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A PERMANÊNCIA DA ANARQUIA: A PROPÓSITO DE UMA ANTOLOGIA DO SURREALISMO PORTUGUÊS CLAUDIO WILLER | |
Quantas vezes, desde o início da tradição romântica lá pelo final do século XVIII, o entusiasmo de um grupo de jovens que combinava promessas, talentos de primeira grandeza, excêntricos em estado puro e meros circunstantes, unidos pelo desconforto na sociedade e pela disposição de inovar, não acabou deixando marcas duradouras? Em quantas ocasiões não se repetiu o padrão do sturm und drang, ou do círculo bironiano, dos simbolistas em sua associação com os “malditos”, das diferentes vanguardas e modernismos, do surrealismo em sua fase heróica, dos britânicos de Bloomsbury, da geração beat em sua origem? Um desses momentos, tornado perene, não apenas pelo registro da sua agitação em biografias e crônicas de época, mas, principalmente, pelas obras às quais está associado, é retratado em A única real tradição viva - Antologia da poesia surrealista portuguesa. Organizada e prefaciada por Perfecto E. Cuadrado (Assírio & Alvim, Lisboa, 1998), é a reedição com acréscimos, apoiada pelo Ministério da Cultura e Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, do que havia saído dois anos antes sob o título de You are wellcome to Elsinore (editora Laiovento, Santiago de Compostela). O título da edição portuguesa, mais recente, transcreve uma frase de Ernesto Sampaio; o da edição galega, o de um poema de Mário Cesariny. A observar, com simpatia, o trans-europeísmo dessa cooperação entre editoras e instituições de Portugal, e o trabalho em territórios lingüísticos e culturais dentro da Espanha, no caso, Galícia e Catalunha (Perfecto E. Cuadrado, galego, leciona na Universidade das Ilhas Baleares, em Palma de Mallorca). Democratização associada ao desenvolvimento econômico, nesses lugares, parecem ter como resultado políticas culturais públicas e iniciativas editoriais de qualidade. Perfecto E. Cuadrado retrata o surrealismo português através de documentos, passagens de manifestos, depoimentos, jogos e criações coletivas, e do que mais interessa, uma seleção de poemas daqueles que se reuniram e manifestaram em Lisboa entre 1943 e o final dos anos 50. Oferece uma excelente amostra da explosiva prosa poética de António Maria Lisboa, o Sá Carneiro daquele grupo, talento extraordinário morto aos 25 anos de idade, conforme atesta Poesia (Assírio & Alvim, 1995), compilação do que não se perdeu de sua obra. Mostra ainda a transbordante imaginação de Mário Cesariny, seu expoente maior; a qualidade das imagens em Mário Henrique Leiria, cuja obra, desaparecida de vista, em parte ainda inédita, vem sendo reunida por Perfecto E. Cuadrado; a dicção melancólica de Alexandre O’Neill, outro poeta português de primeiro plano, que logo se desligaria daquele grupo; o lirismo medido de Fernando Lemos, que acabaria vindo ao Brasil e projetando-se como artista plástico; o tom paroxístico de Pedro Oom; momentos torrenciais de Cruzeiro Seixas, também artista plástico. Isso, entre outros dos 13 representados na coletânea. Quanto à documentação reunida em A única real tradição viva, esta traz à tona a conexão entre arte e vida, habitualmente descartada pelo academicismo formalista. Falar de obras, sem referir-se também a autores e suas intervenções e conflitos, é trair um pressuposto do surrealismo, que jamais admitiu a dissociação entre o escrito e o vivido, a criação e o sujeito criador, ética e estética. Pode-se enxergar um ímpeto quase suicida nas entrelinhas do trecho de Mário Cesariny, lembrando as atividades fortes e jovens no Café Herminius (as primeiras, de 1943/44): afixação a cuspo, do que resulta o lento escorregar da matéria afixada, de imagens de generais e almirantes franceses. Saltos mortais para cima das mesas. Uivos graduados por José Leonel Martins Rodrigues. (…) Pedro Oom assoma velhas às esquinas. Uma cai. Grande corrida noturna atrás de Jorge Pelaio, afligido de espíritos, até os montes do Areeiro. Mário Cesariny traz para o café a máquina de escrever e um robe que pertenceu a Conchita Grandella. Os “ursinhos”. Entrada de caçadores. Prisões de esperantistas. Ações e situações que podiam muito bem, se inventadas em vez de acontecidas, figurar em algum texto de escrita automática, dentre tantos que os participantes daquelas reuniões produziram. E que não pararam por aí, conforme mostra o trecho de António José Forte sobre a última das metamorfoses do grupo surrealista português, as reuniões no Café Gelo, já no limiar da década de 60: Um verdadeiro escândalo, que não era provocado por um manifesto, por um grupo com nome próprio, por uma revista, mas por um grupo iconoclasta e libertário onde se falava de tudo, até de literatura e artes, e de rosas também. Um grupo de franco-atiradores, é verdade; um grupo de poetas, sem dúvida. Que disparava ao acaso sobre a multidão, que inventava os seus infernos e paraísos, que usava a liberdade de expressão ora voando, morrendo, desaparecendo, escrevendo às vezes. O que pretendiam esses franco-atiradores? Que idéias partilhavam? De uma coisa não se pode acusá-los: falta de clareza de propósitos, enunciados de modo irônico por António Maria Lisboa: que não somos assim contra a ordem, o trabalho, o progresso, a família, a pátria, o conhecimento estabelecido (religioso, filosófico, científico) mas que na e pela Liberdade, Amor e Conhecimento que lhes preside preferimos estes. Ou, com voz enfática, por Cesariny: O Homem só será livre quando tiver destruído toda e qualquer espécie de ditadura religioso-política ou político-religiosa e quando for capaz de existir sem limites. Então o Homem será o Poeta e a poesia será o Amor Explosivo. (…) Para a pátria, a igreja e o estado a nossa última palavra será sempre: MERDA. | |
Essas declarações, reproduzidas em A única real tradição viva, são uma parcela do que o próprio Cesariny reuniu no substancioso A intervenção surrealista (Assírio & Alvim, 1997). Seriam pouco mais que retórica, não fossem seus autores capazes da enunciação poética, como nesta antológica reafirmação do princípio da analogia e das correspondências por Cesariny: É preciso dizer rosa em vez de dizer idéia/ é preciso dizer azul em vez de dizer pantera/ é preciso dizer febre em vez de dizer inocência/ é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem// É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano/ é preciso dizer Para Sempre em vez de dizer Agora/ é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano/ é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora. Ou então, nas frases iniciais da homenagem a Lautréamont por António Maria Lisboa: Aqui ama-se sem leis, sem regras, no leito, em quartos abruptos e selvagens, ama-se na angústia (…) Ama-se matando, recordando todos os assassinatos da história do mundo, todos os jogos maléficos. E na lírica de Mário Henrique Leiria: O amor feito de noite/ ao som metálico/ de uma orquídea vermelha/ é a estrada uivante/ que se enrosca em tranças/ de animais marinhos. | |
Impossível não admirar a coragem de levarem a público tais manifestações e obras, no ambiente já por si repressivo dos anos 40-50, com sua cisão entre macarthismo e estalinismo, e mais ainda no Portugal salazarista, reduto por excelência do obscurantismo. E os surrealistas portugueses não tinham só a PIDE, uma execrável polícia política, em seus calcanhares, vigiando e por vezes proibindo manifestações, além de deter manifestantes. Desafiaram o beletrismo, bem como o neo-realismo, corrente dominante à esquerda, mais os remanescentes do importante vanguardismo português da primeira metade do século, ligados às revistas Presença e Orpheu. A propósito, Cesariny sempre deu tratamento implacável a um pessoano notável, João Gaspar Simões, e à memória do próprio Pessoa, culminando nas blasfêmias do recente O Virgem Negra - Fernando Pessoa explicado às Criancinhas Naturais e Estrangeiras por M. C. V. (Assírio & Alvim, 1996). Mesmo hoje, no Portugal moderno, aberto, esse livro deve ter provocado algum desconforto e consternação, além de desmentir, no que diz respeito a seu autor, a máxima atribuída a Goethe - também objeto de pilhagem por Cesariny em Titânia (Assírio & Alvim, 1994) - de que ninguém seria radical aos 80 anos de idade. Não satisfeitos por se situarem contra todos os demais grupos literários e artísticos portugueses, Cesariny, Lisboa, Leiria, Oom, entre outros, em uma espécie de meta-rebelião, tornaram-se surrealistas fora do próprio surrealismo. Enquanto se preparava a primeira exposição coletiva de surrealistas em Lisboa, em 1949, procederiam a um “racha”, um anti-grupo surrealista dos surrealistas, para Cesariny, ou surrealismo-abjeccionismo, incorporando o termo criado por Pedro Oom. E, como se ainda não bastasse, jamais foram reconhecidos pelo movimento encabeçado por André Breton. Quais interlocutores desqualificados provocaram essa situação, e até que ponto isso retrata uma burocratização ou enrijecimento do grupo francês, é petite histoire. Mas, ao que tudo indica, a primeira publicação de textos de Cesariny em conexão direta com um movimento surrealista internacional foi mesmo aquela efetuada em São Paulo por Sérgio Lima, em A Phala, de 1967. Bibliografia francesa associando-os a surrealismo, só na década seguinte (inclusive um ensaio de Pierre Rivas apontando bem o caráter paradoxal desse surrealismo dissidente do surrealismo). Portanto, foram algo como a margem da margem da margem, naquela sucessão de reuniões e separações, encontros e desencontros de uma rapidez desconcertante. Ao mesmo tempo, se mapeados os grupos e movimentos que adotaram a união do mudar a vida e do transformar a sociedade proposta por Breton, o surrealismo português poderá mostrar-se o mais importante e influente em poesia, afora aquele do âmbito francófono. Seu caráter frenético parece haver ampliado sua produtividade, em vez de reduzi-la, sob dois aspectos. Um deles, a obra caudalosa que deixaram, quando tomada em seu conjunto e, especialmente, ao se examinar a contribuição pessoal de Cesariny. Outro, a marca deixada na poesia contemporânea portuguesa. Não interessa, aqui, estabelecer uma topografia redutora (que Perfecto E. Cuadrado acertadamente evita) a partir da evidência de que Herberto Helder, Ana Hatherly, Isabel Meirelles, Helder Macedo, Natália Correia, entre outros, tiveram contato com Cesariny e seus companheiros, ou participaram dessa agitação, ao menos na fase final, das reuniões do Café Gelo. Importante, isso sim, é constatar que boa parte do melhor da literatura portuguesa de hoje (conforme já observei em Agulha 9, a propósito de Herberto Helder) se caracteriza pela riqueza imagética, por qualquer coisa de transbordante e transgressivo, em contraste com a produção brasileira contemporânea, cerebral, regrada, em suma, bem-comportada em autores de maior prestígio. Talvez isso tenha a ver, não só com a irrupção vigorosa desse grupo, porém, lembrando a tese sustentada por Natália Correia em O surrealismo na poesia portuguesa, com algo inerente à tradição literária de Portugal, desde as origens medievais. O culto ao escárnio e maldizer, ao exagero, à metáfora extravagante, ao grotesco, permite que, em um trabalho de arqueologia, se vislumbre um ou outro remoto precursor lusitano de Rabelais ou Lautréamont. Pode ser, ainda, a exemplo dos espanhóis de 27, que neles se encontrassem duas linhagens: a imagética desenvolvida no âmbito do simbolismo francês, adotada por vanguardistas e surrealistas, de um lado, e a recuperação da herança barroca. Mas, convém insistir, em Portugal o barroco, por sua vez, está ancorado em uma das origens da própria literatura européia. E, ainda impondo limites ao paralelo entre as duas nações ibéricas, de modo diverso da Espanha (mas à semelhança de países americanos de língua espanhola), houve em Portugal surrealismo organizado, estruturado, com uma clara definição de propósitos e procedimentos (que em nada impediu a exteriorização caótica). Por todas essas razões, o surrealismo português, em sua especificidade e excentricidade, acabou por tomar rumos próprios, autóctones, no plano da criação literária. Isso é bem assinalado por Perfecto E. Cuadrado na terceira parte do seu prefácio de A única real tradição viva, ao falar dos seus procedimentos. Em suas palavras, ao Surrealismo português se deve um trabalho de recuperação de formas e sentidos - perdidos ou maginalizados - típicos da poesia popular e de algumas correntes específicas da poesia culta tradicional. Por isso, a subversão desde o texto acabaria, assim, numa subversão do próprio texto, incluindo a escrita automática, jogos como o cadáver delicado (ou, como preferiram eles, cadáver exquisito), as perguntas e respostas (sem que um soubesse o que o outro perguntava), o um no outro, e, indo além, as adulterações e apropriações de textos alheios, remontando-os, descontextualizando-os e fundindo-os. Notadamente em Mário Cesariny e em Alexandre O’Neill, observa-se esse trânsito, da escrita poética de imagens e associações livres, passando pela sátira e pela paródia, até a pilhagem de outros autores, chegando, ainda segundo Perfecto E. Cuadrado, à relação direta com os procedimentos habituais da desarticulação e experimentação da poesia concreta e experimental. Daí haver correspondência, em algum nível, com autores como um construtivista português do calibre de Ernesto de Melo e Castro (cuja Antologia Efémera, aqui lançada no final de 2000 pela Lacerda Editores, ainda não obteve repercussão à altura de sua importância). A observar que, aparentemente, os concretistas de lá não foram tão excludentes e sectários, em sua fase de afirmação, quanto os de cá (que de modo algum admitiam surrealismo, imagética lorqueana, poesia de Mutilo Mendes e Jorge de Lima, etc). Além disso, sátira, paródia e jogos tipicamente intertextuais, além daqueles com homofonias ou aliterações, também fizeram parte da produção surrealista típica, principalmente nos anos 20 com Robert Desnos. E as pilhagens, adulterações e reescrituras de outros textos, têm sua notória raiz nas Poesias de Lautréamont. Em Cesariny, podem ser entendidas, ainda, como exacerbação de um diálogo, patente em sua contribuição como tradutor de Rimbaud e Artaud, entre outros. O que importa, de tudo isso, é Mário Cesariny ser um autor rigorosamente moderno, atualizado sob todos os aspectos, sem deixar, por isso, de ser fiel às idéias que recompilou na coletânea Textos de afirmação e de combate do movimento surrealista mundial. Mais uma vez, atesta que essa afirmação e combate, realizando tudo o que se engendrava nas transgressões vitais e textuais dos anos 40 e 50, correspondem a um ímpeto transformador que está bem longe de se esgotar ou de perder sua razão se ser. | |