PENAS, O SEU ESPLENDOR : MARIA ESTELA GUEDES
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13-03-2005

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Belas, leves, flexíveis, impermeáveis, resistentes, as penas têm sido aproveitadas pelos homens de todos os tempos e de todas as culturas nos mais variados objectos e com os mais díspares fins. Consoante a sua forma e a estrutura esquelética da ave, assim o voo se caracteriza, desde o rápido e poderoso do falcão, até ao medíocre ou nulo de perdizes, galinhas, avestruzes e dodó. Mas quando pensamos em aves não temos em mente as que não voam, sim as que se elevam no céu. Por isso as penas simbolizam a parte superior das nossas construções, sejam elas edifícios de pedra, de madeira, poemas ou obras de filosofia. Assim como há uma adivinhação pelo traçado do voo das aves, assim a própria arte divinatória, como mais clarividente faculdade do espírito, é nas penas que encontra representação simbólica. Em palavras simples, nós somos seduzidos pelas plumas porque vemos nelas um poder ascensional, e é ao que está no alto que atribuímos o máximo valor, o de Bem. Por contraste, o Mal é representado por criaturas sem plumas, embora possam não ser ápteras.

O esplendor das penas de tucano foi escolhido para o manto do Imperador do Brasil, D. Pedro I. Muitos príncipes, princesas, actrizes e outros famosos se adornaram com penas, menos de pavão do que de avestruz, criada em bandos imensos no sul de África para esse fim, no século XIX. A águia, boa voadora e caçadora, cujo olhar penetrante descortina a presa a enorme distância, que vive nas cumeadas mais altas, é tomada como insígnia de poder por imperadores e generais. Os capacetes militares exibem garbosas plumagens, essas mesmas ornamentações as transmitimos ao cavalo, a nobre montada. O uso das penas no vestuário, calçado, toucados, adornos corporais, é muito antigo. Índios das duas Américas, negros de África, brancos da Europa, povos asiáticos, ninguém consegue resistir à fascinação das penas, o que pode ser perigoso para as aves. A partir do momento em que os europeus chegaram à Insulíndia, as aves do paraíso ficaram em risco de desaparecimento, tal era a caça que os comerciantes lhes faziam, sobretudo aos machos. Na época de acasalamento, os machos apresentam-se às fêmeas com a plumagem nupcial, esplendorosa e extravagante. Passado esse tempo, perdem as plumas brilhantes e ficam com a plumagem de eclipse, mais discreta e semelhante à das parceiras.

O mais típico sinal da civilização não dispensa as penas, pois era com elas que outrora se escrevia. Foi certamente com pena de pato que Camões grafou "Os Lusíadas". E é bem possível que nas suas andanças, pela costa de África, em direcção ao Oriente, tenha tido contacto com as flechas, aerodinamicamente concebidas como penas. Perdigão perdeu a pena, escreveu ele, associando as efémeras plumas nupciais dos faisões e outros Galliformes às de Cupido, que são as setas do amor. Eis um poeta que conheceu todas as penas importantes que possamos imaginar, e até as de Mercúrio, mensageiro dos deuses, dotado de asas nos pés para mais velozmente se deslocar entre o Olimpo e as terrenas ou ctónicas moradas de humanos heróis.

O espectro simbólico da pena é amplíssimo, e amplo também o da asa, porém nem todas as asas são cobertas de plumas. As asas dos dragões, das borboletas, dos morcegos, dos demónios, não costumam ser revestidas por esse material. Já os dinossauros, sim, segundo consta: alguns, tal como Quetzalcoatl, a Serpente Emplumada, tinham penas. De resto, no Norte de Portugal também há serpentes emplumadas, como registaram os bons primos, ou bons naturalistas, nos Anais da Academia Politécnica do Porto... Os Tait, Moller, Augusto Nobre, Paulino de Oliveira... Ainda hoje há quem censure os que não acreditam nessa espécie de cobras com asas à maneira de Quetzalcoatl ou de Basilisco, se não for o próprio Demónio esmagado debaixo da sandália da Imaculada Conceição...

Eu também tenho penas, em especial a de não poder continuar esta agradável conversa, mas as imagens vão estimular a imaginação do leitor e por isso dispensam mais palavras. Apenas, para rematar, fique a nota de que o ponto mais alto a que a nossa imaginação chega é ave, e se lá chega, a Ave!, será certamente por encarnar esse espírito, isto é, a Pomba do Espírito Santo representa, para nós, a máxima elevação a que chega a esperança, a utopia, ou o mito, que de si já são valores altos. É por esse Império do Espírito, localizado não no espaço material sim no futuro da nossa ânsia, que trabalhamos e suspiramos.

Que anjos mais respandecentes, na sua beleza ciberespacial, do que os de Giambattista Tièppolo? É a própria imaginação do artista que se torna angélica quando a tocam as penas, esses instrumentos de navegação espacial. Quando tocamos os limites do sonho, é o próprio homem que se torna pássaro, ou asa sem pássaro, como a de Dürer, ou então é Deus - Horus - que enlouquece e fica com cabeça de falcão.

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