Uma relação terapêutica

LUÍS COELHO
Fisioterapeuta e escritor


Uma tarde como as outras, entre o ginásio onde treino o ego em espelhos suados e a clínica onde trabalho como fisioterapeuta traccionando a dor em espelhos de fadiga narcísica. Tarde de esforços, a clínica continua o ginásio, reteso os músculos na oscilação entre alongar e o corte da distância que vai do tendão do paciente à reentrância onde te encontras com um papel na mão, ditando a prescrição. Entras timidamente e intimas-me a não te largar mais. Deito o papel fora sem o abrir, e oiço com que te lastimas. “Dores de cabeça”, referes, sem depor a pastilha que relaxa os fantasmas no calvário dos maxilares. A postura, os sinais, o raciocínio, tudo me leva a crer que trazes nos músculos, e na fáscia, um mal de dentro de que serei senhor. Não há tempo para avaliar para além do que intuo e anelo em presente de espontaneidade, terei de arriscar, num jogo de mãos encartadas, repletas de batota.

Toco-te, aliviando o temor inicial, manipular-te é manipular-me, salvando-me de reparar (na) tua doçura cristalina. Alongo-te em silêncio, não poupo as cicatrizes, há uma dor que perpassa e eu digo-te “tem de ser”, pelo que aceitas, acicatando-me a aprofundar a palma sobre a pele que se branqueia e prostra ao som da autoridade clínica. Trabalho as vértebras de uma saudade escondida, dói-me no ombro de tanto puxar pelo ligamento resinoso, vamos dançando, e o movimento transtorna-se desejo, os meus dedos já sondam e entesam, e tu vais dizendo que “dói, mas alivia também”, e eu digo que “é assim mesmo”, “é mais difícil no primeiro dia”, sublimando a suspeita de um seio que se desnuda bem além da resignação. Passa-me pela cabeça: “e se eu pusesse a mão no seu seio?”. Poderias aceitar, talvez, mas também te poderias levantar, batendo-me indignadamente, vencerá a fantasia para além da vida, ou a vida aquém da moral?

Tardiamente, seria forçoso colocar a postura de ancas abduzidas, lombar aconchegada ao tampo da mesa, braços abertos, estirando a fragilidade. “Isto é mesmo necessário?”, questionaste, e eu “é uma postura reeducativa, para chegar à cervical é preciso trabalhar a lombar, bem como as cadeias musculares envolvidas.”. Assim sendo, acataste e cresceste, à custa de estiraçar tuas defesas. Simultaneamente, ia perdendo as minhas em cumplicidade, pelo que parecias crescivelmente bela, com teu sexo sugerindo tudo na violação da imaginação. Claro está que ia ideando a reciprocidade, mas só bem mais tarde rompeste a timidez o suficiente para reparar (n)o homem por trás do terapeuta. Olha, não precisarias, porque o terapeuta está no homem que haveria de te levar a jantar fora, e a dançar contigo – mais uma vez – no âmago do (des)encontro.

Mordeste, ou fingiste morder, o isco um dia, porque quiseste, obviamente. Quis a tua meninice, a tua sede de seres memória outra vez. E dançámos, repetidamente, na tua casa. Houve um instante em que disseste que querias “ser tratada”, e eu deitei-te no chão, voltei a percorrer-te as vértebras, explorei o teu corpo, e tu mantinhas-te de olhos fechados, como se estivesses na clínica, às tantas, no calor de um momento lúcido, coloquei-me em cima de ti e beijei-te, prendendo os teus braços, e tu, por momentos, disseste “não!”, mas agarraste-me, e deixaste que te tomasse. Foram precisos uns segundos apenas para que tu perguntasses se tinha trazido protecção.

Não era, de todo, a tua intenção, mas acabámos mesmo a namorar. Tratava-te, então, na clínica, e continuava depois. As tuas dores acabaram por desaparecer, e eu andava contente, até engordei. Vivemos uns meses bons, chegámos, inclusive, ao tom das promessas. Depois, veio o conjunto das obrigações, e a vez de te partilhar com os teus amigos. Eras demasiado bonita, não foi necessário muito tempo para que divisasse o perigo entre alguns dos teus amigos e colegas homens. Cheguei a suspeitar de ti, ia jurar que te movias mais expansiva, eu tolhia-me e irritava-te, lá para a frente chegaste a andar a Xanax, vinham-te umas “ansiedades”… Aconselhei-te um psicoterapeuta. Este, por sua vez, aconselhou-te mais auto-estima e a mudar de namorado, e eu achei-o uma merda. Não voltaste lá e houve um dia que quiseste ir de viagem. Fiquei a roer, e, de tanto roer, terminei a roer a boca de uma outra que também era minha paciente. Acabei a jogar entre ti e ela, e disse que te traí antes que me traísses tu.

O terapeuta pôs a capa do conquistador. Das duas, não ficou nenhuma, pelo que tentei recuperar apenas uma. Não conseguias deixar de pensar em mim, era recíproco. Por isso, estivemos juntos mais umas tantas vezes, testando o limite de cada um. Houve uma tarde em que, após a zanga, te despi à bruta, fizemos amor violentamente, resististe e acataste ao mesmo tempo, prolongando a penetração. Eu sabia que tinhas gostado. Não era só eu que te penetrava, e bem te via no fim, num pleito de tranquilidade. Mas não deixaste de cumprir o ritual da “normalidade”, o teatro esperado de uma libertinagem desesperada. Chamaste-me porco. Que sempre o tinha sido, já quando andava a fazer-me a ti na clínica, que isso tinha sido assédio, que podias fazer queixa. Respondi-te que os fisioterapeutas não possuem uma Ordem a que se possa fazer queixa, pelo que tu ameaçaste-me com o meu patrão. Repliquei que era a tua palavra contra a minha. E ainda me vieste com um argumento feminista qualquer, mas esqueci-me do conteúdo.

Andámos mais uns tempos em jogos e ameaças. Crescia, entre nós, o azedume, até que tentámos afastar-nos de vez. No fim desse ano, estávamos magros. E eu voltei ao ginásio para combater a saudade da tua boca. Os músculos estavam mais pequenos, a querer mirrar em solidariedade com a alma. No início do ano seguinte, encontrei-te mais uma vez. Não parecias tão bela como dantes. Estavas calma, mascando a pastilha. Tinhas ido fazer uma TAC ao crânio. As tuas dores tinham voltado e ninguém sabia a sua causa. Disse-te que podia explicar tudo. Mas tu desdenhaste dos fisioterapeutas, argumentando que eles advogam encontrar no passado do corpo o que tu não reconheces como verdadeiro. Ficar-te-ias pelo comprimido, que mascas, engolindo a seco. Convenci-te, no entanto, a irmos a um cafezinho, um dia daqueles, em nome dos outros, dos velhos, dias. Mas sem compromissos.