Um romance com a sensibilidade à flor da pele

ADELTO GONÇALVES


 Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015) e Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br


I

Foi o escritor catalão Eduardo Mendoza, o romancista espanhol que mais vende livros na Espanha contemporânea, quem, a propósito da obra da escritora brasileira (de origem galega) Nélida Piñon, alertou este resenhista para o fato de que as mulheres olham para a vida por uma janela que sempre esteve vedada aos homens. Por isso, quando escrevem romances, criam personagens mais densas, provavelmente, porque as veem com maior sensibilidade.

Esta observação foi feita em janeiro de 1990, a uma mesa do café Samoa, que fica em frente à Casa Milà, também conhecida como La Pedrera, em Barcelona, e sua validade só tem sido confirmada ao longo destes 28 anos. De fato, essa observação pode ser confirmada também com a leitura do recém-lançado de Desamores da portuguesa, primeiro romance da escritora brasileira Marta Barbosa Stephens, que conta a história de vida de uma portuguesa, de 41 anos, sem nome, que vive um triplo autoexílio: do país, da língua e do passado.

Escrito em linguagem em que a autora demonstra domínio do ofício, como observa o escritor Luiz Ruffato na contracapa do livro, Desamores da portuguesa reconstitui a trajetória de uma mãe de três filhos que, em poucos anos, fracassara por três vezes na tentativa de formar uma família estável. E optara pela solidão, vivendo na fria Londres, longe de tudo e de todos, mas sem entender o que falavam nas calçadas, limitada apenas a rápidos diálogos com compatriotas. “Sua maior frustração era não ajudar as filhas nas tarefas escolares”, escreve a personagem que conta a história, uma brasileira, que, a exemplo da autora, também vive um autoexílio. “Ela não tentou aprender inglês, nem antecipou sua volta para casa. Insistiu a seu modo, esperando que um milagre a salvasse”.

Em poucas e resumidas palavras, o enredo começa com o primeiro casamento da portuguesa com um brasileiro, Estevão, que a levara para morar na casa de sua família num bairro elegante e verde da cidade de São Paulo. A vida corria com certa folga: a portuguesa era auxiliada por empregadas no serviço doméstico, a filha crescia, até que, um dia, aconteceu o inesperado. Ao portão da casa, apareceram alguns bandidos e anunciaram um assalto quando a família chegava em seu automóvel. Os marginais levaram o carro e por pouco não levaram também a criança que estava no banco traseiro. “Foi naquele momento que a portuguesa sentiu raiva do Brasil pela primeira vez”, conta a autora. Depois disso, ela isolou-se cada vez mais, com medo de sair às ruas onde já não conseguia distinguir um operário de um bandido. A consequência é que, um dia, resolveu largar tudo: aquele país violento, o marido, a sogra, as empregadas, o conforto. Voltou para Portugal.

II

Em Lisboa, conheceu Laerte. E passou a viver com ele, mas sobrevivia da pensão do ex-marido. Cuidava de uma criança e da tia idosa. Teve uma filha com ele, mas o relacionamento igualmente não durou muito. Como os pais já haviam emigrado para a Inglaterra, um dia, ela resolveu largar tudo de novo e foi embora sozinha para Londres. Lá, numa reunião de uma igreja que fazia cultos em português, conheceu Martinho, um português de 65 anos de idade, de quem logo engravidou. A vida, porém, não seguiria o rumo esperado: Martinho logo sofreria um derrame e, depois de semanas no hospital, passaria a viver com o auxílio de uma cadeira de rodas.

Por este pouco alentado resumo, o leitor já pode ter uma ideia do que vai encontrar neste romance que representa a expatriação, tema tão presente no Brasil de hoje em que as cabeças mais pensantes não encontram outra saída para o País que não seja o portão de embarque dos aeroportos internacionais. Mais importante: vai encontrar um enredo bem urdido, que o estimula a conhecê-lo de uma assentada. Provavelmente, porque a autora como diria Mendoza, sabe passar para suas personagens a sua vivência feminina, sua sensibilidade e emoção, o que romancistas homens, dificilmente, conseguem quando têm de transmitir para o papel o sentimento de uma mulher.

Em outras palavras: como bem observa o editor, cronista e escritor Alexandre Staut na apresentação que fez para o livro, este romance permite que o leitor conheça por dentro as “personagens, em suas frustrações e desencantos”, mas, ao mesmo tempo, constitui um libelo “sobre a esperança possível e a fé na vida”, ou seja, a vontade de se reconstruir depois de cada fracasso pessoal. É o que o leitor vai encontrar aqui num texto bem escrito, direto e maduro, apesar da juventude da autora, o que permite antever que o leitor ainda será brindado com outros excelentes romances desta autora.

III

Marta Barbosa Stephens, nascida no Recife, Pernambuco, é jornalista e crítica literária, com mestrado pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo. Residente em Londres há alguns anos, divide seu dia-a-dia com tarefas como cuidar de seus dois filhos e dedicar-se à escrita, além de trabalhar como jornalista para garantir a sobrevivência da família, inclusive como correspondente da revista eletrônica Prazeres da Mesa. Quando encontra tempo, costuma ir a National Gallery, onde busca inspiração para seus exercícios literários.

É autora também de Voo luminoso de alma sonhadora (2013), seu primeiro livro de contos. Alguns de seus contos estão em diversas coletâneas, como A mulher em narrativas (2017) e Perdidas – histórias para crianças que não têm vez (Imã Editorial, 2017). Tem concluído o seu segundo romance, As viúvas passam bem.

Desamores da portuguesa, de Marta Barbosa Stephens.
Rio de Janeiro: Livros de Criação: Ímã Editorial, 112 páginas, 2,99 euros, 2018.
Site da editora: imaeditorial.com

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