Armando Nascimento Rosa
NÓRIA E PROMETEU - PALAVRAS DO FOGO

(Mitodrama paródico em sete cenas)

INDEX

NOTA PREAMBULAR

PERSONAGENS E INTÉRPRETES

MÁSCARAS DE CENA

CENA I

CENA II

CENA III

CENA IV

CENA V

CENA VI

CENA VII

NOTA PREAMBULAR

Sob a designação dramatúrgica de mitodrama paródico em sete cenas, Nória e Prometeu - Palavras do Fogo é um peça num só acto que traz para o palco o encontro entre duas figuras míticas diversamente conhecidas, representantes cada uma delas de matrizes culturais do Ocidente. Mas se Prometeu é heróica figura arquetípica de imediata identificação helénica, já poucos saberão que Nória tem hebraica proveniência, visto ser o nome da esposa de Noé que a letra bíblica apagou, e cujo mito subsiste apenas em textos apócrifos do cristianismo primitivo gnóstico. Segundo este mito, a rebelde Nória, uma filha ignorada de Adão e Eva, recebendo indicações do verdadeiro Deus, estrangeiro ao cosmos, teria por três vezes tentado incendiar a arca que o marido construía, para impedir que a criação falhada do demiurgo subsistisse.

Não terá conseguido levar a cabo o seu acto radical, mas imaginemos que esta Nória proscrita nos aparece agora como refugiada nómada no lugar do teatro, porque pretende conhecer (e contracenar com) Prometeu, o responsável pelo uso humano do fogo. Mas ela tem de esperar até chegar a sua vez de conhecer o célebre titã. É este o ponto de partida da fábula, que assume por inteiro um teatralismo paródico, entre a seriedade dramática e a vocação humorística, no qual a consciência de se saberem no teatro é motivo para o encontro plausível das várias máscaras míticas. Um Rapsodo, como espécie de omnipresente contra-regra, é mestre de cerimónias deste palco, pelo qual passarão: Heraclito, o filósofo do fogo, como personagem inicial convidada; a Águia, condenada a devorar o fígado do herói contra a sua vontade de rapina em cativeiro; o poderoso Zeus, com o seu séquito de deuses astronautas, que tenta uma última vez persuadir o seu prisioneiro Prometeu para que este seja aprendiz de déspota e renuncie à condição de revolucionário pela causa dos humanos; a jovem Cassandra, que recuperou a razão e traz pastilhas de ópio para drogar a Águia que fere um Prometeu, pelo qual a xamã alimenta agora o fogo da paixão (numa peripécia passional ausente dos dicionários de mitologia, e por isso logo severamente cerceada pelo Guarda/Rapsodo, que teme perder o emprego); o próprio Dioniso numa aparição meteórica que, na companhia de duas bacantes, vem lembrar a Prometeu que é ele, Dioniso, o responsável pelo ensino do cultivo da vinha entre os gregos. Isto após o momento em que Prometeu passa em revista as estações do ano, numa cena mista de monólogo mitopolítico (o confronto entre o conforto dos olímpicos e a miséria dos humanos, que motiva o gesto prometeico) e comédia ecológica (graças à intervenção satírica do Rapsodo, face à degradação climático-ambiental do planeta, que põe em causa a manutenção dos ciclos sazonais). Mas a questão da primazia no cultivo da vinha é motor de um conflito de culturas, dado que para a tradição judaica é Noé, o marido de Nória, o introdutor deste cultivo. Mas o divo Dioniso depressa deixa a cena, agastado, dando lugar ao encontro ansiado entre Nória e Prometeu, no qual Nória, dará a conhecer a sua história rasurada de pária judaico-cristã.

A acção da peça termina com uma breve encenação da versão do Génesis segundo Nória. Impressionado pela personalidade desta herética indomada, Prometeu acede a que seja apresentado no seu palco O Paraíso do Doutor Godot (um título paródico onde ecoam dois nomes diversamente demiúrgicos: o Godot de Beckett, e o Doutor Moreau de H. G. Wells), auto breve em que todos os actores-personagens participam em desdobramento, e no qual Nória fornece uma leitura subversiva e ovniológica do Jardim do Éden, retratado como laboratório genético do astronáutico Doutor Godot (Zeus), secundado pelo seu Assistente (Rapsodo) e pela dupla de mãe e filha da raça dos aéreos alados: Arcângela (Águia) e Angélica (Cassandra). Na sátira iconoclasta deste microdrama final, caberão a Nória e Prometeu os papéis de Eva e Adão.

A primeira divulgação pública da peça (quando a 7ª e última cena não estava ainda escrita) foi a leitura dramatizada em sessão única de 20 de Junho de 2003 (Livraria Eterno Retorno, em Lisboa), com coordenação de Élvio Camacho, a escassos dias da estreia cénica de Um Édipo - O drama ocultado, encenado por Miguel Loureiro, no Teatro da Comuna. De facto, Nória e Prometeu é uma proposta de escrita dramática que encontra especiais afinidades estilísticas com Um Édipo, por via do imaginário de proveniência helénica, que nos remete para as origens ocidentais da arte teatral. Mas a revisitação de personagens míticas, agora helénicas e hebraicas, como forma de abordar questões em moldes que a polissemia do teatro torna urgentemente actuais, e identificáveis, é mais explícita em Nória e Prometeu, em virtude do cultivo intencional do anacronismo que faz desta peça um exercício permanente de auto-consciência do teatral na própria cena, não isento de sátira. Mitodrama paródico em sete cenas, nele as personagens implicam-se num jogo constante com a identidade do actor que as representa, uma vez que o espaço primordial da acção é o próprio palco, não obstante as ficções de tempo e lugar que cada cena-quadro convoca num pacto cúmplice com o espectador.

São assim legíveis os lugares temáticos que persuadem o espectador para a reflexão crítica, para a emoção poética, para a intuição arquetípica, e para a diversão cómica, através de uma peça cujo tempo histórico da acção corresponde a um virtual tempo mítico, ironizado pela representação teatral. Ainda que recheada de condimentos eruditos, dada a carga de referencialidade cultural que as personagens transportam, o registo de livre reinterpretação autoral e associação mútua destas máscaras permite que o espectador aceda ao jogo dramático, independentemente da sua inteira familiaridade com as matrizes mítico-literárias de onde emergem. Até porque, no caso de Nória, se trata de uma personagem particularmente mal conhecida. Extra-bíblica, apócrifa, e integrando as heréticas exegeses hierológicas dos gnósticos antigos, a mulher de Noé, com a sua história de rebelião psicoteológica, é uma figura maldita, recalcada e esquecida; cuja memória simbólica conheceu uma nova fonte em 1945, pela descoberta da chamada biblioteca de Nag Hammadi, no Egipto, constituída por papiros escondidos, sob as areias de uma gruta, por membros de uma comunidade gnóstica perseguida pela Igreja romana, dos primeiros séculos da era cristã.

Em tempo de fanatismos fundamentalistas, conflitos civilizacionais, e terrorismos vários, o encontro entre o rebelde grego prisioneiro no Cáucaso e a radicalista refugiada do Médio Oriente, ocorrido na metafórica arena do teatro, pode detonar múltiplas leituras no olhar decifrador do espectador.

A edição electrónica de Nória e Prometeu pelo TRIPLOV disponibiliza assim, para leitura geral, a segunda etapa de uma trilogia mitodramática de peças em um acto (releituras de mitos fundadores do Ocidente grego e judaico-cristão) constituída pelas peças, já encenadas e publicadas em livro: Um Édipo - O drama ocultado (Évora, Casa do Sul, 2003; encenada por Miguel Loureiro, com estreia em Lisboa no Teatro da Comuna em 4/7/2003); e Maria de Magdala - fábula gnóstica (Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 2005; encenada por João Mota, com estreia em Évora no Teatro Garcia de Resende em 20/10/2005).

Lisboa/Évora, Outubro de 2005

Armando Nascimento Rosa