Três poemas de Gastão Cruz e comentário ao texto de Fernando Cabral Martins ‘O som da Linguagem’

MARIA JOSÉ CAMECELHA
Atriz, leitora de poesia, agente cultural


Água da noite

A noite vem de novo unir-se à ria

e a todos estes seres que não verei

morrer nem vi nascer

 

inútil a resposta da noite à minha dúvida

num tempo tão extenso que já creio

ser essa a minha própria dimensão

 

de primitivo corpo agora talvez dado

somente ao pensamento

por peixes e por aves trespassado

 

reconheço-os quando o escuro e os astros

debilmente convergem para restaurar

a grande mancha antiga conservada

 

na mente ou no espaço em que refaço

o mar de estrelas invisíveis

e visíveis que tento resgatar

 

ao ver-me exposto à realidade náufraga

desta água da noite onde se movem

entre peixes e aves os meus braços


Contra a Parede 

Dos teus vários retratos veio pôr-se

um como se fosse por acaso

na mesa em frente a mim contra a parede

encostado

na sua actual moldura oferecida

por alguém que se não te conheceu

te conhece talvez melhor do que eu

porque conhece o sentido mais oculto

 

e contudo evidente desta casa

do tempo vivo e morto residência

ou, como lhe chamei já, existência

 

onde mortos e vivos são a mesma

torrente de cometas apagados

ao finito fulgor do mar lançados


A minha profissão 

O dia desde o início me pedia

do corpo a alma física: a matéria

imortalmente morta enquanto viva

talvez fosse o que me fazia crer

 

no desconcerto incrível dos meus dias

e um deles viria

fundar a profissão desconhecida:

o que fiz foi apenas aprender

 

a língua rude que ninguém ensina

e quem escuta nem mesmo sempre entende

ou só entende como dia visto

ao sol negro dos seus próprios sentidos

 

Ancorado no título do poema de Gastão Cruz (in Campânula. Lisboa: Edições & etc., 1978)

 

Por vezes reaprendo

o som inesquecível da linguagem

Há muito desligadas

formam frases instáveis as

palavras

Aos excessos do céu cede o silêncio

as constelações caem vitimadas

pelo eco da fala.


O artigo de Fernando Cabral Martins (FCM)  traça o percurso do autor, assinalando pontos fundamentais da sua viagem pela poesia e pela crítica. Como ponto de partida, a observação sobre o lançamento da Poesia 61 (Faro), notando a novidade e alteração subsequentes e o alargamento do campo poético. E FCM continua notando a “qualidade única de juntar a dicção poética ao discurso crítico como se fossem um único fio de palavras…”

Assinale-se o que Gastão Cruz, em “Função e justificação da metáfora na poesia de Eugénio de Andrade”  (in A Poesia. Portuguesa Hoje, Lisboa: Plátano Editora, 1973 ) escreveu “O que existe de mais específico na linguagem da poesia é, efectivamente, essa capacidade de tornar únicas as palavras, os nomes, convertendo-os em imagens.”

A referência de FCM aos poemas inscritos em “Campânula” e, mais concretamente  ao que é citado no texto “o mar do fim de maio é uma imagem/das janelas estanques mal o vejo/sob a humana voz as suas vagas/ confundem-se com as ávidas palavras que preenchem o quarto como um verso”  liga estas duas ideias:  imagen e  voz – humana. A audição torna-se então um privilégio, uma forma de aceder ao coração profundo da poesia.

Penso ser de mencionar igualmente o trabalho de Gastão Cruz no Grupo de Teatro Hoje – Teatro da Graça  – (que fundou em 1975 com Fiama Hasse Pais Brandão e Carlos Fernando ) como tradutor de Cocteau, Strindberg ou Camus, dramaturgo e encenador. Entre 1974 e 1977 produz uma série de textos sobre espectáculos nomeadamente da Companhia Rafael de Oliveira, Teatro Adoque e Teatro da Cornucópia. (informação encontrada na  CETbase – Teatro em Portugal).

Remetendo para o tempo – crucial na poética de Gastão Cruz –  patente nos três inéditos apresentados:

Água da noite

(…) inútil a resposta da noite à minha dúvida / num tempo tão extenso que já creio ser essa a minha própria dimensão

Contra a Parede

(…) te conhece talvez melhor do que eu / porque conhece o sentido mais oculto / e contudo evidente desta casa / o tempo vivo e morto / residência ou, como lhe chamei já, existência /onde mortos e vivos são a mesma

Do  último poema dos  inéditos publicados (A minha Profissão)

(…) o que fiz foi apenas aprender / a língua rude que ninguém ensina / e  – quem escuta – nem mesmo sempre entende/ ou só entende como dia  – visto ao sol negro dos seus próprios sentidos

Nesta incompletude que me propus apresentar, transcrevo o parágrafo final de Fernando Cabral Martins: “Apenas o som da linguagem, a pele que responde como um tímpano aos impulsos do universo, sem significação nenhuma para além da sua própria realidade, não é susceptível de dúvida ou mentira. “


Fonte: Jornal de Letras (JL)  | 31 de Janeiro a 13 de Fevereiro de 2018