22 Poemas inéditos

 

 

         

 

 

 

 

 

MANOEL TAVARES RODRIGUES-LEAL

22 poemas inéditos – 1969-74
Este conjunto de poemas inclui várias fases do processo criativo de
Manoel Leal (1941-2016), entre os 28 e os 33 anos.
Luís de Barreiros Tavares (Compilou e organizou).


De um caderno sem título


Ancas acendem

a cidade

 

agudas ancas

dançando

 

ancas ou âncoras

Lx. 5-10-69

 

Azedas as luzes azuis

difusos dias nos cafés

beijo a boca de hoje

nos olhares das horas

Lx. 4-12-69

 

Lindo

o dia

dilui-se

nos dedos

 

mas ladra

ou arde

em redor

a dor

Lx. 17-6-70

 

De ontem o tom de outono tecendo o corpo

odor de dia doendo rente no interior dos instantes

Lx. 24-6-70

 

Ângulos agudos desaguam

na tarde               degraus

de tempo duro

 

o grito gretando a boca

Lx. 26-6-70

 

As paredes vis do dia vives

pardas paredes em que te perdes

o silêncio secunda os segundos

os dedos dispersam-se no tempo

Lx. 28-6-70

 

O anverso

o reverso

do verso

 

o revés do verso             severo

Lx. 5-7-70

 

A música modela o momento

e o momento movimenta-se

 

ondas de misteriosa melodia medular

ou de movimento

 

a música mutilando os minutos

os olhos ocultando planícies de espelhos

Lx. 10-7-70

 

Vagas de fogo ou de corpos

fugindo o corpo do fogo

fluindo o fogo do corpo

Lx. 16-7-70

 

Tarde retida na retina

repara na praia      água erguida à altura dos olhos

mãos mansas de mar aflorando a areia

 

Lx. 30-7-70

 

A atenção acende-se

no centro das coisas

 

amortece-se em traço

 

extingue-se

 

aritmética da atenção

Lx. 6-10-70

 

De um caderno sem título 

Psicologia do Poema I

 

Labirinto de letras nos lábios

também latitude de sons

 

arestas de tardes

cópula vertical de vogais e consoantes no papel na pele

intersecção intensa de passos e pássaros

o poema

 

Lx. 20-2-70

 

Psicologia do Poema II

 

O paladar da palavra

o soco do seu som      sua árdua ansiedade

os arbustos ou arabescos das sílabas nos lábios

 

palavra ou pólvora acesa

Lx. 25-2-70

  

Psicologia do Poema III

 

No papel branco planto estas letras

penosas letras de tempo plano

de pranto

Lx. 20-5-70

 

De um caderno sem título composto de três poemas

I 

No ventre das mulheres rosas rubras florescem:

é uma metamorfose antiquíssima e recente.

Ó sexo sagrado através do magma ó cio ocioso que ousas.

Assim, forjas o alfabeto do silêncio: como os deuses te esquecem.

 

Lx. 9-11-74 . Casa do Castelo [propriedade da família do autor] – 12-8-75

II

 

Sesimbra é um sítio secreto

onde os dedos do mar despertam

a viagem antiquíssima das águas.

Sesimbra – 12-11-74

 

III

 

(Revelação)

 

Os dias nascem adiados (em cinzas) oh cidade revelada

que nos ombros de ouro – no crânio – se dispersa

experiência do metal dos dedos – água ou guerra

ou terra de corpo desesperado que no corpo se lavra

Lx. 29-9-73

 

Caderno Dentes de Morte

Composto de quatro poemas 

I

 

Adolescentes a sul as luzes da fria baía da noite.

Que a invente em vão quem a fende. Quente barco

ou subtil arco de cabelo azul. A sul

as sílabas lavradas (chamas) dos lábios ou baía. Amas

 

O perfil inicial da lenta pequena praia da infância. Apagam-se

o perfil ferido e as chamas, ou escamas.

 

Setúbal – 22-4-73

 

II 

(Carta sem endereço)

 

Eis a enorme a antiquíssima solidão.

O problema que se me depara, agora, põe-se em saber vivê-la (revivê-la e revelá-la) castamente.

Acreditem: de nada serve revoltar-me.

Atingi o auge da angústia – radical e quotidiana – e da memória.

Anunciar coisas elaborar planos se me assiste esta impossibilidade de concretizá-las ou cumpri-las?

A anulação eterniza-se.

Falta-me a chave

o vértice

a virtude maior de viver

Lx. 12-7-71

 

III

(Dentes de Morte)

 

Lateja o tecto do dia: sua luz felina

flecte. Onde a luz ondula late

o inverno ou voz. É o curso de um insecto

de cetim. Centro do dia

que invento na velocidade da luz nua e insone. Sou

o fruto nascituro. O mês maduro, erosão da rosa. E o corpo

ou o sopro fendido do dia recente se defende

da cicatriz ou se incendeia de seu fogo frágil, de dentes de morte.

Lx. 31-5-72

 

IV

 

Agora o corpo morto resiste às cicatrizes do inverno

extinto: acordam turvas as águas imóveis do dia.

A noção inicial dos deuses ressuscitados emerge do externo

exterior da embriaguez: é o poema em decomposição.

Lx. 20-7-73

 

[Poema isolado] 

Centro do canto

 

Canto o teu corpo

recanto ou casa    polígono de alegria

pólo de palavras ou só pó de recordação recente

corpo reaparecendo no contorno do teu corpo

percorrendo-o a carícia do canto

o teu corpo canto

Lx. 9-2-70