POETA EM SÃO PAULO: PARANÓIA DE ROBERTO PIVA
CLAUDIO WILLER

Foto de Mario Rui Feliciani

A boa acolhida da reedição de Paranóia, livro de poemas de Roberto Piva e fotos de Wesley Duque Lee (Instituto Moreira Salles, 2000, originariamente publicado por Massao Ohno em 1963), fez com que muita gente reconhecesse o que havia deixado de ver naquela época, ou em algum momento das últimas décadas: que aí havia algo de novo, uma voz legitimamente original na poesia brasileira. Contribuíram para o silêncio de 1963 e anos seguintes blasfêmias como o lautreamontiano o universo é cuspido pelo cu sangrento de um Deus/cadela, o sarcástico há anjos de Rilke dando o cu nos mictórios e isso, como se não bastasse, enquanto os cardeais nos saturam de conselhos bem-aventurados/ e a Virgem lava sua bunda imaculada na pia batismal.

Trechos de uma poesia que não apenas proclamava a rebelião, a não-aceitação dos valores da sociedade, mas ia além, destruindo simbolicamente o mundo, sem deixar pedra sobre pedra, em um Apocalipse onde arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através dos meus sonhos.

Mas o interesse do relançamento de Paranóia não se reduz à recuperação das ousadias de um livro meio perdido no tempo (embora, qual fantasma, trechos reaparecessem inesperadamente em antologias como 26 Poetas Hoje, de 1976), e à conseqüente retificação de omissões e julgamentos equivocados. Piva é um poeta dos anos 60 e, igualmente, um poeta de hoje, que não parou de produzir e de se renovar. Teve a capacidade de, logo em seguida a Paranóia, sair-se com um livro bem diferente, Piazzas (Massao Ohno, 1964, reedição pela Kairós, 1980), embora mantendo características fundamentais, a começar pela livre criação de imagens. A observar como, ao longo de seus oito livros já publicados, de Paranóia até Ciclones (Nanquim, 1997), Piva oscila da expansão à contração, da hipérbole à elipse, da escrita torrencial à sintética. Mais próximos ao pólo da síntese estão 20 poemas com Brócoli (Massao Ohno/Roswitha Kempf, 1981) e Ciclones. No pólo da expansão, Quizumba (Global, 1983) e este inaugural Paranóia, com seu verso longo, quase poesia em prosa.

A história da gênese de Paranóia confere interesse adicional ao livro. Até então, Piva havia publicado alguns poemas na Antologia dos Novíssimos (Massao Ohno, 1961) e uma Ode a Fernando Pessoa lançada como panfleto, folha solta, no ano seguinte (também por Massao Ohno). Paranóia eqüivale a uma explosão, como se as comportas de sua imaginação se abrissem para um jorro de imagens compondo um discurso radicalmente na primeira pessoa, um "eu" não apenas lírico, porém enfurecido: eu sou uma solidão nua amarrada a um poste, passando a enxergar, e a enxergar-se como ponte de granito sobre rodas de garagens subalternas, enquanto colégios e carros fúnebres estão desertos/ pelas calçadas crescem longos delírios/ punhados de esqueletos são atirados no lixo.

Tudo o que Paranóia possa ter de alucinado, registro de visões que seu autor insinua haverem sido induzidas por drogas e fortes bebedeiras, ganha vigor pela simultânea afirmação do seu realismo, de que as imagens não representam apenas um mundo onírico, porém concreto, que está aí. Isso é acentuado pelo uso dos topônimos, os nomes das ruas e praças por onde Piva efetivamente circulava - Praça da República, Largo do Arouche, Avenida São Luís, Rua das Palmeiras, Parque Ibirapuera. E pelas fotografias de Wesley Duque Lee que ilustram o livro, resultado de andanças do artista plástico por São Paulo na companhia do poeta. Texto e ilustrações compõem a mesma unidade, são inseparáveis, conforme fica evidente nesta reedição de boa qualidade gráfica. Assim, ao lado de um verso como Na esquina da rua São Luís uma procissão de mil pessoas acende velas no meu crânio, uma foto noturna da mesma rua, bem iluminada; acompanhando o revólver imparcialíssimo vigiado pelas Amebas no telhado roído pela urina de tuas borboletas, a vitrina de uma loja de armas; junto aos cus de granito destruídos com estardalhaço nos subúrbios demoníacos, as nádegas de pedra de uma estátua; com o poema sobre o Parque Ibirapuera, fotos desse belo lugar. Em outras passagens, a fotografia não reproduz ou traduz o texto, porém sugere correspondências e afinidades, inclusive através de detalhes, partes de algum todo difícil de identificar, e de formas ambíguas, como a foto da capa, imagem tirada de um daqueles espelhos deformantes de parque de diversões. A evidente associação da poesia de Piva ao Surrealismo é assim reforçada: ao longo das 150 páginas de Paranóia ele não está falando nem de um mundo puramente pessoal, do sujeito, nem de um mundo objetivo, dentro do paradigma realista, porém de algo que é subjetivo e objetivo, concreto e abstrato, real e irreal, indo além dessas categorias, propondo sua superação.

As imagens de Paranóia não surgiram do nada, e não são apenas um registro de experiências do autor. Têm origens literárias, admitidas e declaradas através de menções e homenagens a Jorge de Lima (o Panfletário do Caos do título de um dos poemas), Murilo Mendes, Lautréamont, García Lorca e Mário de Andrade, entre outros. Além disso, a releitura evidencia o caráter quase epifânico que teve para Piva a leitura do Allen Ginsberg de Uivo, América e Um supermercado na Califórnia, poemas dos quais se pode identificar paráfrases em Paranóia. Em várias passagens, Piva consegue unir o modo confessional que caracteriza a escrita de Ginsberg e a imagética surrealista. Escreveu como se fosse um beat das megalópoles, porém intoxicado, em uma dosagem ainda maior do que a dos próprios poetas rebeldes norte-americanos, pelo vanguardismo europeu em seus modos mais radicais. Sem dúvida, assim como o foi Allen Ginsberg, é um continuador declarado do Poeta em Nova York de García Lorca; em Paranóia, escreveu o seu Poeta em São Paulo.

Pode-se associar Piva a Mário de Andrade pela homenagem no poema No Parque Ibirapuera, onde escuta um potente batuque fermentado na rua Lopes Chaves. E, em uma relação de efetiva continuidade, pela temática urbana, com todos os topônimos, os Trianon, Anhangabaú e Cambuci, já nomeados em Paulicéia Desvairada. Contudo, Mário de Andrade não ofereceu muito mais que descrições, flashes de lugares e cenas da cidade. Esforçou-se para enxergar, através de seu desvairismo, versão local do simultaneísmo de Apollinaire, a metrópole futurista no lugar que denominou de galicismo a berrar nos desertos da América, no burgo provinciano que ainda era a São Paulo do começo do século 20, e que precisaria de mais algumas décadas para desvairar de vez, para valer, e por isso merecer um registro como o de Paranóia.

O tempo passado entre as duas publicações, de Paulicéia Desvairada e Paranóia, é de 41 anos. Quase a mesma coisa, apenas um pouco mais do que os 37 anos que nos separam, agora, da primeira edição do livro de Piva. Lira Paulistana, por sua vez, publicado postumamente, só em 1947, chega a ser quase contemporâneo de Paranóia. Ao mesmo tempo, são poemas de outra era, sobre outra cidade, em outra linguagem, enquanto a poesia de Piva vai, aos poucos, sendo recuperada e percebida como nossa contemporânea.