Os mitos são forças que agem no âmbito da alma por servirem para criar e desenvolver a imaginação, que é seu alimento. E isso se manifesta, sobretudo, no que diz respeito ao erótico. Significa a relação entre a consciência que expressa uma obra de arte e o mundo imaginário, oculto, que lhe deu vida através desse alimento da libido, ligado às sensações eróticas.
A alma, por sua vez, é sucumbida quando a libido é introjetada para o inconsciente por ação das forças repressoras da cultura; mas no interior desse mundo, interno e protegido, a alma se refaz, energizada pela psique individual (reunião das forças psicológicas que distinguem a personalidade) e busca, nos mitos, as imagens das histórias que povoam, desde milhares de anos a psique coletiva e que são transmitidas, por intermédio do inconsciente coletivo (inclusive nos sonhos), de geração em geração. Uma reação de desejo sensual de um ser humano frente a um objeto, pode ser provocada por uma energia ancestral, acumulada no inconsciente, que se desprende em forma de energia individual ao relacionar uma memória sensual, que por ter sido repetida por muitas gerações encontra-se em forma concentrada de energia difusa, libidinal, sempre a ponto de manifestar-se. A personalização do símbolo será a forma que a energia toma em cada indivíduo criativo. (ver nota 1)
O objeto ou fato que desperta esse tipo de libido pode ser o sexo oposto, ou a sensualidade do mesmo sexo, ou mesmo um corpo nu. Pode igualmente ser uma paixão, ou um “desafogo” sensual acontecido num sonho, no qual a libido não encontra tantas barreiras para manifestar-se em imagens eróticas, e, nesse caso, a proibição cultural sob o efeito das normas e restrições morais, sociais ou religiosas não consegue oferecer resistência para reprimir o gozo. O sonho seria o mundo onde a psique manifesta seus desejos mais escondidos e mostra em imagens ou símbolos as forças da sexualidade reprimida de forma crua, direta e até escandalosa, como sinalizações de um desejo (perdido) a satisfazer. Vejamos um sonho desses, descrito por Santa Tereza de Jesus:
“...eu vi então que ele tinha uma longa lança de ouro, cuja ponta parecia de fogo e senti como se ele a enterrasse várias vezes em meu coração, transpassando-a até minhas entranhas! Quando a retirava, parecia também arrancá-las, e me deixava esbraseada do grande amor de Deus. A dor era tão grande que me fazia gemer e, no entanto, a doçura dessa dor excessiva era tal que eu não podia querer livrar-me dela (...) A dor não é corporal, mas espiritual, se bem que o corpo tenha sua parte e mesmo uma larga parte. É uma carícia de amor tão doce que acontece então entre a alma e Deus que eu peço a Ele, em sua bondade, que a faça sentir naquele que pensa que estou mentindo...”
E, ao fazer uma analogia com a poeta Hilda Hilst, começaremos pelo trecho de um poema dos “Cantares de perda e predileção” :
...Faz de mim tua sombra | E injuria, sangra | Essa que te descansa | Na tua soberba escalada ao meio-dia | Golpeia | Para amansar tua fina presa. | | Faz de mim tua boca | E cobre de saliva | Tua cria de carne e solidão | E abrandado cessa | Teu exercício de virtude e treva... (Canto X)
Note-se, em ambos os casos, que as autoras estão imbuídas fisicamente por um processo que transforma o castigo do “pai” em determinado “gozo” sado-masoquista, implícito no amor de “retorno”, que se entrega a Deus (pai) e se redime no prazer desse sacrifício; Santa Teresa diz:... ele tinha uma longa lança de ouro, cuja ponta parecia de fogo e senti como se ele a enterrasse várias vezes.. e depois... me deixava esbraseada do grande amor de Deus... Hilda diz: ....E injuria, sangra ...essa que te descansa...logo a seguir:... Golpeia...para amansar tua fina presa. Da mesma forma em ambas está presente, miticamente, o correspondente à flecha de Eros que sempre espeta para incendiar a paixão. Não se trata de comparar as duas poetas, literariamente, mas destacar psicologicamente um ponto comum mítico que a partir desse fundo ancestral movimenta a energia criativa a partir de uma história comum, que se lê por intermédio de símbolos e metáforas. (ver nota 2)
O erotismo é a porta sagrada dessa energia cósmica que, na sublimação mais intensa, relaciona-se com Deus. E só se manifesta dessa forma porque foi proibida. A proibição ao exercício do sagrado erótico está fundamentada nos privilégios do poder em que alguns, usando de tirania, persistem em apoderar-se com exclusividade desse gozo e pretendem usar a volúpia em benefício próprio. Daí as inúmeras fantasias das orgias que emergem na literatura, das formas mais diversas, conforme as circunstancias históricas. E as orgias seriam, nesse aspecto um sinal de luta contra a tirania. Neste caso que pretendemos analisar, é notória a presença do arquétipo ancestral do poder do grande pai da horda primitiva. Este determina que todas as mulheres (filhas e mães) sejam exclusivamente suas, para seu uso, proibindo aos demais filhos a relação sexual, nesse círculo, o que implica pagar com a morte ou castração o “pecado” do incesto. O mito judeu-cristão da criação do mundo corresponde mais ou menos a essa visão “patriarcal” de poder erótico concentrado no pai, vejamos:
Deus tem poder sobre Eva, e não permite a nenhum de seus filhos que se relacione sexualmente com ela; uma parte dos filhos é transformada em eunucos assexuados (os anjos) criados para ficar a serviço do pai; Adão, filho privilegiado, tem todas as permissões menos a de copular com Eva, e ela própria é advertida de não ceder ás tentações de manter relações com o filho rebelde Satanás que possivelmente tentará seduzi-la. Mas o tal Lúcifer, filho desobediente expulso da horda imaginária (arquetípica) do grande pai, ao ver-se impossibilitado por algum motivo de transgredir, invade a consciência de Eva e faz transbordar para ela o desejo de “pecar” com quem lhe era fisicamente próximo, isto é, aquele cujos objetos sexuais precisavam ser provados eroticamente (orgia). Uma vez realizado o pecado e tendo a libido sexual satisfeita, segue-se a isso o arrependimento, que significa o desejo espiritual pelo pai, aquele que foi traído e agora, como Deus, se transforma no símbolo para uma transgressão incestuosa da filha. (Ver nota 3)
Portanto, na grande força energética (psicológica) da horda primitiva, o pai (chefe da horda) seria o único que teria permissão para praticar incesto. Assim, à religião coube o papel de modificar a norma, mas essa nova proibição só seria possível se a mesma fosse anulada por uma substituição do papel de poder do pai. E dessa forma, no lugar do pai foi permitida essa função à imagem de um Deus todo poderoso, com o qual seria não só permitido transgredir, como no amor a Ele estariam transferidas as necessidades arquetípicas dessa “mania” inculcada por milhares de anos na alma humana. E que virou erotismo também por causa da proibição. (ver nota 4)
Santa Teresa manifesta o desejo inconsciente por seu grande amor (para movimentar sua energia mística, libidinal) que é simbolicamente Deus e ao mesmo tempo o grande pai traído pelos desejos terrenos e as tentações simbolizadas no demônio (antes de dedicar-se a Deus, a santa era fã e assídua leitora de romances de cavalaria, e inclusive dizem que escreveu um), portanto, Teresa fará a expiação da culpa e passará a dedicar a esse Deus uma fidelidade absoluta, traduzida no amor sublime, transformado também em prazer, a ponto de ela desejar morrer para vê-lo. Exemplificamos, com a minha tradução de uma parte do seu mais famoso poema, dedicado a Ele:
Vivo sem viver em mim,
e tão alta espero a vida,
que morro no estar viva.
Vivo já fora de mim
depois que morro de amor
porque vivo no Senhor,
que me quis amada assim.
E ao dar-lhe meu coração
com letras nele escrevia:
que morro no estar viva.
Esta divina prisão
do amor com que eu vivo,
faz de Deus o meu cativo,
e livre meu coração;
e causa em mim tal paixão
ter Deus preso sem socorro,
que morro porque não morro.
Comparemos com este poema de Hilda Hilst, no intuito de destacar a força mítica em ação:
...Eu amo Aquele que caminha | Antes do meu passo | É Deus e resiste. | | Eu amo a minha morada | A Terra triste | É sofrida e finita | E sobrevive. | | Eu amo o Homem-luz | Que há em mim. | É poeira e paixão | E acredita. | | Amo-te, meu ódio-amor | Animal-vida. | É caça e perseguidor | E recriaste a poesia | na minha Casa... (Canto XXIII)
Alguém poderia supor que as motivações entre as duas personalidades (de Teresa e Hilda) seriam totalmente diferentes, e a diferença estaria em que o “Pai” em Santa Tereza seria um caminho místico conduzindo metaforicamente a Deus, enquanto que em Hilda Hilst esse “Deus” estaria confundido com a imagem do próprio pai biológico, nas metáforas dos poemas, e posteriormente no Caderno Rosa de Lori Lamby , mais diretamente no encobrimento das relações sexuais com esse pai. Não se trata de estabelecer uma semelhança entre as duas poetas, mas a aparente diferença entre os arquétipos usados deve-se a que certa crítica estaria influenciada por um revestimento do religioso, que acompanha sempre a analise de Santa Teresa, e que corresponderia à própria cultura repressiva do cristianismo, como recusa em perceber uma leitura psicológica movimentando a libido na personalidade de Teresa. (ver nota 5)
Nos tempos atuais, o moralismo transferiu em boa parte esse papel da interdição erótica aos casados, mesmo que o casamento seja em seu início movido por um erotismo de fato, numa forma de transgressão do proibido em direção ao desvelar do mistério. Mas, habitualmente - com exceções criativas - o casamento torna-se uma consolidação da norma do legalmente permitido e a transgressão fora dele leva ao pecado, que ainda é condenado pelo próprio acordo entre os cônjuges.
Porém, como toda repressão induz à ousadia, o pecado será uma ação provocada pela força avassaladora do desejo que é acumulado no inconsciente até os momentos de explosão, pois haverá impulsos para saciar a alma com o erótico, visando reativar a energia vital da libido pelo único caminho em que isso é possível, isto é, transgredindo a proibição. Trata-se da busca que todo ser humano está sujeito a fazer. E no caso dos próprios sacerdotes da Igreja Católica, aos quais é vedado o erotismo do casamento, estarão eles mais vulneráveis a desvios aberrantes, como é o da pedofilia, ou de relações sexuais ocultadas, o que implicará num desequilíbrio de exploração subjetiva dos (as) parceiros (as). Porque eles, como seres humanos, terão dificuldade em fugir aos instintos primários do erotismo; e por estarem impedidos à libido inicial do matrimônio, aqueles que não conseguirem sublimar a energia ficarão mais abertos para transgredir com outros tipos de erotismo, naquele plano psicológico que Jung, lembrando Freud, denomina “reminiscências da infância”, e que por uma “sujeição religiosa a Deus na infância” serão transferidas, numa “reativação” erótica, à pedofilia, quando adultos. Como se, imbuídos pelo sacerdócio do poder de Deus (pai), atendessem a uma antiga demanda deles, quando crianças, que hoje projetam na criança com quem transgridem no plano do desejo de uma possível relação erótica (frustrada) com “Deus”.
O filósofo Georges Bataille, ao analisar esse aspecto no erotismo, cita o “desejada por Deus” como a norma de imposição da igreja, que nós diríamos ser contraposta a um desejo natural por esse mesmo Deus, de tal forma que, quando se transgride a norma, busca-se o Deus verdadeiro (no sentimento verdadeiro), mesmo que seja através da deformação pervertida, que não deixa de ser uma sinalização das necessidades da psique. E assim nos fala Bataille:
“...É verdade que a atividade genital “desejada por Deus”, limitada ao casamento, e mais geralmente à sexualidade considerada natural ou normal, opõe-se, de um lado, a desvios contrários à natureza, e de outro, a toda experiência julgada culpada, carregada de pecados, adquirindo, por essa razão, um sabor mais amargo: a atração que tem o fruto proibido...”
Por ser a Igreja Católica, nos últimos dois mil anos, a instituição dominante que mais se dedicou a essa repressão do erótico no ocidente, ela retirou do sagrado a essência libidinal, excluindo-a para o profano, como afirma o próprio Bataille:
“...Os templos da Índia abundam ainda em figuras eróticas talhadas na pedra, onde o erotismo se dá pelo que ele é fundamentalmente: ele é divino. Inúmeros templos da Índia lembram-nos solenemente a obscenidade escondida no fundo de nosso coração...”
No entanto, a linha do cristianismo repressor que predominou na Igreja Católica, apenas permitia o pecado como ato vinculado a Satã, aquele demônio necessário para justificar, no profano, a existência das transgressões, já que não se poderia abolir definitivamente uma coisa natural, de natureza divina. Isso porque o erotismo, como parte inseparável e vital da psique, nunca poderia ser destruído ou abolido definitivamente. E a sociedade, dominada pelo mercado, transformará também as aspirações da libido reprimida em mercadorias da volúpia, à venda. Assim a nudez feminina será associada à aquisição de uma mercadoria, escravizando a própria mulher a vestir essa máscara para ser desejada no lugar do produto, também como mercadoria. Vendendo-se, ou melhor, vendendo o trabalho empregado para associar-se ao objeto da libido transferida, a mulher estará colocando um preço na energia despendida (e desprendida) para fabricar sua máscara. E nesse sentido, amar, unicamente por amar, pode ser erotismo transgressor. Assim como o era o amor de Romeu e Julieta, o amor de Eros e Psique, e todos os amores transgressores. (ver nota 6)
Se o erotismo é essencialmente transgredir o proibido, nas religiões pagãs essa transgressão estava no fundamento do sagrado, e incluída nele como sua própria essência. Compreende-se esse sagrado como uma energia (ou graça divina) composta de aspectos puros e aspectos impuros, concebida como dinamização vital coletiva, da qual a individualidade extraia a libido através de uma reprodução amorosa num estado de estar amando. Destaque-se que a impureza ficaria, nesse caso, ligada ao erótico, mas sem a condenação que o cristianismo lhe imprimiu, na seqüência histórica, que partindo de posição “patriarcal” de poder, passa a condenar o feminino, como fonte do pecado e motivo diabólico para a tentação transgressiva.
Segundo Bataille, o cristianismo rejeitaria a impureza, e com essa ação de expeli-la do sagrado, seria excluída a culpabilidade do homem, desmontando a essência do sagrado que estava fundamentada em comportar a violação da proibição, incluindo a culpa. No entanto a culpabilidade antes inerente ao ato sagrado, ao ser separada da vontade humana (que sempre tenta inclui-la, ao cair na tentação de pecar), o cristianismo passa a deslocá-la para a responsabilidade do demônio. Um ser externo usurpador de um comportamento. Com isso tirava-se o “peso” da culpa, porém eliminava-se a autonomia do próprio ser humano. E poderíamos dizer que a história dos pecados eróticos da humanidade é a da luta pela libertação do ser alienado dessa ação autônoma, que representa parte essencial de sua liberdade. Por tal motivo, para os que sofreram a deformação, originada na proibição, voltar a integrar o demônio à psique, como parte da responsabilidade “culposa”, significa restabelecer a integridade da psique partida e ganhar uma independência psíquica de força incalculável, que permite gozar o amor em vida. E ao contrário do que prega a moral religiosa, isso significa também ganhar responsabilidade, sem ter que transferir culpas e crimes a “outros”, como é o caso de entidades sobrenaturais malignas, criada pela Igreja para transferências do “pecador”, subordinando-se ao poder de quem “perdoa”.
Vejamos o que Bataille diz a respeito disso:
“...O sagrado puro, ou fasto, dominou desde a antiguidade pagã. Mas, mesmo que se reduzisse ao prelúdio de uma superação, o sagrado impuro, ou nefasto, era o seu fundamento. Se por um lado o cristianismo não conseguiria rejeitar a impureza, por ser uma parte da construção equilibrada da psique humana, precisava separá-lo do sagrado. E assim a impureza e, portanto o erótico, foi relegado pelo cristianismo, ao mundo profano ...”
“...O diabo – o anjo ou o deus da transgressão (da insubmissão e da revolta) – era expulso do mundo divino. Ele era de origem divina, mas na ordem das coisas cristãs (que prolongava a mitologia judaica) a transgressão não era mais o fundamento de sua divindade, e sim o de sua queda. O diabo estava destituído do privilégio divino, que não tinha possuído senão para perde-lo. A bem dizer ele se tornava profano (...) O culto que sem dúvida não se deixou jamais de se lhe consagrar, sobrevivência daquelas divindades impuras, foi suprimido no mundo...”
“... O erotismo caiu no domínio profano ao mesmo tempo em que foi objeto de uma condenação radical. A evolução do erotismo é paralela a da impureza... e ...a assimilação do Mal vincula-se ao desconhecimento de um caráter sagrado(...) no caso do erotismo, a conservação da família teve grande importância, a que se acrescentou a degradação das mulheres de vida livre, expulsas da vida familiar...”
As aberrações da exploração, vinculadas à pedofilia e a certas formas de prostituição infantil, estão hoje cada vez mais estendidas socialmente. Mesmo sendo condenadas como prática proibida, e sujeitas a crime, são comercialmente difundidas como normalidade mercadológica e, inclusive, vinculadas ao turismo sexual, o que demonstra manifestação de domínio do poder econômico. No entanto seu combate ainda se dá em boa parte no campo da moralidade religiosa e não no da compreensão e do conhecimento de suas causas psíquicas. Ao considerarmos que esse poder da moralidade é de cunho patriarcal, não resulta estranho o fato que a grande maioria das transgressões sexuais contra crianças aconteça dentro da própria família, como atestam as pesquisas no mundo inteiro. Não é também de estranhar que inúmeros padres da Igreja Católica tenham praticado esse tipo de relações. E nos Estados Unidos tal crime se transformou em condenação, sujeita a pagamento de altas indenizações, o que absorve atualmente boa parte das economias do Vaticano. Isso tem como origem psíquica a repressão milenar direcionada ao erótico, em que o transgressor busca aquele mesmo sentido erótico perdido nas sensações em desobedecer a proibição.
Mas, por que, justamente os anseios voluptuosos do erótico tomariam formas de pedofilia, quando, ao invés de procurar o ato criminoso (considerando como crime a invasão traumática do outro, e não a relação amorosa em si), o erótico poderia ser resolvido por aquilo que o filósofo Bataille denomina de erotismo do coração ?
Alguns autores – a partir de suas experiências clínicas - inclusive, mas não só – entraram no cerne do problema, como foi o caso de Freud e, seguramente, do próprio Jung. Vejamos um trecho de Jung a respeito:
“...Vimos que o vazio da consciência ou o estado de inconsciência, respectivamente, são provocados por uma submissão da libido no inconsciente, onde jazem dispostos os conteúdos relativamente notórios, complexos reminiscentes do passado individual, sobretudo o complexo paterno-materno, que se identifica inteiramente com o complexo infantil...”
Acompanhemos esta análise com a trajetória da poeta Hilda Hilst que, como muitas pessoas, quando criança se apaixonou pelo pai, vivendo eroticamente esses desejos com excitações corporais, masturbações e situações imaginárias de relações sensuais, como ela própria, na maturidade, insinuou em entrevistas concedidas a jornais. No período infantil a cultura repressiva não se manifesta tanto, devido a que a criança não é tão atingida pelas normas sociais e religiosas (o religioso parte da falsa premissa de ela ser inocente). E mais ainda, a relação erótica no seio da família tem permissão, quase ilimitada, desde que permaneça oculta. E é por esse motivo que a memória das imagens eróticas desse período infantil ficarão mais nítidas depois, quando adultos – tanto nos atos explícitos como nos imaginários – e acompanharão a pessoa pelo resto da vida; e quando não explicitamente na consciência, irão para os sonhos, ou para transferências por intermédio do inconsciente ativo.
Mas logo, com o crescimento, a repressão se manifesta inexoravelmente e a criança, que ainda ama profundamente, deverá transferir esse amor para outro objeto, não apenas através dos arquétipos de sua experiência individual, mas pela incorporação do fundo erótico, aquele do inconsciente coletivo, que se apoiará em mitos, lendas, histórias de fadas, enfim, num imaginário profundo e complexo, sobretudo repleto de metáforas. A literatura e a arte em geral encontrarão nessa fonte inesgotável, esplendido material resultante para suas obras.
Em conseqüência, no desenrolar do comportamento, serão tentados namoros permitidos, casamentos, ou mesmo relações livres, tudo como tentativas de substituição do proibido, isto é, do verdadeiro erótico, no sentido do impulso primitivo, cuja satisfação provavelmente jamais será conseguida a não ser pela transgressão da norma, do pecado, do não permitido. E as transgressões transferidas serão sempre o reflexo do desejo de fundo (original), que, por sua vez a Igreja sempre considerou um Mal, atribuído à tentação do demônio, e ao pecado original. Mas quando, ao não se encontrarem caminhos mais adequados à transgressão, a libido será introjetada (ou submergida) no inconsciente, naquele lugar em que a imaginação trabalha usando os arquétipos do mito. Como, praticar o erótico (no sentido de romper a proibição) é um ato que confirma a autonomia do ser humano, ao inventar o demônio, para apoderar-se desse mesmo ato, a Igreja estaria deslocando para outra entidade a responsabilidade por essa ação autônoma e retirando do ser humano sua essência de agir livre, e da criação ou permissão do novo.
Porém, devido a que esta ação de retirada só acontece no ato simbólico, na verdade ao ser humano não será de fato retirada essa capacidade, mas sim reprimida, ficando acumulado na psique o potencial latente do pecar. E a Igreja, sabendo disso, inventa a confissão do pecado, como forma de livrar o ser da parte em que ele se sinta responsabilizado. Permite aliviá-lo da culpa, desde que ele renuncie a ela, mas com isso rouba-lhe a autonomia em aceitar a responsabilidade de “pecar” como norma do ser livre. Se o demônio efetivamente funcionasse e não fosse apenas símbolo (que está aí para roubar a libido) não seria preciso estabelecer a norma de condenação civil ou religiosa, determinando o ato criminoso ou imoral, sujeito a penalidades e castigos. Portanto, o fato de haver o crime é prova da existência, no ser humano, da capacidade permanente de criação. E o símbolo demoníaco, nessas condições, poderá ser transformado pela imaginação, também em aliado que potencializa o movimento imaginário, desmontando a moral impeditiva. E essa força transgressora terá expressão constante na literatura.
Poderia-se dizer que nos dias de hoje a modernidade suprimiu esse tipo de “pecado” ao conceder a liberdade sexual, indo sem muitos limites até a permissão pornográfica. No entanto seria ingenuidade supor com isso o fim da repressão, pois o mercado capitalista manteve o reflexo condicionado do “pecador”, como arquétipo do comportamento sedimentado, e permite “pecar” transferindo para aquisição do produto mercantil a transferência da libido destinada ao amor. Digamos que o homem aspira a um automóvel novo para satisfazer o mito da mulher prometida pela propaganda. E a mulher, na maioria das vezes interpreta a “igualdade”, como caminho para conquistar a máscara patriarcal para exercer o domínio do pai primevo.
Em outro contexto histórico, em que funcionam outros mitos da compensação, compreende-se que a poesia mística de Santa Teresa de Ávila e de San Juan de la Cruz, principalmente, seja sublimação, exatamente desse erótico; quer dizer, uma transgressão libidinal em direção ao arquétipo de Deus (transferência) que também pode significar o amor proibido e reprimido ao pai (um místico incesto). E autoridades da Igreja, à época em que Santa Teresa escrevia os poemas de “amor erótico” a seu Senhor – seu objeto – consideravam essa inspiração como algo vindo do demônio (a função do símbolo como sedutor em favor do transgredir), e Teresa, possivelmente, só não foi para o tribunal da inquisição, e daí para a fogueira, devido à proteção decidida de seu confessor.
Mas, voltemos a Hilda Hilst. Essa singular poeta, antes de produzir o Caderno Rosa de Lori Lamby, no qual descreve suas “memórias libidinais” imaginárias, como as de uma menina de seis ou oito anos, eroticamente dirigidas a seu “amante” e pai, escreve um pouco antes, em poemas de intenso misticismo (Cantares de perda e predileção), esse mesmo amor erótico, transferido a um Deus, seu amor:
...E a língua lambe | A cria que se feriu | De puro arrojo | E altaneria. | De gozo, sabor e nojo | Desta conquista de mim. De tua companhia. | | Cadentes teu passo e o meu | Temos a marcha de dois caminhos | De pelo e breu. | Lentos, tenazes | Em nós demora-se | O amor e a cólera. | | A crueldade. | Que é o som de Deus... (Canto X)
...E afinal |Cara a cara (espelho e faca) | De nossas duplas fomes | Não diremos... (Canto XI)
...Sem ser amada | Pertenço. | | Que sobreviva | O fino traço de tua presença. | Aroma. Altura. | E lacerada eu mesma | | Que jamais se perceba | Umas gotas de sangue na gravura... (Canto XIV)
...Para poder morrer apetecida | Me cubro de promessas | Da memória... (Canto XV)
...Para tua sede | As nascentes da infância: | Um molhado de fadas e sorvetes. | | E abriria em mim mesma | Uma nova ferida | | Para tua vida... (Canto XVIII)
...Toma-me ao menos | Na tua vigília. | Nos entresonhos. | Que eu faça parte | Das dores empoçadas | De um estendido de outono | | Do estar ali e largar-se | Da tua vida. | | Toma-me | Porque me agrada | Meu ser cativo do teu sono. | Corporifica | Boca e malícia. | Tatos. | Me importa mais | O que a ausência traz | E a boca não explica. | Toma-me anônima | Se quiseres. Eu outra | Ou fictícia. Até rapaz. | É sempre a mim que tomas. | Tanto faz... (Canto XXXVIII)
...Sonha-me, meu ódio-amor, | Através do teu sonho volto à vida. | Passeia minha sombra e ilusões | Pelos mesmos caminhos, os antigos. | E sonha-me como se tomasses | No fulgor da carne | Tua primeira amante proibida... (Canto LIX)
E em relação a isso, vejamos, à continuação, outra citação de Jung, relacionando devoção com a auto-repressão da libido:
“...Pela devoção, isto é, pela submersão da libido no inconsciente, o complexo infantil reativa-se e acarreta, portanto, o reavivar das reminiscências da infância, como as relações com os pais, por exemplo...”
No caso, Hilda Hilst tinha liberdade para escrever, como fez no Caderno Rosa de Lori Lamby, suas fantasias eróticas, correspondentes a essa relação com o pai, com detalhes das sensações anais e vaginais; relacionando a violação de seu corpo infantil pela língua, saliva, mãos e dedos do adulto (pai); as derivações sado-masoquistas no âmbito do desejo erótico, terno e sublime, mas carnal; e mais, a percepção do erotismo do adulto ao violar a sua virgindade e castidade arquetípicas. Seria como o sacrifício de crianças virgens, inocentes, que eram imoladas pelos astecas, em oferenda a suas divindades, mas no caso da menina Hilda (transmutada em Lori) é possível explorar as delícias do erotismo sacrificial, sem a morte, conferindo a esse erótico transgressivo a sensação do eterno, no prazer terreno.
Em Hilda, o fato do erótico obsceno criou algumas incompreensões, que até hoje persistem, em relação a várias justificativas dadas por ela que explicariam essa escrita “transgressora”. As explicações, em nossa opinião, encerrariam verdadeiras metáforas, habilmente colocadas para encobrir uma atitude erótica de fundo, relacionada a um profundo desejo reprimido na paixão ao pai. Primeiramente Hilda alega não ser uma escritora compreendida e, portanto, não estaria sendo lida pelo público na proporção em que ela considerava importante sua obra. Isso se dá até o momento em que decide escrever os livros obscenos. Essa justificativa não tem muito fundamento, pois, após o breve intervalo da fase do erotismo explícito (que ela insiste em chamar de pornografia), voltará a seu antigo hábito de escrever a poesia lírica de sempre, e abandonará o obsceno, talvez por haver dito o que precisava dizer. Na verdade, a poesia lírica, belíssima, mas pouco compreendida pelo público, corresponderia a um hermetismo (ocultador) da revelação desse grande amor “proibido” que não poderia ser dito a não ser por metáforas, tornando difícil a compreensão da essência, à qual Hilda também insiste em não fugir, e não desviar-se com máscaras. Ocorre-nos aqui associar isso ao pensamento de Freud, ao explicar que as fantasias em relação aos pais, quando portadoras da relação incestuosa, não corresponderão aos verdadeiros pais, ao manifestarem-se, atribuindo-se essa repressão da imagem paterno-materna a uma atitude de repugnância ao incesto.
Portanto, na obra de Hilda, a incompreensão do público corresponderia a uma verbalização, na qual os símbolos usados pela poeta escondem a explicação de relações afetivas, que para a própria Hilda estavam cristalinas, ainda que apenas no inconsciente; e daí sua revolta em não ser compreendida. Mas quase toda poesia é assim. Porém, ao mesmo tempo, sua sensibilidade elucidaria o enigma, por intermédio da intuição, sinalizando-lhe que deveria falar uma linguagem mais clara, ou melhor, usar metáforas esclarecedoras, aquelas com que o entendimento público seria seduzido, entendendo subjetivamente a proibição pelo mesmo caminho em que ela era mobilizada ao prazer, quer dizer, a transgressão (para insistir com o termo de Bataille), ou melhor, aquilo que todos gostam de fazer na desobediência à norma que proíbe o erótico. E que, para Hilda, deveria ser um arquétipo do desejo coletivo transformável em arte. E aí ela casou seu desejo pessoal que precisava ser expandido com o desejo coletivo do reavivamento das reminiscências eróticas, que compreendem a infância de todo ser humano. E dessa forma, Hilda, a partir de sua inteligência psíquica entendeu que poderia ser mais e melhor lida. E, ao escrever a trilogia de livros obscenos, sobretudo o Caderno Rosa, de fato, essa maior aceitação pelos leitores se confirmou.
Por outro lado, sua constante reclamação da falta de público, na verdade não a afetava tanto quanto à falta de compreensão de seu amor de fundo, no qual vivia a melancolia da não correspondência. A literatura estava integrada à sua carne, de tal forma que fazia parte do corpo, além da alma, e as reações somáticas por descuido da saúde (alcoolismo e outras desatenções) eram fruto das limitações do símbolo que não consegue fazer uma transferência adequada dos desejos. Isso porque o símbolo é uma indicação de caminho consideravelmente forte, mas com uma energia real muito fraca para responsabilizar-se sozinho pela qualidade das transferências. O demônio, por mais “responsabilidade” que possa assumir sobre o pecado e a culpa, jamais a assumirá de fato, porque é um símbolo, que desmorona quando a psique exige resultados palpáveis. Significa a fraqueza da Igreja frente à autonomia do ser humano moderno (o pecador) que adquire a consciência da culpa como algo inerente à liberdade.
Portanto, as transferências salvam, desde que a psique encontre verdadeiras correspondências a seu amor de fundo e não apenas máscaras. Hilda, nos seus enunciados obscenos falou a seu amor o que de fato queria dizer-lhe, com todas as palavras, e experimentou para ver se o público finalmente entendia o que ela sempre quis dizer; e provavelmente o público está começando a entender. Para início, é preciso que os críticos assumam o que a poeta realmente quis falar. E nesse caminho a encontraríamos muito próxima aos mitos que tocaram o estado poético de Santa Teresa de Ávila.
É significativa essa afirmação sua, publicada no catálogo da exposição “O Caderno Rosa de Hilda Hilst” organizada por Cristiane Grando no CEDAE-IEL-UNICAMP em 2005:
“...Comecei a retirar fotografias da gaveta e achei aquele retrato meu, quando eu tinha 6 anos, reproduzido na contra-capa do livro, aquela foto me fez pensar: se esta menina tivesse um pai escritor ou uma mãe, quem seria essa menina, o que falaria, o que sentiria...aí nasceu Lori Lamby...” (Hilda Hilst entrevistada por Araripe Coutinho em 1991).
Quando conseguimos dizer uma grande verdade, tal como a declaração explícita de amor a uma grande paixão de nossa vida, e não encontramos correspondência, ou porque já é tarde demais (Hilda) ou por ser o amor impossível, em que o símbolo não se transforma em carne (Santa Teresa), acontecerá na vida do ser humano uma profunda frustração: a melancolia incurável. E mesmo uma resposta tardia já não encontrará mais o eco do que fomos quando nos declaramos, porque o erótico vive na psique a variação das fases afetivas desta. Por isso, Psique tem que aprender a viver os estados de melancolia permanente com seu Amor de Fundo, e transferi-los aos objetos que ama, evitando as quedas no abismo; compreendendo e respeitando a vida anímica dos objetos amorosos, sabendo alimentar-se da energia proporcionada por eles, e utilizando os pecados como dica para os retornos.
Assim Hilda Hlist compreendeu o retorno, após seu grito esclarecedor, ao voltar a escrever “Cantares do sem nome e de partidas” de 1995, novamente em transferência de poesia mística na qual um Deus oculto é o amor. E isso também aconteceu por haver terminado sua mensagem, em que fala claramente de suas vontades eróticas, dirigidas ao pai.
Continuando com Jung:
“...As fantasias produzidas por essa reativação constituem um motivo propulsor na gênese das divindades paternas e maternas, bem como o despontar da sujeição religiosa a Deus, na infância, acompanhado dos correspondentes sentimentos infantis. De um modo bastante característico, são os símbolos dos pais os que primeiro emergem ao estado consciente e nem sempre correspondem aos verdadeiros pais, um fato que Freud explica, atribuindo-o à repressão da imagem paterno – materna por repugnância ao incesto...”
No caso de Hilda Hilst, ela menciona seu amor infantil (apaixonado e erótico) a seu pai verdadeiro em algumas entrevistas dadas a jornalistas, porém em sua obra, tanto a figura do pai como a dela não são imaginadas diretamente como autobiográficas. Mesmo que haja casos da descrição física de personagens, correspondentes ao pai, ela procurará distanciar-se de uma relação direta, mesmo sem muito ensejo em camuflá-la totalmente. Vejamos um trecho do Caderno Rosa, em que Lori pede ao pai para relacionar-se sexualmente com ela, e ele é taxativo em dizer-lhe que isso não seria permitido:
“...eu perguntei pro papi se ele gostava de mim e se ele queria me lamber. Ele disse que não, que gostava de lamber a mamãe...” (pág. 22 da 2 a edição de Massao Ohno)
Esta parte do pensamento da psicologia dos arquétipos, que traduziríamos por conhecimento-da–alma e que, por sua vez, é a principal matéria-prima com a qual trabalham os (as) poetas, nos traz a revelação de que toda essência do verdadeiro erótico está ligada a uma energia incestuosa, e por mais que a sociedade tenha evoluído, nos dias de hoje, liberando a antiga rigidez nas relações sexuais, mantêm inalterada a proibição ao incesto - aquilo que movimenta a libido - pela via da interdição arquetípica às imaginações de um gozo pleno, isto é, o movimento em direção ao erotismo, da energia vital.
Não é exatamente que as pessoas, por hábito comum, desejem conscientemente manter relações sexuais com seus pais, irmãos, filhos ou parentes circunscritos a essa proximidade-tabu familiar, mas é nesse desejo de fundo o lugar onde acontece a busca ao algo mais: a busca da divindade no sentido do mito, traduzido na vontade de um amor mais profundo, que não se assemelha ao conhecido, e que quando não é transferido temporariamente para outra pessoa, permitida, procurará as mais diversas manifestações, como é o caso da sublimação mística (a exemplo da poesia) ou de outras formas de transgressão pura, em direção ao erótico.
A continuação, ainda Jung:
“...estou de acordo com essa explicação (a de Freud, sobre a transferência, para outros objetos, do amor aos pais, reprimido por repugnância ao incesto), mas creio que não esgota o tema, pois (Freud) não deu conta do extraordinário sentido dessa substituição simbólica. A simbolização na imagem de Deus traduz um enorme progresso para além do concretismo, do sensualismo da reminiscência, visto que, ao admitir-se o símbolo como verdadeiro símbolo, a regressão imediatamente se transforma em progressão...”
Mesmo entendendo que Jung tenta dizer que a explicação de Freud ficaria limitada a constatar apenas (e com genialidade) uma transferência no campo da sensualidade, ao descobrir que o objeto de amor (transferido) corresponde a um “pai” oculto – portanto, corresponderia a um signo, como coisa identificada – nada nos faria pensar que a constatação de Freud não levasse ao símbolo, isto é, a algo que se amplia em progressão, na direção de outra coisa nova, mesmo que não totalmente conhecida.
Seria como se, ao analisar o Caderno Rosa de Hilda, chegássemos à conclusão freudiana que se trata de uma transferência de amor, que a autora faz de suas fantasias e desejos reprimidos, tendo como alvo erótico-afetivo o pai. Nossa opinião é que, mesmo verdadeira essa interpretação, possui, igualmente, um valor arquetipico – e Freud não o negaria – que significa o amor de fundo; aquele que rege a alma humana nos movimentos do erotismo (que, para Jung, é simbolizado na imagem de Deus). Ao resgatá-lo, como parte do sagrado, tal como era considerado em épocas do paganismo, e que o cristianismo (como Igreja) quis separar, reduzindo-o ao profano, estaremos recompondo, uma boa parte do equilíbrio psíquico da alma. E essa mesma deformação do cristianismo transformou o demônio, o antigo deus Dionísio da orgia-festa, em sacerdote do Mal, ao qual é atribuída a responsabilidade de fazer cair em tentação e pecar, isto é, transgredir, e chegar à essência que leva ao erótico.
Se não houvesse o demônio como pretexto, a igreja teria dificuldade em explicar que esse impulso não fosse uma tendência natural do ser humano. Tentou retirá-la para fora da psique, vinculando-a a uma ação demoníaca vinda do externo e, com isso acabou mutilando a alma. Mas como tal impulso - primordial e vital - sempre foi natural, e sempre foi um fator de criatividade, a repressão ao impulso levava o ser humano ao desejo inconsciente de um pacto transgressor com o demônio, que a igreja potencializa em condenação criminosa, e nisso estava a essência do cerceamento à autonomia do ser humano.
E poderíamos afirmar que a pedofilia, no seu aspecto opressor, de exploração, está no cerne do ser humano reprimido, sobretudo entre os próprios padres da Igreja. Por não ser compreendida a relação do amor e do erotismo (ou do amor erótico, ou do erotismo do coração) em sua gênese infantil, esta terá uma versão de transgressão criminosa entre aqueles que são movidos pela ignorância e pela equivocada transferência de seus impulsos reprimidos. E que, possivelmente, são os mais aptos a cair na tentação das aberrações.
O Caderno Rosa de Hilda Hilst tem essa validade, não ficando reduzido à mera pornografia, devido a encerrar em si um símbolo de alta densidade, ligado ao movimento da alma, que representa, entre outras coisas, a própria vida psíquica da autora. Portanto, ao não ser apenas signo, daquilo que aparentemente parece ter um significado comum, compreensível, no âmbito do obsceno, como diria Jung “retirando-lhe assim o caráter autônomo”, o Caderno Rosa é um símbolo, compondo a gênese de um desejo desconhecido, que todos nós procuramos sempre. E nisso está o caráter de progressão a que Jung se refere, quando diz: “continuaria sendo regressão se tivesse considerado o suposto símbolo, única e definitivamente como um novo sinal ou signo dos verdadeiros pais”.
Hilda procura desvincular a história de Lori Lamby, de sua relação com o verdadeiro pai, para fugir do signo reconhecido que induz ao conceito do obsceno. Assim podemos dizer que o sentimento ali envolvido significa o símbolo de um amor difuso, um amor de fundo, portador de força arquetipica incomensurável e que, em nossa vida, pode cristalizar-se e manifestar-se em inúmeras imagens; uma das mais fortes é Deus, além do misticismo, do cosmo, de amores impossíveis, de sublimações, etc. (ver nota 7)
E no caso, o Caderno Rosa, igualmente faz parte viva do símbolo, na medida em que é linguagem importante de uma das falas da alma. Trata-se de uma expressão significativa, completada pela poesia mística dos Cantares, sempre relacionada a esse amor oculto. Sem o Caderno Rosa seria mais difícil encontrar a progressão, também de Hilda em relação a Santa Teresa. Escrever somente os Cantares seria como se Hilda repetisse as maravilhas de Teresa (ou de San Juan de La Cruz) sem transgredir a proibição do erótico na perspectiva da autonomia do ser humano moderno, autônomo, como ela fez no Caderno ao chamar as coisas pelos nomes verdadeiros; e ao assinalar os gozos onde eles efetivamente acontecem. Portanto, diríamos que a diferença entre Hilda Hilst e Santa Teresa de Jesus é que Santa Teresa não poderia escrever o Caderno Rosa sem correr o perigo de ser queimada na fogueira. O que de fato também prova que só podia sentir o seu amor em Deus não morrendo, e ao ter que viver, cercar-se de cuidados, e evitar qualquer motivo real para esse sacrifício definitivo no fogo concreto da inquisição e não na chama do amor.
(*) Agradeço a leitura atenta feita pela poeta Cristiane Grando, com sugestões e questionamentos assimilados.
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