SURREALISMO & CONTINENTE AMERICANO - FLORIANO MARTINS


Já de muito me inquieta a idéia de que o Surrealismo seja observado no continente americano ou em fatias isoladas, beirando a exclusão, ou como uma adoção integral do modelo parisiense. Reforça este último aspecto a afirmação de que o surrealismo americano teria se enriquecido com a vinda, para este continente, de poetas como Breton, Péret, Michaux, dentre outros. Há um equívoco traçado unilateral que tende a prejudicar a leitura do assunto.

Não creio que caiba dizer, em isolado, que o surrealismo europeu tenha sido enriquecido pela residência, em Paris, de poetas como César Moro, Luiz Cardoza y Aragón ou Octavio Paz, por exemplo. Mas rapidamente aceitaríamos o convívio destes poetas com os parisienses como algo de grande impacto em sua obra. Este é um caso em que a reciprocidade se mostra com dois pesos e duas medidas.

O outro ponto igualmente falho fica por conta dos organizadores de antologias que costumam tratar por América Latina uma entidade misteriosa que ora exclui o Brasil, ora os países de língua francesa. E mesmo quando tratado em sua completude o termo, não se percebe a infelicidade que é excluir os Estados Unidos, uma vez que os traços que nos unem e eventualmente separam, com base no tema Surrealismo, não são propriamente definidos pelas distinções idiomáticas.

Acrescente-se a estes dois aspectos anotados um terceiro que completa o ciclo: a má intenção de certa parcela da crítica ao aceitar a existência de Surrealismo apenas quando se verifica atividade grupal, e mesmo assim a reboque das proclamas parisienses em sua totalidade.

Abre-se aqui um parêntese quando menos curioso em relação à escritura automática, cuja prática, em isolado, como que condiciona a qualificação de alguém como surrealista. Indagada sobre sua relação com os surrealistas argentinos, disse Olga Orozco (1920-1999): "Estive próxima deles mais por amizade do que por identidade. Creio que tive em comum o sentimento de outros planos da realidade que não são estes, a valorização do onírico, a emoção exaltada da liberdade, a justiça e o amor, mas nunca fiz automatismo nem poemas subconscientes."

Em primeiro lugar os outros planos são pontos de identificação com o Surrealismo, não havendo razão para Não considerá-los. Sobre o automatismo, Breton advertiu inúmeras vezes a má fé em sua recusa. Em 1935, observou algo que cabe aqui recordar: "A energia premeditada na poesia e na arte que tem por objeto, em uma sociedade que chegou ao término de seu desenvolvimento, ao umbral de uma nova sociedade, o recobrar a qualquer preço o natural, a verdade e a originalidade primitivas, deveria nos descobrir algum dia a imensa reserva da qual surgem os símbolos preparados para estender-se pela vida coletiva, através da obra de alguns homens". Há, portanto, que entender o ponto de aplicação do automatismo, compreendo que o mesmo não se aplica como um estilo ou uma doutrina determinante da qualificação de alguém como surrealista.

Ainda pensando na declaração de Olga Orozco, é válido indagar quando um poeta tem consciência da interferência do subconsciente em sua criação. Saberá separar os dois planos, ao ponto de impedir uma inter-relação entre ambos? Um outro poeta argentino, Francisco Madariaga (1927-2001), disse que assumiu o Surrealismo como algo que lhe "permitiu desenvolver elementos estritamente americanos", lucidamente destacando que "Europa e América são mundos diferentes, não têm a mesma maneira de conceber a razão". Mesmo em termos de América, as modulações ou nuanças foram diferenciadas, pela própria formação etnográfica e as ocupações políticas do continente.

Caberia entender que, mesmo evocando o Surrealismo, são distintas as maneiras como se relacionam com sua prática poetas nas Antilhas, no Canadá, nos Estados Unidos e na América do Sul. Aimé Césaire (1913-1971), por exemplo, declarou que o Surrealismo foi para ele "o caminho por excelência da negritude, porque leva ao mesmo tempo à liberdade e ao homem negro". A necessidade de afirmação etnográfica possuía na América um caráter já não relevante na Europa.

As distinções - que são complementares - se multiplicam. De tal forma que hoje é preciso traçar um mapa de atuação do Surrealismo no continente americano, verificar identificações, recusas, obstáculos etc., considerando pelo menos dois ângulos: a ação com a matriz parisiense e uma reação ao tema baseada na defesa de localismos. Em qualquer caso, vale observar que há preconceitos inúmeros. É possível identificar casos - Brasil e México - em que foi um erro tático rejeitar o Surrealismo. O fato é que o tema, considerado na amplitude que exige, não foi até o momento discutido como se deve.

Tenho em preparo, no momento, para as Ediciones Andromesa, da Costa Rica, uma antologia do Surrealismo na poesia do continente americano. Esta antologia, no entanto, apenas inicia o assunto, apenas o provoca. Trata-se do primeiro registro do Surrealismo compreendendo sua ação no continente americano como um todo. Proponho inclusive afinações plausíveis em relação a perspectivas outras que não tenham sido necessariamente aceitas na condição de vínculos diretos com o Surrealismo, como no caso da Beat generation, nos Estados Unidos, ou El Techo de la Ballena, na Venezuela. E não deixo de observar as ações isoladas, em muitos casos não percebidas ou tratadas como ilegítimos pela rejeição a dogmas.

Tenho percebido ainda que certa intransigência por parte de Breton, com seu cânone irredutível, propiciou recusas de toda ordem. Há, decerto, a consciência de que estou traçando uma leitura diferenciada do Surrealismo, de que estou a buscar suas relações entranháveis com tudo o que propôs, e as maneiras como tornou possível a carnalidade dessas propostas.

O continente americano não sofreu influência do Surrealismo em maior proporção do que influiu em seu desdobramento. Não se verificou, salvo em casos não dignos de nota, uma subserviência sistêmica. Um crítico bastante referido, como é o romeno Stefan Baciu, me parece não haver entendido essa aclimação americana do Surrealismo. Foi um cultor de suas relações incontinentes com as situações políticas dos países onde viveu, o que interferiu negativamente na leitura que fez dessas realidades à sua volta.

O fato é que o Surrealismo não está dentro ou fora. Há que compreendê-lo como uma instância que nega separatismos de qualquer ordem. O que reuno agora neste livro é uma presença continental, uma compreensão de que nossos disparates existem tão-somente por conta da ausência de alguém que os tenha percebido em sua complementaridade. Uma nova espécie de magia, como queria Artaud? É bem possível. Mas que se observe que tal aventura não está sendo preparada sem um diálogo com vários poetas e artistas - não apenas nomes ligados diretamente ao Surrealismo, mas exegetas isentos de preconceitos de turno, o que me enche de certeza de estar permitindo a quem queira pesquisar sobre o tema uma visão abrangente, onde não mais comporta a distinção entre surrealismo histórico e eterno, menos ainda ao se considerar sua atuação no continente americano.


Floriano Martins (Brasil, 1957). Poeta, ensaísta e tradutor. Um dos editores da revista Agulha (www.revista.agulha.nom.br). Pertence à ABCA - Associação Brasileira de Críticos de Arte.

Texto originalmente publicado na revista ZonaNon (Coimbra, fevereiro de 2003).