Vários mundos

Foto: P. Shellard

RICARDO DAUNT
Vários mundos


Poema de Ricardo Daunt, extraído da obra Poemas de extradição e exílio, terceiro volume da “Trilogia poética do desterro (1975-2015)”


A chuva deixa meus ossos em brasa,
lava-me em sua memória de passageiro das coisas.
Conta-me de seus desatinos,
e transbordamentos. Afoga
meus olhos vítreos em suas gotas de aço e priva-me
do que não cheguei a sonhar,
domina o tempo que me foi prometido
e no seu lombo escorro sem força por uma canaleta desigual.
Torna-me seixos e folhas secas socados no barro que desliza
em constante vertigem.
Dissipado em solidez de nuvem estou finalmente
em trânsito e assim imensurável, irreconhecível, indefinível; opaco
sou, sem o ser mais.

 

O que acontecia no meu caminho
era um problema pessoal
só meu e de mais ninguém.
Via os jornais televisivos,
e suas imagens devastavam meu espírito
como se tudo me ferisse pessoalmente.
Lia os jornais impressos,
e suas notícias arrebatavam meu ânimo
e minha vontade revolucionária,
que era enorme
e hoje não é grande,
mas que já foi do tamanho
de minha ambição adolescente.

 

Como justificar minhas atitudes hoje,
em circunstâncias tão nefastas, mantendo-me
alheio e quase neutro,
desleixado, familiar, no máximo bairrista,
no máximo ainda regionalista, tacanhamente
engajado em nada ver o que se coloca
do outro lado da cerca
(quando fora outrora obstinado, imprudentemente loquaz,
arrebatado, envolvido e beligerante),
tendo, no horizonte de meu espírito,
apenas a cumplicidade ainda que intimidante
das casas do outro lado da rua?
(Rua de um vilarejo qualquer.)

E mesmo assim, presenteado com imensas desvantagens,
decidi no passado ocupar-me com todas as forças,
dirigindo com clarividência meu foco de interesse,
para o que parecia ser inevitável —
o que propiciou meu alistamento
e a consequente adoção de armamento pesado,
para a primeira batalha de uma guerra
que prometera frases solenes dos mandatários
e sangue escorrendo para o leito de modestos córregos.
(Chego a pensar que não deveria ter-me alistado.)
Chego a pensar que mudei e não deveria ter mudado.

 

Na esquina de uma rua meu pai estanca pensativo,
não sabe para onde ir, nem por que ir, mas ele
está lá, com as mãos espalmadas
contra as costas;
em seguida enfiadas nos bolsos, o punho fechado,
depois com o polegar e o indicador de cada mão
envolvendo o cinto, ostensivamente,
como um militar em seu posto de guarda,
depois ainda agora caídas ao longo dos flancos, desamparadas,
como se tivesse medo.
Aguarda um féretro ou uma amante?
Nunca saberei.
Os carros passam e alguns raros
conhecidos acenam e fazem gestos em sua direção.
Ele meio que sorri, mas é como se não os reconhecesse.
Abaixa a cabeça
e fixa seus olhos nas biqueiras do sapato
de cromo alemão.
São horas de partir.
E ele parte, não sem antes
agitar o pulso esquerdo e como consequência
o relógio suíço que estremecido se submete,
oferecendo-se a sua mirada
como ao atirador a culatra de uma arma.

 

Sem saber reproduzo muitos de seus gestos,
para que lado ir? Para o front, ou para o acampamento
onde os recrutas temem seu futuro?
Fugir para as altas montanhas do leste
ou me entregar?
Anseio por um armistício, um cumprimento,
uma medalha no peito, um par de botinas novas,
um ingresso para um espetáculo melhor
do que este.
Apenas sei que não sei mais dar o primeiro passo e berrar
“Mato se não largar a sua arma e erguer as mãos.”
Também não sei mais como organizar as barricadas
nas estreitas ruas da minha aldeia.
(Ou de qualquer uma.) E esperar com sábia paciência que os inimigos cheguem com a costumeira obstinação dos fortes
e a franca determinação dos subalternos obedientes.
Admito que é preciso firmeza, destemperança e muito mais,
para não alimentar o receio
de que os cavalos inimigos saltem sobre nós
e seus cavaleiros nos aprisionem entre dois fogos e duas forças
e nos façam sofrer.
A infantaria deles caminha em nossa direção,
vem logo atrás das montarias
contidas a custo, segura de que a vanguarda cumpriu seu papel.
Suas fardas azuis, vermelhas e brancas cintilam na manhã
nos baixios da campina e nos morros defronte, pelos flancos
e desfiladeiros, pelos rios e pastos.
Rompem nossas trincheiras, fazem progressos evidentes
e avançam sem pressa, subindo sempre pelas faldas da montanha,
no topo de onde nos entricheiramos
e ganhamos tempo para refletir
sobre o futuro que a brisa dissipou.
São holandeses, russos, alemães, que importa!
São diferentes e diversos e nos querem sob seu jugo,
disso estamos certos.
Eles crescem de tamanho, quase podemos reconhecer
os famigerados detalhes de suas fardas e de suas armas –
as baionetas caladas.
(Chego a pensar que não deveria ter-me alistado.)

 

Visíveis agora do arco-íris de suas girândolas, atiram contra nós
vapores coloridos e magmas vulcânicos em plena ardência.
Caímos assustados, perplexos, pintados de cores inesperadas, o rosto queimado e sem solenidade, as mãos trêmulas
com as de um bêbado contumaz. O pânico em nossos olhos,
nossa voz de comando sufocada por soluços e tremores vários.
Quase choramos no entreato da guerra desnorteante
que é alegria e decaimento; gaiola de pássaro aberta
e cela de pedra sem janelas (sem o conforto nem mesmo de uma
[espia
bem postada, desejável, mesmo que alta demais para ver o mar).
Tudo o que é pouco é melhor do que o muito que é nada.
(Chego a pensar que não deveria ter-me alistado.)

 

Eles nos alcançam facilmente; colocam ferros em nossos pés,
algemam nossas mãos e prendem-nos, derrotados, submetidos,
a um cabo de aço. Somos agora uma fieira de pássaros aprisionados,
animais indefesos nas mãos de crianças no auge de uma festa
[macabra.
Sabemos que nada conseguiremos que não resulte de nossas certezas
e inconformidade. Sabemos disso.
(Chego a pensar que não deveria ter-me alistado.)
Mas esmorecemos.
E o esmorecimento é um crime militar (sabemos disso),
e todos o praticamos. Chamam a isso de medo?
Chamo a tudo o que me trouxe a isto de equívoco.
A arma de grosso calibre, automática e certeira,
que empunhei pesa-me agora desarmada,
sem o pente de balas. Carrego-a morta sobre os ombros
para a entregar ao inimigo, e escutar dele a promessa de degredo
em uma colônia penal, que advirá.
Pesa-me a arma vazia, ainda, como uma subtração de minha energia
e de minha revolta. Querem que eu a carregue
sobre os ombros sem munição para que não deixe de pensar
na minha fraqueza.
Guerra estranha, artifícios incomuns.
(Não, matar-me-ão antes de chegar ao destino, ou talvez não;
trabalharei na colheita das batatas, sim,
e no arado que o boi arrasta sobre o eito, e na ceifa
e na moagem, nos estábulos e nos silos, sei disso, serei útil
até o fim.)

Por instantes penso em voltar-me contra mim,
matar-me para não morrer nas mãos dos que me querem morto
enquanto vivo.
Parece simples e singelo.
Mas a arma não me atende, está morta como eu
e carente de princípios elevados.
Meu peito treme com o contato da tira de couro que sustenta
minha carabina
Arranco a arma dos ombros, seguro-a entre ferros.
Ela está muda, pai.
Ele continua na calçada, na mesma encruzilhada,
um carro encosta a seu lado. Meu pai fala coisas
e ouve outras. O carro parte. Meu pai permanece
na esquina, à espera de um milagre.
Eu também.
“Anda, homem, o que pensa fazer? Entregue toda a munição
que esconde nos bolsos!”
“Nada tenho, posso jurar.”
(Chego a pensar que não deveria ter-me alistado.)

 

Se morresse agora, a dor seria aliviada,
caso contrário, sofrerei por não sofrer
o bastante. E sentirei pena de mim.
Não sei como fazê-lo.
Uma bala, um pente delas é do que preciso.
Alguém se aproxima da porta.
“Vamos de uma vez!”
Mato-me ou mato quem vem, sem balas, mas com as mãos;
com as mãos e os dentes, se necessário for?
(Chego a pensar que não deveria ter-me alistado.)
Diz meu nome e sorri ao entrar. Preparo-me para o bote.
“Quer dormir no quarto ou permanecer na sala ronronando?”
(Tente me degolar, estou pronto e convicto de que posso partir.)
“Já vou, não tenho sono,
mas logo irei”, digo.
(Mentira, não estou em condições de atravessar o Letes,
a água insalubre tamborila com a ponta
de seus dedos o cais de madeira
onde estou com um adeus nos olhos,
demonstrando que tem pressa para me levar
até meu destino. Acovardo-me, recuo um passo e suspiro.)
Desmantelam-se meus nervos, a prudência da defesa
e os anseios de vitória.
Os filhos que talvez sejam meus
choram desde algum lugar,
para sempre insatisfeitos, quase cruéis.
Digo ao léu, sem força,
que vamos para a batalha final,
mas antes é preciso tomar um leite quente,
com um punhadinho de açúcar e pitadas de canela.
Da sacada observo os prédios em seu perigoso
alinhamento no campo de batalha; espreito sua imobilidade de pedra,
suas janelas cerradas, cobertas por um negro véu.
Estou na alça de mira de atiradores atrás de cortinas,
à espera da ordem de atirar.
É como se todos nós esperássemos o amanhecer
de um dia ‘D’ heroico e decisivo, a um passo
de ingressarmos na história escrita.
(Chego a pensar que não deveria ter-me alistado.)
O país espera, desconsolado.

 

Apeio do arnês que me protege do medo,
das balas e dos punhais,
abandono a matalotagem sobre o soalho,
como alguém que chegou para ficar.
Assim está melhor, reflito ao espelho.
Despojado da armadura fico menor, é verdade, mas mais exato,
mais indisfarçavelmente parecido comigo,
com a costumeira significância muito relativa
e discutível. Sem protuberâncias e artifícios.
“E então, o que decidiu?”
“Vou ficar um tantinho na sala, pensar
no que não fui e tocar nas coisas
como se dono delas fosse por um instante.”
E até mesmo — se recuperar a disposição –,
arguir sobre sua posse, que é tão irrelevante
para os espíritos mais bem formados.
E sobre as deformidades de meu próprio espírito
malcomposto.
E ainda pensar, se tempo houver, nos filhos
sem os quais ludibriaria melhor
as minhas falsas impressões de mim próprio;
pensar também no fato de que ainda estou vivo,
apesar de tudo. (Sentimento que nada serve aos outros.)

 

Em uma esquina qualquer meu pai está lá, continua lá
à espera de algo.
Olha o relógio várias vezes, examina os carros que passam,
as pessoas do outro lado da avenida.
Sente-se sem energia. Parece perscrutar seu íntimo
e nada descobrir que não seja desolador. Para onde ir?
Estou aqui, vejo-o mas ele não me vê.
Está impregnado do desejo
de se sentir anônimo e feliz,
ainda que seja uma satisfação incompleta e passageira.
Mas não consegue satisfazer nem mesmo esse pequeno prazer
[masculino.
Estarei sendo ridículo?
Estaremos sendo ridículos?
Enquanto isso o mundo e o tempo
se reproduzem implacáveis,
os prazos escoam,
a morte quer sua parte da vida,
as asas do destino cansam de seu voo
(pesadas de tantos anseios irrealizados),
a última sessão do cinema defronte acabou,
as armas repousam nos quartéis e nos hospitais de campanha.
Como sempre o sinal na esquina muda de cor,
em sua obediência irrefletida.
A neblina e o silêncio envolvem a figura de meu pai,
que se torna delida, até que ele se esfuma
sob um banho de luz intensa. Está morto.
Leva com ele meus brinquedos preferidos,
minha primeira calça comprida, meu boné de tricô,
meu primeiro dia de aula, minha primeira paixão
estoicamente guardada no peito, sob a umidade
de verões exaustivos. Sem sua recomendação expressa,
me vi na contingência de virar homem,
de comer com garfo e faca, de ter à cabeceira
um despertador, de engraxar meus sapatos,
de vistoriar minhas orelhas e minhas unhas
antes de sair para ganhar a vida e nela me perder.

 

Estalactites mansamente crescem
sob a abóbada das igrejas —
e na ponta de seus profanos dedos esbranquiçados e tortuosos
nasce a cintilação de uma turmalina.
Na guerra vigia-se mar e terra. Eis o relato:
os lobos profanam os desfiladeiros
e se apoderam das estepes desabitadas.
Em bando cercam o alce.
Os caules negros
das casuarinas enfrentam as contínuas provocações
do mar de sargaços, sempre sôfrego e incansável; os barcos
inimigos — encouraçados, corvetas – são enredados,
suas hélices travadas pela cabeleira marinha da costa,
deixando-os à mercê de nossa fúria recobrada.
Começamos a atirar contra eles, da praia, dos fortes e do mar,
com nossas fragatas ligeiras; e dos mangues, com traineiras
[apetrechadas
(disfarçadas sob o emaranhado retorcido de arbustos) que semeiam
o céu de artefatos socados de pólvora, arremetidos com perseverança
contra os conveses, pulverizando faces surpresas.
Macaréus malasianos nos auxiliam, retorcendo as quilhas dos barcos.
Naus de guerra se entrechocam em meio a gases incandescentes.
Pororocas paraenses acodem e revolvem as margens e raízes
de árvores que encontram pela primeira vez a luz da morte
antes de serem decepadas pela ação
de múltiplos vertedouros de força. Nesse redemoinho a frota
dos valentões é esmigalhada. Foi o relato.

 

Agora vem a madrugada,
ou a manhã, ou a noite (tanto faz),
depois dela outras manhãs ou noites virão,
sempre envoltas na neblina.
Sob os viadutos passo,
soldadinho com a arma a tiracolo.
(Chego a pensar que não deveria ter-me alistado.)
O asfalto da rua ainda está molhado. Filetes
de sangue diluído escorrem pelas sarjetas.
Abandono-me ao fluxo vermelho, reviro-me, rolo,
emborco-me e me entonteço até o limite
de minha consciência, sem um norte ou céu
no qual confiar. Sou engolfado e empurrado
sempre para a frente, para baixo, para o fundo
em uma promessa de catarata que não se concretiza.
Fecho as cortinas, subo para o quarto.
Ela e as crianças já estão dormindo, como se chamam?
As últimas balas zunem sobre a casa
em sua viagem fatal.
Despencam sobre o telhado, sem força,
exaustas.
Ouço o som metálico
do primeiro baque, depois o ruído parecido ao de moedas
rolando e se entrechocando. Em instantes as balas se aninham nas
[calhas,
como operosas formigas aglutinadas; parecem confabular
[discretamente,
mas a aparência ilude.
De seus diminutos cadáveres emanam vapores
que se esgarçam ao contato com o ar frio.
Estão prontas para o nada e para serem
devolvidas ao barro úmido.
Nada além se move, só a Terra gira à toa,
nave inerme, retida em um modesto cômodo escuro
do espaço, sempre cortejada por meteoritos embriagados,
preparando-se para morrer sem solenidade,
ciente de que não foi amada na medida de suas necessidades
e na amplitude de seus atributos incontestáveis.
Para além dela a Nuvem de Magalhães.
Depois, muito depois, centenas de planetas sem comunicação,
com os telefones mudos, de diversos tamanhos e cores,
e além, no tempo e espaço o evento primordial da matéria,
o campo de Higgs,
a ação coalescente do bóson, o cuspe gigante
que agregou, caldeou e aglutinou os protoátomos vadios,
transformando-os em planetas, estrelas, asteróides, meteoritos.
Puras orquestrações mentais dos cientistas –
é bom que se diga –, elocubradas para que tenhamos esperanças
e ambições mais elevadas e serenas.
Somos parte, insinuam eles, de uma gigantesca orquestra
de metais e madeiras, bumbos, chocalhos, triângulos repinicando
a perder de vista.
Que bom isso de executar em companhia dos outros. Dividimos
as partituras e as escovas dos sapatos de verniz.
A trombonista reforça um botão da braguilha de um trompete audacioso.
E o fecho ecler às costas da harpista é recosturado
com as mãos ágeis de um xilofone, para assim suportar o gesto largo
da musicista opulenta e doce.
Já vou avisando: quero um instrumento fácil, que não dê trabalho,
discreto e reservado como uma nota abafada e quase inaudível
de um flautim mergulhado no fim de um longo corredor,
esmorecendo, amiudando, tênue, opaca, sufocada por outras
mais insinuantes; ou que não ultrapasse o som de uma palavra
mutilada, não emitida, apenas pensada durante o remoer de uma ideia
nascida das pequenas dores das separações breves.

 

Agora é muito tarde para pensar nisso.
De onde estou a beirada da cama é um objetivo distante.
A porta do quarto, pior ainda, é uma miragem desatinada.
Também é tarde para refletir sobre as vitórias
que não vieram, sobre as palmas que não sacudiram
o tablado e a ribalta,
que poderiam ser relembradas na eternidade de plintos inabaláveis,
depois de ganharem a primeira página.

 

Fecho o último botão do pijama,
o alvoroço estanca no peito e na mente.
Paro de respirar e meu coração cessa de bater.
O que confesso aos inimigos não é verdade,
depois nada aspiro ou falo, outra maneira humana
de morrer.
Estou antes de tudo pronto para qualquer coisa como dormir,
apagar minhas luzes interiores,
descansar como um vulcão extinto, ou para me agarrar
a um nada nadificante que me sirva de mortalha.
Também eu, como o planeta, em busca de nada buscar;
à procura do esquecimento que me procura sempre.
Ou de pensar nas paixões arrefecidas, ou de não pensar
nelas, nunca.
Refocilado, pleno, sinto a relva crestada pelo calor
cravar suas unhas nas minhas costas. Estarei ainda desperto?
A terra exala seus odores adocicados e as estrelas
mergulham no meu peito.
Faminto, vazio e sem destino, as nuvens
se apoderam de mim e me cobrem de fuligem colorida,
arlequinescamente.
Uma fala estrangeira que não entendo
sussurra em meus ouvidos
(vinda da pedra, da cantaria, do mar, dos teus lábios?).
Serão os fardados estrangeiros,
outra vez? Não haverá mais escapatória, é claro e natural
que assim seja.

 

O tanque mumificado para sempre, sobre o jardim de Bender
em um país que nunca existiu, está rodeado de árvores descarnadas,
despidas de frutos e folhas.
(Homenageia a guerra instalada na consciência de cada um.)
Desde um passado quase remoto
a última carga de canhão foi lançada – é o que se comenta.
Sem pressa, sobrevoou estepes e arroios congelados
como se dissesse adeus. Não feriu ninguém,
aniquilou apenas todos aqueles cujos olhos seguiram
com sofreguidão a ardência de seu rastro.

 

Novamente as palavras estrangeiras, pronunciadas
com marcial sonoridade.
Ouvir vozes assim, sobrepostas, desmantela-me por completo
e meus nervos se liquefazem crespos
no limiar do portal que separa o sonho da vigília,
o não sonhar de seu oposto,
o que nega teu corpo e não afirma o meu,
o que expira de tristeza e não chora,
o que se alegra na pletora
de nossos líquidos ungidos
(a carne da ameixa madura colhida no pé tem o gosto
dos teus lábios vulvares mordidos com meus dentes)
numa igreja qualquer defenestrada,
onde as bombas incendiárias e a vibração de vozes
já esmoreceram, e os sobrevientes agitaram
lenços brancos e pedidos de perdão.
Caminho crivado de tristezas e ofensas
pela alameda gasta, pelo teu corpo e mente
feitos sem compasso, minhas mãos ao final
te seguem como se te perdessem,
filhos, pais, mães, sopro conventual
de orações intérminas e dias alvorecendo
muito amarelos e mansos e doloridos
pairando na modorra de montanhas azuis –
ou serão esverdeadas –, de chumbo, ferro e contemplação.

 

Por todos os oceanos além,
as correntes marítimas carreiam conchas, sargaços em chamas,
carcaças de baleias sacrificadas pelo arpão tridente de Netuno,
mensagens de outros continentes, destroços de barcos sinistrados,
vagas de prantos secos acamados.
Em seu dorso corcoveia
a fervura de espumas brancas
que morrem se contorcendo próximas à praia,
em sistemáticos espasmos.
Deslocando-se sobre a pele das águas, em movimento evasivo,
a memória de nossos rostos salgados
suspira anelada e febril; rápida salta e vence
a distância que aparta nossas mentes desregradas e desiguais.

 

Acima de nós (e ao nosso redor)
a cidade de vidro multiplica-se sem esmorecimento;
em seus panos de cristal e aço nossos rostos (e cada prédio em outro)
se reproduzem sob a luz do sol e das lâmpadas.
Caminhando de braços dados, muito solenes,
testemunhamos nossas faces graníticas espelhadas na cidade vertical.
Nas primeiras frescas horas da manhã,
nos estertores do dia ou na noite alta
(eis os melhores momentos)
somos quase apenas fotografia agigantada,
registros vários, seriados, por vezes como fomos;
outras, como adviremos.
Em algumas circunstâncias de passeio
seres como filhos e situações como as familiares
na cidade de vidro ficam estampadas e logo se agitam,
como se o ser desconhecesse o caminho correto da fuga.
Em seguida por sobre tudo isso plasmam-se árvores, automóveis,
massas humanas atravessando esquinas, conchavos evidentes,
gestos muitos, vagos.

 

Agora apenas meu rosto, solitariamente reproduzido
no prédio de vidro defronte, mas logo sobrepõe-se a ele
ou à ideia dele, a imagem de meu pai, ou a ideia dele,
com as mãos espalmadas sobre a região lombar,
esperando, aguardando ou temendo talvez
um assalto, uma certidão cartorial, um prêmio,
um conhecido que não veio, o vendedor de cautelas, uma mulher perfumada,
o jornal sair da prensa e ganhar a banca, o carro do chofer de praça, —
serviço agendado com grande antecedência –, o flagrante
em que será o flagrado.
Sempre esperamos na vida a morte, e na morte a vida,
e nesse esperar aqui e acolá nos perdemos sempre
daquilo que fomos um dia.

 

Diversos mundos,
nenhum mundo, enfim.
(Chego a pensar que não deveria ter-me alistado.)


Ricardo Daunt (Brasil). Poeta, ficcionista e ensaísta.