o nosso ego os possa suportar directamente.

E eu creio que é mais ou menos isto que Carlos de Oliveira nos pretende comunicar quando reflecte no poema Lavoisier [3][...] Na poesia [...] nada se perde / ou cria, / tudo se transforma ou no poema Filtro: [4] O poema / filtra / cada imagem / já destilada / pela distância, / deixa-a / mais límpida.

Fique-nos para já esta ideia de que o poeta parte de uma certa realidade (exterior a si ou não) e transforma-a, com a ajuda das palavras, no poema.

Para Sophia de Mello Breyner Andresen, [...] a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. [5]

Para outros, a poesia é uma forma de compensação. Eugénio Lisboa [6] em Crónica dos Anos da Peste refere a p.199 que [...] O artista, dizia-o já o eminente Valéry, compensa-se como pode daquilo que a vida lhe negou. A obra é precisamente universal na medida em que o homem que a produz é irremediavelmente particular. A arte é a tentativa de romper, noutro plano, as limitações que a vida nos impõe ou citando ainda o mesmo autor na mesma obra (p. 193): Enquanto falamos, vamos esquecendo que a morte nos espreita.

Mas, o que é, ao fim e ao cabo a poesia? O que é que a distingue da prosa?

Eu creio que a passagem entre uma e outra é tão discreta que se torna impossível uma classificação rigorosa em muitos casos. Muitos textos de René Char são poesia ou prosa? E os de Francis Ponge? E a mesma pergunta se poderá fazer em relação a Jorge Luís Borges, a Herberto Helder, a Tonino Guerra, etc., etc. Não me parece, contudo, que isso seja muito grave: estamos num tempo de mistura em que a noção clássica de géneros perdeu muito do seu significado inicial.

Há uma observação curiosa de António Ramos Rosa em que ele nos diz [que] o que distingue o poeta é a sua capacidade de relacionar livremente (isto é, inventando) o que aparentemente não é relacionável. Se considerarmos poeta como uma metonímia relativamente a poesia teremos aqui uma eventual proposta de definição.

Por outro lado Massaud Moisés [7] refere-se ao problema nos seguintes termos (p. 41):

O poema em versos pode conter poesia ou não, dependendo de por meio dele o “eu” se revelar: se o “eu” se expressar por intermédio de palavras polivalentes, o poema conterá poesia. Se não, o fenómeno poético estará ausente, apesar de toda a aparência em contrário.

Seja como for, poderemos sempre tomar em atenção, a título fundamentalmente didáctico, quatro aspectos que têm a ver com a poesia:

a) a palavra como possuidora de significado,

b) a palavra como suporte físico desse significado (o significante) não esquecendo que não é possível separar estes dois aspectos,

c) o modo como as palavras se articulam umas com as outras (quer em termos de significado, quer em termos de qualidade prosódica) e ainda

d) o aspecto gráfico que o poema finalmente apresenta.

Quando o poeta emprega uma determinada palavra, ela é sempre ou quase sempre portadora de vários significados e não de um só; neste caso, um discurso feito com palavras monossignificativas seria um discurso denotativo, típico da linguagem científica. O autor pode ter em mente um certo significado mais do que outro mas o leitor é livre de descobrir outras pistas e aí começa a desenhar-se aquilo a que Umberto Eco [8] chamou a obra aberta.

Quanto ao significante, é ele que condiciona certos aspectos formais quais sejam a musicalidade e o ritmo. Como já se disse, não se pode isolar um do outro embora algumas experiências ponham em evidência os aspectos fónicos mais do que outros (exemplo: os Sonetos a Afrodite Anadiómena de Jorge de Sena). Certos autores revelaram uma preocupação muito forte com a música do poema (Eugénio de Andrade, Paul Verlaine para quem a poesia era de la musique avant toute chose, Edgar Allan Poe, particularmente em Annabell Lee e em The Bells, T. S. Eliot sobretudo em Four Quartets). Quem não se lembra em Four Quartets destes versos: Words move, music moves / Only in time; but that which is only living / Can only die. Words, after speech, reach / Into the silence. [...]

Afonso Duarte, por seu lado, dizia que a música [era] a lógica do verso enquanto Paul Valéry afirmava [que] a poesia é uma hesitação prolongada entre o sentido e o som (citação de E. Lisboa) [9].

No que diz respeito ao modo como as palavras se articulam umas com as outras esse é um aspecto fulcral pois qualquer poema tem sempre mais do que uma palavra.

Quando duas palavras são colocadas lado a lado, o resultado em termos de significação não é a mera soma dos significados das duas palavras mas esse somatório vê-se aumentado por relações de proximidade, isto é, cada uma comunica à outra um novo significado. Veja-se, a título de exemplo o poema Coração do dia de Eugénio de Andrade [10] :

Olhas-me ainda, não sei se morta:
desprendida
de inumeráveis, melancólicos muros;
só lembrada
que fomos jovens e formosos,
alados e frescos e diurnos.

De que lado adormeces?
Alma: nada te dói?

Não te dói nada, eu sei;
agora o corpo é formosura
urgente de ser rio:
ao meu encontro voa.

Nada te fere, nada te ofende.
Numa paisagem de água,
tranquilamente,
estendes os teus ramos
que só a brisa afaga.
A brisa e os meus dedos
fragrantes do teu rosto.

Mãe, já nada nos separa.
Na tua mão me levas,
uma vez mais,
ao bosque onde me sento
à tua sombra.
--Como tu cresceste!—
suspiras.

Alma: como eu cresci.
E como tu és
Agora
Pequena, frágil, orvalhada.

É um poema em que o poeta fala da mãe. Atentemos no 3º verso: ora, é óbvio que numa linguagem denotativa, não se pode falar de melancólicos muros; o adjectivo melancólicos não se ajusta a muros. Melancólicos são os homens e as mulheres, porventura, se possa dizer também de alguns animais. Portanto os melancólicos muros têm um sentido acrescido que implica o seu conhecimento por parte do homem. Esses muros têm qualquer coisa que comunicam ao homem melancolia. Há aqui, pois, uma subversão, este não é o discurso do homem da rua, não é um discurso do quotidiano, é um discurso próprio de um poeta. Creio que este exemplo é suficientemente significativo e torna mais claro aquilo que eu tinha em mente dizer.

É quando se estabelecem essas relações de proximidade e insuspeitadas analogias surgem que se fala de metáforas, certamente, o principal operador ao nível do significado. Diz Pedro Barbosa (op. cit., p.46) invocando Paul Ricoeur [que] a metáfora é o procedimento linguístico [...] dentro do qual se deposita o poder simbólico e mais adiante (p.56) acrescenta [que] o símbolo literário [...] visa a riqueza plurissignificativa à custa da sua própria ambiguidade.

Em relação ao aspecto gráfico, ele foi sempre importante, pois os versos ajudam a marcar o ritmo e os versos raramente ultrapassam as 12 sílabas e daí que o verso tenha normalmente um comprimento inferior a uma linha; então o poema aparece geralmente alinhado à esquerda mas já no século XIX era vulgar o poema ter um alinhamento central, coisa que hoje é muito fácil de fazer com os computadores. Mas esta(s) regra(s) gera(is) encontram excepções entre muitos poetas barrocos [11] tendo tido uma importância grande no século XX, especialmente no Brasil com o movimento concretista ao qual aderiram alguns poetas portugueses como Ana Hatherly, E. M. de Melo e Castro Jaime Salazar Sampaio, Salette Tavares e outros. Os aspectos gráficos ganham aí grande variedade: aparecem palavras escritas segundo círculos, espirais, quadrados, versos escritos verticalmente como em Pluie de Apollinaire [12].

Passámos em revista alguns aspectos que nos parecem relevantes para uma definição de poesia mas o que acontece é que a poesia a partir da segunda metade do século XX adquire características que levam poetas como Alexandre O’Neill e João Cabral de Melo Neto a reflectirem sobre a efemeridade das definições e o carácter cada vez mais subtraído a regras da arte, em geral, e da poesia, em particular. O primeiro diz num certo poema: [13] [...] que a regra é não haver regra, // a não ser a de cada um, / com sua rima, seu ritmo, / não fazer bom e bonito, / mas fazer bom e expressivo [...].

Quanto a João Cabral de Melo Neto, ele é autor de um ensaio [14] no qual a p. 7 adianta:

É evidente que numa literatura como a de hoje, que parece haver substituído a preocupação de comunicar pela preocupação de exprimir-se, anulando, do momento da composição, a contraparte do autor na relação literária, que é o leitor e sua necessidade, a existência de uma teoria da composição é inconcebível.

O autor de hoje trabalha à sua maneira, à maneira que ele considera mais conveniente à sua expressão pessoal. E três linhas adiante: Cada poeta tem sua poética. Mas como ele próprio diz a p. 25 a propósito do leitor, e ninguém escreve para a gaveta embora alguns digam que sim: Pois o homem que lê quer ler-se no que lê, quer encontrar-se naquilo que ele é incapaz de fazer.

É verdade que João Cabral de Melo Neto não tenta nunca estabelecer uma definição para a poesia, a sua preocupação vai mais no sentido da criação poética e dos objectivos da poesia mas de qualquer modo penso que as citações que dele fiz têm pertinência neste debate.

Quanto a Massaud Moisés (op. cit) diz a p. 114: A poesia é a expressão do “eu” por meio de metáforas, uma definição que tem, pelo menos, o mérito de ser curta.

Finalmente, poderíamos tentar um esboço de conclusão e diríamos: A poesia é uma arte que utiliza um código linguístico dando especial relevo a um texto polissémico servido, ao nível do significado, fundamentalmente, pela metáfora s.l. a que corresponde uma prosódia adequada à veiculação de determinadas ideias; a sua unidade é o verso, reconhecendo embora as dificuldades decorrentes das transições que se operam de forma contínua e que tornam impossível a inexistência de excepções ou se preferirem, a existência de limites mal definidos (ex: a chamada poesia em prosa ou prosa
poética). A poesia deve ser ainda uma expressão de total liberdade e ao poeta cabe escolher e tratar os temas que muito bem entender, sejam de natureza ideológica ou não. A poesia é o género privilegiado (não único) de afirmação do eu pelo emprego sistemático da 1ª pessoa do singular ou se quiserem, é na poesia que o sujeito é mais intenso.

Fiz-me entender?

 

[1] Massaud Moisés, A Criação Poética, Ed. Un. S. Paulo, 1977 p. 35 ou Qu’est-ce que la poésie?, Poétique, Paris, Seuil, 1971
[2] Pedro Barbosa, Metamorfoses do Real, ed. Afrontamento, 1995,p.219
[3] Carlos de Oliveira, Sobre o Lado Esquerdo
[4] Carlos de Oliveira, Micropaisagem
[5] Sophia de Mello Breyner Andresen, Arte Poética, 1967
[6] Eugénio Lisboa, Crónica dos Anos da Peste, IN-CM, 1996, p.199
[7] Massaud Moisés, A Criação Poética, Editora da Universidade de S. Paulo, 1977
[8] Umberto Eco, A Obra Aberta, Difel, 1990
[9] Eugénio Lisboa, Crónica dos Anos da Peste, IN-CM, 1996, p. 127
[10] Eugénio de Andrade, Coração do dia in Poesia e Prosa, I vol., Círculo de Leitores, 1987
[11] Ana Hatherly, A Casa das Musas, Editorial Estampa, 1995
[12] Guillaume Apollinaire, Calligrammes
[13] Alexandre O’Neill, No Reino da Dinamarca, Guimarães Editores, 1967
[14] João Cabral de Melo Neto, Poesia e Composição – a inspiração e o trabalho de arte, Angelus Novus Editora, 2003

 
 
Luís Serrano nasceu em Évora em 1938. Licenciado em Ciências Geológicas (UC), foi investigador da Universidade de Aveiro de 1975 a 2001. Foi um dos fundadores da Revista de Poesia Êxodo (1961). Tem colaboração dispersa em diversas páginas literárias e nas revistas Vértice e Letras e Letras. Está também representado em várias antologias. Publicou Poemas do Tempo Incerto (Vértice, 1983), Entre Sono e Abandono (Estante Editora, 1990), As Casas Pressentidas (edição de autor, 1999 uma das obras premiadas com o Prémio Nacional Guerra Junqueiro) e Nas Colinas do Esquecimento (Campo das Letras, 2004)

 

SILVES, CAPITAL DA PALAVRA ARDENTE